Sublime necrópole
O cemitério espanhol em que os enterros acabam em festa
Ricardo Viel | Edição 72, Setembro 2012
Pelo menos metade dos pouco mais de 200 habitantes de Morille estava no cemitério naquele domingo de maio. Violinos em punho, duas crianças deram início à Marcha Granadera, o hino da Espanha. Vicente del Bosque, técnico da seleção nacional de futebol, agarrou a pá e passou a cobrir com a terra seca e pedregosa da região a cova onde repousava uma caixa vermelha. Dentro dela, jaziam uma bola Jabulani e uma camisa da “Fúria”, ambas usadas na final da Copa do Mundo da África do Sul, vencida pela primeira vez pelos espanhóis.
Natural daquela parte da Espanha – Castilla y León –, Del Bosque era o protagonista do ato. Recebeu o microfone das mãos do artista performático Domingo Sánchez Blanco, animador do sepultamento. “Não sei se há algo mais simbólico que o futebol ou se existe algum país que não conheça esse esporte”, filosofou. “Hoje vamos enterrar uma bola, que simboliza a universalidade do futebol, e uma camiseta, símbolo da união da nossa equipe.” Enquanto dois voluntários terminavam de tapar a cova, o treinador posava para fotos e autografava camisas. Sob aplausos efusivos, uma lápide com a data do sepultamento e a inscrição “corpos perfeitos” foi descoberta.
Encerrada a cerimônia, era hora de encher o estômago de vinho Ribera e jamón ibérico, iguaria regional típica. O vilarejo se encaminhou quase todo ao bar local para beber aos mortos. Em Morille é assim: os enterros (quase sempre) terminam em festa. Ao menos os realizados naquele cemitério, dedicado ao sepultamento de obras de arte e outros objetos de valor simbólico.
O empreendimento é o único do gênero no mundo, disse o prefeito de Morille, Manuel Ambrósio Sánchez Sánchez, um cinquentão boa-praça de cabelos grisalhos e óculos estilosos. O projeto de criar algo como um “museu mausoléu” ou um “centro de arte subterrâneo” foi idealizado por Domingo Sánchez Blanco e outro artista da vanguarda contemporânea espanhola, Javier Utray – morto em 2008 e enterrado num cemitério convencional.
Sánchez Sánchez foi o primeiro a encampar a ideia, que considerou “brilhante e potente” e submeteu à votação na Câmara Municipal em abril de 2005. Para a surpresa de muitos, o projeto foi aprovado. Um terreno de 50 mil metros quadrados localizado atrás da igreja foi cedido para que se enterrassem obras de “reconhecido valor artístico” ou vinculadas “de modo significativo” ao mundo da arte – naquele domingo, ninguém parecia duvidar que a camisa rubra da Espanha tivesse seu lugar nesse panteão.
A criação do Cemitério de Arte de Morille não custou nenhum centavo à prefeitura, para orgulho do alcaide. As peças enterradas são doadas, os artistas não cobram cachê e o custo da realização dos enterros – como o aluguel de tratores e guindastes – é coberto pelos patrocinadores, a começar pelo apoio muito oportuno da funerária La Dolorosa.
Diferentemente de Odorico Paraguaçu, Manuel Ambrósio Sánchez Sánchez não teve problemas para inaugurar seu cemitério. Os dois primeiros enterros aconteceram em dezembro de 2005, tão logo o terreno foi considerado pronto para receber seus cadáveres. Na inauguração, foi sepultado um Pontiac Grand Prix, carro usado por Javier Utray nos anos da movida madrileña, movimento cultural surgido na virada dos anos 80 para sacudir a poeira da recém-enterrada ditadura franquista. Na mesma ocasião, foi inumada também uma amostra das cinzas do filósofo francês Pierre Klossowski, enquanto Sánchez Blanco fazia uma performance solene. O cortejo fúnebre foi puxado por uma carruagem e embalado pela banda municipal – importada de um município vizinho, já que Morille não tem a sua.
Desde então, o Cemitério de Arte já foi palco de mais de trinta sepultamentos. Jazem ali uma mala de viagem, um piano, um par de sapatos, livros de poesia, esculturas, filmes e outras obras. Há uma longa fila de espera de artistas que ambicionam enterrar ali suas criações. As propostas de sepultamento são avaliadas por uma comissão formada por representantes da prefeitura, dos moradores e da classe artística. Sánchez Sánchez jurou que não influencia na decisão. “Não pense que eu mando mais do que os outros”, disse. “Já teve projeto sugerido por mim que não foi aprovado.”
A paulistana Beth Moysés pertence ao seleto grupo de artistas que já sepultaram alguma obra em Morille. Em 2009, ela realizou uma performance no cemitério sobre a violência de gênero e em seguida enterrou uma tela branca com a palavra miedo bordada em vermelho. “Nunca tinha escutado falar do cemitério e achei estranho quando recebi o convite”, confessou. Convencida, afinal, das boas intenções do projeto, decidiu colaborar e achou “tudo muito agradável”.
A cerimônia comandada por Beth Moysés foi emotiva, daquelas que o prefeito de Morille define como “sérias”. Mas há também os sepultamentos jocosos, aos quais não faltam carpideiras vestidas de negro chorando copiosamente. “Os moradores logo entendem quando estamos de burla ou sérios”, contou Sánchez Sánchez. “Seja como for, eles sempre participam.”
O cemitério tem atraído turistas e estudiosos ao pequeno povoado. “Somos procurados por estudantes e pesquisadores que querem escrever sobre ele”, contou o prefeito. Sánchez Sánchez está treinando um morador local para servir de guia turístico. Para não frustrar os visitantes, ele pretende também criar um espaço em que será possível ver vídeos e consultar documentos sobre os enterros – afinal, no local não se vê nada além de lápides.
Morille já foi uma próspera aldeia de quase mil habitantes nos anos 50, graças à descoberta de minas de tungstênio e estanho. Nas últimas décadas, no entanto, sua população não para de diminuir. A maioria dos jovens do povoado se muda para cidades maiores em busca de estudo e trabalho. Desde a inauguração do Cemitério de Arte, o lugarejo voltou a despertar a atenção. De enterro em enterro, Morille ganha vida.