Manifestação de apoiadores de Bolsonaro: criando problemas imaginários para produzir crises reais, o presidente, de sabotagem em sabotagem, vai corroendo por dentro a democracia CRÉDITO: BRUNO ESCOLÁSTICO_2021_PHOTO PRESS_ESTADÃO CONTEÚDO
Teatro dos vampiros
Neste espetáculo, já não sabemos quem devora quem
Fernando de Barros e Silva | Edição 181, Outubro 2021
M e engana que eu gosto, me engana que eu preciso disso, me engana, me engana uma vez mais, faz esse obséquio por mim. Fa-lo-ei, enganar-vos-ei, respeitáveis senhores, digníssimos representantes da nossa mui venerável República, enganar-vos-ei com uma graciosa missiva assinada por mim, mas redigida pela pena imprestável daquele vampiro lá, nessa língua gordurosa banhada em molho branco que vocês aí gostam de arrotar, taoquei?
O parágrafo acima, algo delirante, dramatiza de forma canhestra as falas de três personagens, embaralhando-as como se fossem uma só. Teatro da pior qualidade – é exatamente disso que se trata. O homem das mesóclises é Michel Temer. O taoquei também dispensa apresentações. Mas quem é o sujeito que abre o texto, apelando para ser enganado como um viciado em drogas durante uma crise de abstinência? Seriam os chefes dos poderes da República? Seriam as elites brasileiras? Seriam, mais especificamente, os donos dos meios de comunicação do país? Alguns de seus áulicos? Talvez todos eles? Deixemos a pergunta no ar. Há gente demais cabendo nesse papel.
Depois do Sete de Setembro, fingir que Jair Bolsonaro é um animal político que opera dentro das quatro linhas da Constituição, como ele gosta de falar, se tornou mais difícil. A taxa de cinismo que ele passou a cobrar de todos – adversários, instituições, “democratas”, com ou sem aspas – ficou mais cara. A partir de agora, para compartilhar a opinião de que a democracia, mesmo sob ataque, segue bem das pernas e se sustentará firme até as eleições, é preciso acreditar na sinceridade das palavras que Michel Temer esculpiu em mármore e deu de presente a seu sucessor para pacificar o país. Mas quem acredita nessa tábua de salvação?
A Declaração à Nação divulgada na tarde de 9 de setembro foi uma farsa que em nenhum momento se preocupou em esconder sua vocação essencialmente farsesca. A despeito de seu aspecto postiço, de transpirar falsidade da primeira à última linha, a carta de harmonização entre os poderes serviu como pretexto para desmobilizar aqueles que teriam a obrigação, por dever funcional ou convicções democráticas, de tomar providências concretas contra a marcha da insensatez da antevéspera.
Em sentido substantivo, não houve recuo, mas acomodação das forças políticas num patamar rebaixado, num ambiente institucional que se degradou mais um pouco e ficou mais permeável às investidas do tarado das motociatas. Como escreveu Marcelo Coelho na Folha de S.Paulo, “a volta à ‘normalidade’ permite, no fundo, que a maioria das forças políticas se livre de suas reais responsabilidades. É como se Bolsonaro não fosse a única ameaça; o próprio impeachment parece um mau negócio”. O sentimento de dever cumprido dos que reagiram retoricamente a Bolsonaro disfarça mal o que parece mais uma omissão histórica, quiçá comparável à que já custou tão caro ao país em 2018. A sensação de que aquele que avançou em seus objetivos escusos estaria fazendo uma concessão à democracia alimenta as ilusões a respeito do momento atual.
A um ano da eleição, a lucidez parece estar do lado das cabeças que vêm alertando para a dinâmica sombria e destrutiva que deve dar a tônica do processo político nos próximos meses, com traumas pelo caminho e riscos reais de ruptura da ordem democrática. O Sete de Setembro não foi um fracasso, definitivamente. Tratou-se menos de uma tentativa frustrada de golpe e muito mais do que o filósofo e cientista social Marcos Nobre chamou de ensaio geral, uma preparação para a eventual invasão do nosso Capitólio, antes ou depois da eleição, caso isso seja necessário (e quem define a necessidade é o próprio Bolsonaro, obviamente). O Sete de Setembro serviu para estocar um imenso volume de energia social a favor de novas aventuras autoritárias. Bolsonaro organizou e energizou a sua tropa.
