CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Teclado amazônico
Um aplicativo para quem escreve em línguas indígenas
Pedro Tavares | Edição 208, Janeiro 2024
Em novembro de 2023, Rosilda Maria Cordeiro da Silva, de 61 anos, recebeu uma missão: verter as regras de um jogo de tabuleiro infantil do português para o tukano, sua língua nativa. Com vinte anos de experiência como professora de línguas em Taracuá, sua aldeia na Terra Indígena Alto Rio Negro, no Amazonas, Silva já se dedicava à tradução havia tempos. O trabalho ficou mais fácil graças a um aplicativo lançado no ano anterior: com o Linklado em seu computador, ela traduziu as sete páginas das instruções do jogo em dois dias.
Sem esse recurso, a tarefa seria bem mais trabalhosa. Antes dele, diz Silva, as transcrições de línguas indígenas exigiam o esforço quase manual de produzir diacríticos (acentos gráficos) e letras que não constam do teclado de aplicativos de mensagens ou programas de texto, como o Microsoft Word.
Os primeiros europeus que fizeram transcrições de línguas indígenas para o alfabeto latino, no fim do século XVI, valeram-se de recursos que não foram adotados nos meios digitais. Em tukano, por exemplo, uma vogal foi duplamente acentuada, como nas palavras ni‘kɨ yukɨ̇̂ (que significa “uma árvore”). “Nesses casos, na produção de um livro, o diagramador tinha que pegar a letra, transformar em figura para fazer a acentuação e só depois inseri-la no meio da palavra”, diz Noemia Ishikawa, de 51 anos, micóloga (estudiosa dos fungos) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ela foi uma das idealizadoras do aplicativo, que é gratuito e está disponível para download em computadores com sistema Windows e em celulares Android e IOS.
Paranaense radicada em Manaus há dezenove anos, Ishikawa deu início, em 2004, a um projeto para desenvolver fontes de renda em comunidades indígenas do Alto Solimões a partir da extração dos frutos de andiroba. Depois de quatro anos, ela se deu conta de que as cartilhas em português que distribuía nas aldeias não eram bem recebidas. Em 2009, decidiu traduzir uma delas para o ticuna, idioma mais falado na região onde era realizado o projeto. “Nessa tradução, me deparei com a dificuldade que era escrever os diacríticos e algumas letras do alfabeto indígena”, ela diz. “Eu brinco que, do outro lado da rua, a solução crescia junto com o meu problema.”
A 500 metros da sede do Inpa, morava Samuel Minev Benzecry, de 17 anos, que tinha acabado de concluir o ensino médio e costumava visitar a sala de Ishikawa para aprender sobre fungos, tema que o interessava. Em dezembro de 2021, ela contou ao estudante sobre o problema que a angustiava. Em abril de 2022, Benzecry levou a ideia de um aplicativo ao amigo e vizinho Juliano Portela, também com 17 anos na época, que tinha conhecimento de programação. “Passei um layout para o Juliano do que eu imaginei que poderia ser o aplicativo”, diz Benzecry. Por coincidência, a falta de recursos para transcrever idiomas indígenas no computador era um problema que o próprio Portela enfrentava na fase de seleção para a disputa internacional de uma olimpíada de linguística. “Uma das etapas era escrever um artigo da Wikipédia contando a história de uma língua. Eu escolhi a língua indígena wanano, da região amazônica.”
Em quatro dias, ainda em abril, o protótipo do Linklado ficou pronto. “Foi rapidinho, mas não foi nada fácil”, conta Portela. O teste definitivo foi imprimir um texto feito com o aplicativo em uma gráfica, pois o que parece perfeito na tela às vezes sai com erros na impressão final. Ishikawa ficou emocionada quando viu o texto sem falhas.
Para a pesquisadora, o Linklado representa uma revolução. O programa não restringe combinações de acentos, seja com vogais ou com consoantes, e isso poderá, acredita Ishikawa, facilitar a criação de representações gráficas para fonemas que ainda não têm forma escrita. “Eu mirei em uma dor e atingimos várias outras”, diz. Ela se lembra de um problema de comunicação contado pela tradutora indígena Cristina Quirino Mariano, do povo Magüta (Ticuna), que se comunicava com seus parentes por celular, mas só em áudio, porque não havia como digitar os caracteres adequados.
“O Linklado possibilita que o Brasil reconheça a sua diversidade linguística”, afirma a antropóloga Ana Carla Bruno, que é colega de Ishikawa no Inpa e agora faz parte da equipe do aplicativo. Ela defende que escrever na língua materna é uma das principais formas de preservá-la.
Espécie de língua franca amazônica, conhecida até por povos que não a têm como idioma nativo, o tukano serviu de base para o Linklado. “No início, o aplicativo ia se chamar Tuklado”, conta Benzecry. Mas os criadores concluíram que esse nome era muito restrito para um aplicativo que também serve a falantes de outras línguas – e optaram por uma combinação de “link” e “teclado”.
Hoje, Benzecry estuda ciência ambiental e linguística na Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Portela está em Yale, cursando ciência da computação e linguística. Os dois contabilizam mais de 2 mil downloads do Linklado.
Rosilda Cordeiro da Silva é atualmente coordenadora da Diâ Wi Í (Coordenadoria das Organizações Indígenas do Tiquié, Uaupés e Afluentes) e mora em São Gabriel da Cachoeira, município com a segunda maior população indígena do Brasil. Ela integra o Projeto Linkladas, que busca gerar renda para tradutoras indígenas – mulheres que encontraram no Linklado uma ferramenta inestimável.
Em 2025, quando terminar a vigência de seu cargo, Silva planeja voltar a Taracuá para apresentar o Linklado aos habitantes da aldeia. Perguntada sobre a importância do aplicativo para seu povo, ela preferiu responder por WhatsApp, em tukano: “Apɨ́tɨ ãyú niîsa: o Projeto Linkladas. Toho weegó apɨ́tɨ e’katísa: Ãyú niî!!!”. Em português: “É muito bom o Projeto Linkladas. Por isso, estou muito feliz e digo: obrigada!!!” O recado foi transcrito com o Linklado.