ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
SOS gramatical
Uma esquina educativa
Henrique Araújo | Edição 30, Março 2009
Às dez e meia da manhã o telefone tocou mais uma vez. Do outro lado da linha, uma dúvida – a décima segunda do dia. “Você quer saber como se escreve ?”, repetiu a plantonista. Sim, era o que a pessoa queria. Considerando o nível de dificuldade das perguntas que Illiana da Costa Forte enfrenta diariamente, essa poderia entrar na categoria bico. Ainda assim, tal como canja de galinha e água-benta, um Aurélio ou um Houaiss nunca é demais. Depois de uma espiada no computador, ela responde: “A palavra é com s e ss.”
Illiana é a coordenadora do Plantão Gramatical de Fortaleza, um tira-dúvidas linguístico mantido há quase trinta anos pela prefeitura da cidade. De segunda a sexta, das 8 às 18 horas, ela e um grupo de oito professores seis de português, um de inglês e um de espanhol se revezam em dois turnos para destrinchar, por exemplo, as 27 (dizem alguns) funções gramaticais da palavra que (conjunção, pronome, preposição, advérbio etc.). As perguntas são feitas por telefone e fax ou “presencialmente” (como dizem os modernos). É a modalidade preferida dos moradores do bairro Damas, onde fica o escritório, porque um pulo no plantão economiza o telefonema.
Além de lançar luz sobre os mistérios dos três idiomas, os mestres fornecem a origem e o significado de nomes de pessoa. Circula pelo escritório o polpudo Dicionário de Nomes de Bebês, com 8 mil verbetes. “Quer saber o seu?”, Illiana pergunta ao usuário Henrique. “Está aqui: ‘príncipe encantador e poderoso.'” Há que [prep. acidental] duvidar um tanto dos rigores do dicionário, o que [conj. coord.] não impediu Henrique de ganhar o dia. De posse da informação, certamente apareceu no emprego com a altivez de um cavaleiro medieval.
Variando dos 30 aos 50 anos de idade, todos os plantonistas têm curso superior e quase todos lecionam nas universidades públicas de Fortaleza (são duas). Com o cargo de oráculo gramatical, reforçam o orçamento em 953 reais mensais.
Entre uma pergunta e outra sobre ortografia, sintaxe, morfologia ou pontuação, são por vezes instados a dirimir dúvidas que [pron. rel. com função de sujeito] extrapolam os precisos limites da ciência gramatical. Uma vez, preparada para atender o telefone e fazer, digamos, alguma rápida análise sintática por exemplo, da frase “Vão-se os anéis, ficam os dedos”, Illiana foi surpreendida: “Quem era o ator que [pron. rel. com função de sujeito] fazia O Bem-Amado?” Meio no reflexo, ela respondeu na bucha: “Paulo Gracindo.” Entusiasmada, a consulente prosseguiu: “Já que [conj. adv. causal] a senhora foi tão simpática comigo, não teria aí o telefone do padre Marcelo Rossi?” Illiana não tinha.
Com meio milhão de atendimentos no currículo, o Plantão Gramatical sobrevive a despeito da receita minguada. De 2008 para cá, os nove atendentes se revezam entre dois computadores, só um com acesso à internet. A chegada da informática foi um divisor de águas. Até então, a mais simples consulta exigia musculatura para abrir as 2 120 páginas do Aurélio ou as 2 922 do Houaiss. Gramática, havia só uma: a do filólogo gaúcho Celso Luft, magister magistrorum da disciplina.
É uma pena que [conj. integrante] nem Aurélio, Houaiss, Luft ou Google estejam prontos para esclarecer cabalmente as dúvidas que [pron. rel. com função de sujeito] despencam em avalanche desde o início do ano, quando entrou em vigor a reforma ortográfica. As mudanças no modo de escrever o português parecem ter desconcertado uma fatia considerável dos 2,4 milhões de habitantes de Fortaleza.
O Acordo Ortográfico eriçou três problemas que [pron. rel. com valor de adjetivo] já existiam: hífen, acento e, batata, trema afinal, ainda que [conj. adv. concessiva] se pise e repise que [conj. integrante] houve alteração somente na grafia, meio mundo insiste em querer saber como que [partícula expletiva] fica a sonoridade de linguiça sem os dois pinguinhos que [pron. rel. com função de sujeito] lhe ornavam o u. Um plantonista responde: “Nada muda.”
Mas o hífen é que [partícula de realce] encabeça com folga o ranking das consultas. Seu uso ou desuso desencadeou praticamente a metade dos atendimentos no último dia 7 de janeiro. Foram 107 chamadas originárias das seis regiões da cidade. Illiana não se assustou: “Volume não implica complexidade”, diz com sabedoria.
Complexidade mesmo ela enfrentou uns anos atrás, sempre por obra da volúvel particulinha que. Primeiro veio a frase “Era muito inferior ao que se exigia do artesão qualificado na época precedente” “O que é o que [pron. interrogativo] nessa oração?!”, perguntou em desespero a pessoa do outro lado da linha. “Demoramos mas descobrimos”, conta Illiana. “Era sujeito de exigir.”
O outro que igualmente marcante em sua vida (e, por extensão, na vida dos demais plantonistas) escapara diretamente dos Lusíadas. Dizia a encrenca: “… criarei/ Estas relíquias suas que aqui viste,/ Que refrigério sejam da mãe triste.” Pedia-se apenas a identidade do segundo que, mas corriam as horas e ninguém achava a resposta. A charada teve de ser remetida a um professor de literatura da Universidade Federal do Ceará, que [pron. rel. com função de sujeito], não sem esforço, matou. “Era conjunção integrante”, sorri Illiana. Que [pron. indef. em situação exclamatória] alívio.