A quem ainda tem dúvida, vale a pena rever as imagens do ato na Paulista, facilmente acessíveis na internet. A interação do público com o presidente é tão sinistra quanto os recados que partem do palanque. A certa altura do discurso, Bolsonaro anuncia que vai “dizer a esse ministro [Alexandre de Moraes] que ele tem tempo ainda de se redimir. Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos”. A massa que lota a avenida se inquieta, protesta, emite sons de reprovação, diz “não” freneticamente com as mãos. Bolsonaro imediatamente corrige o rumo da fala: “Ou melhor, acabou o tempo dele!” As pessoas exultam, urram, comemoram como se estivessem no estádio diante de um gol. Encorajado pela malta, o presidente então arremata, elevando o tom de voz: “Alexandre de Moraes, deixa de ser canalha! Deixe de oprimir o povo brasileiro!” O discurso prossegue, e alguns segundos depois as pessoas começam a gritar em coro: “Eu autorizo, eu autorizo, eu autorizo!” É nesse momento que Bolsonaro afirma: “Quero dizer a vocês que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes este presidente não mais cumprirá! Ele tem tempo ainda de pedir o boné e cuidar da sua vida. Ele para nós não existe mais.” Quando o presidente pede “Liberdade para nossos presos políticos”, referindo-se a gente boa como Roberto Jefferson e Daniel Silveira, a massa começa a gritar: “Liberdade, liberdade, liberdade!” A cena impressiona. Não é necessário muito esforço para identificar ali traços das mobilizações fascistas.
O cientista político André Singer destacou esse caráter do Sete de Setembro no artigo que publicou na Folha (Marcha Troll sobre São Paulo), tendo ao mesmo tempo o cuidado de dizer que “analogias entre épocas precisam ser tomadas cum grano salis”. Isso não o impediu de afirmar que “a comemoração inaugurada no Dia da Pátria não foi a dos dois séculos da Independência do Brasil e sim a do centenário da Marcha sobre Roma, que, em outubro de 1922, reuniu fascistas de toda a Itália para pressionar, com sucesso, o rei Vittorio Emanuele III a nomear Mussolini primeiro-ministro. Com a significativa diferença de que a marcha troll sobre São Paulo foi apenas o começo de um ciclo de mobilização contra o pleito do ano que vem” (o grifo da frase final é meu).
Bolsonaro também foi explícito a esse respeito em seu discurso. Desconsiderando mais uma vez todas as evidências sobre a segurança da urna eletrônica e desconsiderando a votação realizada na Câmara que derrotou a adoção do voto impresso, ele voltou à carga: “A alma da democracia é o voto. Não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança por ocasião das eleições. Não é uma pessoa no Tribunal Superior Eleitoral que vai dizer que esse processo é seguro e confiável, porque não é.” Logo adiante, arrematou: “Não posso participar de uma farsa!”
A suspeição reiterada ad infinitum contra a urna eletrônica tem poder de convencimento sobre muita gente, mesmo sem nenhuma prova que a sustente (isso é o que menos importa). Quando o presidente da República fala em tom indignado “não posso participar de uma farsa” quantas pessoas que o assistem não se sentem representadas? É o que basta. Bolsonaro inventa problemas imaginários para produzir crises reais, sucessivamente. E assim, de sabotagem em sabotagem, vai corroendo por dentro a democracia. Seu delírio paranoico tem método.
Ainda no final de 2019, antes que a pandemia chegasse ao país, o crítico Roberto Schwarz fez um paralelo entre a vitória de Bolsonaro em 2018 e o golpe de 1964. Nos dois casos, disse em entrevista, “um programa francamente pró-capital mobilizou, para se viabilizar, o fundo regressivo da sociedade brasileira, descontente com os rumos liberais da civilização. Ao dar protagonismo político, a título de compensação, aos sentimentos antimodernos de parte da população, os mentores do capital fizeram um cálculo cínico e arriscado, que não é novo. O exemplo clássico foi a viravolta obscurantista na Alemanha dos anos 1930. Aceitando e estimulando o nazismo, a grande burguesia alemã deflagrou um processo incontrolável, ao fim do qual já não se sabia quem devorava quem”.
Da entrevista para cá, transcorridos menos de dois anos, as coisas se deterioraram bastante. Não há um setor da vida nacional que não tenha sido atingido por retrocessos ou não seja alvo da predação mais feroz. Bolsonaro não tem mais a mesma popularidade, é fato. Mas em seu pior momento – como gostam de repetir alguns analistas, enfatizando o pioooor para nos persuadir no berro – ele segue com quase um quarto do eleitorado a seu favor. Não é pouco. Se é verdade que uma fração do grande capital já desembarcou do governo, também é verdade que o Sete de Setembro renovou os vínculos entre uma base social ressentida e fanatizada e uma parcela ainda expressiva dos donos do dinheiro, agrobusiness à frente, em torno da figura de Bolsonaro.
A aparição súbita de Michel Temer para arrumar a casa depois da festa fascistoide acrescentou uma camada de graça ao apelido que lhe deu o finado senador Antonio Carlos Magalhães: mordomo de filme de terror. Chamado às pressas para socorrer o colega de seus delitos, o ex-presidente posou de fiador da ordem constitucional e arauto da legalidade, logo ele. Sua intervenção, na verdade, configurou uma espécie de segundo golpe, dessa vez – com o perdão do clichê – como farsa deliberada, que veio confirmar o sentido histórico do golpe consumado em 2016, ou seja, a tragédia inaugural do pântano em que continuamos afundando.
Na conversa telefônica intermediada pelo mordomo desse filme de terror, Bolsonaro teria ouvido de seu desafeto no Supremo a frase que selou o armistício entre eles: “Não vou mandar prender o filho de ninguém.” Aqui não há inocentes.
Antes de retornar ao sarcófago de onde saiu em missão cívica, Temer foi homenageado num jantar temático ambientado no Segundo Reinado, na casa do impoluto financista Naji Nahas, e ainda encontrou tempo para participar de uma conversa muito agradável na GloboNews com o fidalgo Roberto D’Avila, um dos comensais da véspera.
Tudo isso nos leva a recuar no tempo. O mesmo Roberto Schwarz que fez em 2019 o diagnóstico do que está em jogo hoje é autor de páginas definitivas sobre o funcionamento do Brasil. Seu livro Um Mestre na Periferia do Capitalismo, sobre as Memórias Póstumas de Brás Cubas, é um dos pontos mais altos da crítica literária brasileira. Nele, o autor dedica um capítulo inteiro ao núcleo dos personagens endinheirados do romance de Machado de Assis. Chama-se Ricos entre Si (sim, pode pensar no jantar).
Reduzindo o argumento ao extremo, Schwarz mostra como opera no romance a normalização de condutas aberrantes – ou incompatíveis entre si, segundo o padrão civilizado – pelas elites locais. O exemplo mais flagrante é o de Cotrim, cunhado do narrador, cuja biografia é assim resumida pelo crítico: “Comerciante estabelecido, contrabandista de escravos, pai de família extremoso, membro de várias irmandades, patriota, a personagem está em vias de enriquecer através de negociatas com o arsenal da Marinha arranjadas pelo parente deputado.”
Se, “do ângulo europeu, a biografia de Cotrim seria exótica e escandalosa, do ângulo brasileiro, que Brás Cubas busca formular, ela é normal”, diz Schwarz. Sob as fantasias liberais alimentadas pela elite escravocrata da época, o que o romance de Machado põe a nu é “a experiência efetiva da classe dominante brasileira”. Quantos Cotrins estavam à mesa em que Temer se deliciou de rir assistindo à imitação de si mesmo? O editorialista da “escolha muito difícil” era um dos presentes, sentado bem ao lado do ex-presidente.
Podemos ir um pouco mais longe. A elite brasileira não fez outra coisa nos últimos anos senão procurar normalizar as condutas aberrantes de Bolsonaro, como se ele pudesse ser medido por qualquer régua civilizada. O papel de Temer, afinal, foi apenas ajudar essa elite a empurrar sua desfaçatez com a barriga um pouco mais. Vai que a terceira via ainda emplaca. Enquanto aguardamos, vamos fingir que Bolsonaro recuou e o Sete de Setembro não foi nada de mais.
Exemplos? Na antevéspera do discurso vexatório que o mundo presenciou na ONU, o jornal O Globo escrevia o seguinte em seu editorial: “Faria bem Bolsonaro se decidisse, inspirado pela carta escrita com o ex-presidente Michel Temer, dar meia-volta também nos temas ligados a meio ambiente e direitos humanos. Se conseguir mostrar ao mundo seu lado ‘Jair Peace and Love’, talvez começasse a reverter os danos que seu governo causou ao país na cena internacional.” Essa peça ousada, publicada no dia 19 do mês passado, trazia como título Bolsonaro Tem Chance de Reparar Imagem do Brasil. A palavra chance reaparece na capa de recente edição da revista Veja que traz uma entrevista exclusiva com Bolsonaro com jeitão de ter sido psicografada por Michel Temer: “A chance de um golpe é zero.”
Com essa elite, é tudo mesmo sem chance – não corremos o menor risco de sermos um dia uma nação decente. O nosso “insolúvel grotesco histórico”, para falar de novo como Schwarz, está sendo repaginado pela enésima vez. No atual teatro dos vampiros, já não sabemos quem devora quem.