Aranhas usam as teias para tomar decisões, exportando o processamento de informação para fora do corpo. “É como se os fios fossem uma extensão do sistema nervoso”, diz Hilton Japyassú FOTO: ARNAUDBALLAY_GETTY IMAGES
Teço, logo existo
As aranhas pensam com suas teias, propõe biólogo brasileiro
Bernardo Esteves | Edição 141, Junho 2018
Um experimento feito em 2004 deixou o cientista Hilton Japyassú encasquetado. Japyassú – um biólogo especializado no comportamento de aranhas que na época trabalhava no Instituto Butantan, em São Paulo – observou em seu laboratório um animal da espécie Zosis geniculata fazer algo que nunca havia sido testemunhado por outros pesquisadores. A aranha em questão – um bicho miúdo de cor amarronzada com abdome avantajado – capturou um grilo de um jeito que não estava no script dos aracnólogos.
Numa teia manipulada, em que algumas espirais tinham sido removidas, uma pesquisadora grudara um pequeno grilo vivo na extremidade de um fio que pendia solto. A aranha aproximou-se do fio e, após um instante de hesitação, se pôs a puxá-lo de forma lenta e algo desajeitada. Levou cerca de um minuto para içar o inseto até a teia. Uma vez de posse da presa, foi bem mais ágil ao enrolá-la num casulo de seda com movimentos coordenados das patas.
Vídeo: Núcleo de Etologia e Evolução / Instituto de Biologia / UFBA
“Você vê que é um comportamento meio perdido, não é uma coisa automática”, disse Japyassú numa manhã de março, depois de rodar o vídeo do experimento em seu computador na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, onde trabalha desde 2009. “É como se ela falasse consigo mesma: ‘Meu Deus, o que está acontecendo?’” O pesquisador explicou que aquele movimento de pesca não faz parte do repertório de captura de aranhas que, como a Zosis, fazem teias orbiculares – ou seja, de formato aproximadamente circular, em torno de eixos radiais, como se vê no uniforme do Homem-Aranha.
É um comportamento, porém, típico da família de aranhas à qual pertence a temida viúva-negra, os teridídeos. Essas espécies tecem teias tridimensionais como um grande lençol irregular do qual pendem fios verticais untados de goma adesiva que funcionam como varas de pescar. Quando uma formiga ou outro inseto se enrosca num desses fios, a aranha prontamente o puxa para perto de si. “Esse comportamento é observado em cerca de 4 mil espécies”, disse Japyassú, antes de rodar outro vídeo, o de um teridídeo – a Achaearanea tepidariorum – pescando. Nas imagens, uma larva de besouro é capturada pela aranha com movimentos muito mais ágeis das patas, um balé meticuloso que dura menos de dez segundos.
Vídeo: Núcleo de Etologia e Evolução / Instituto de Biologia / UFBA
Japyassú não entendia por que a aranha em seu laboratório tinha pescado o grilo. Ele esperava que o animal não entendesse que o inseto pendurado era uma presa e que, talvez, até cortasse o fio. O biólogo explicou que aranhas de teia orbicular como a Zosis não têm um módulo mental para fazer a pesca. “Onde estaria a informação para a execução desse comportamento?”, questionou, antes de responder, apontando para a própria cabeça: “Não está só aqui dentro. É como se o ambiente externo trouxesse parte da informação.”
Foi Carolina Garcia, uma aluna de graduação que Japyassú orientava no Instituto Butantan, quem veio lhe dizer que observara o comportamento surpreendente em um experimento que estava fazendo no laboratório. Tudo aconteceu por acidente. “A formiga que eu tinha colocado na teia se debateu demais e rompeu um raio. Acabou pendurada em um fio solto, que a aranha puxou em sua direção”, disse a bióloga de 36 anos. Japyassú duvidou quando a aluna lhe contou sobre o ocorrido. “Você viu isso mesmo? Então volta lá e filma.” Garcia refez o experimento, agora rompendo deliberadamente o fio de seda, e a aranha voltou a pescar.
Japyassú decidiu então observar em experimentos se aquilo acontecia com outras aranhas de teia orbicular, manipulando suas teias e vendo como elas reagiam a uma presa colocada num fio solto. A tarefa foi confiada a outra aluna de iniciação científica que ele orientava, Vanessa Penna-Gonçalves. A ideia agora era fazer a manipulação em campo, no ambiente em que as aranhas constroem suas teias.
Penna-Gonçalves disse que fez o experimento em diferentes lugares da capital paulista, como a reserva florestal da Universidade de São Paulo, uma ilha na represa de Guarapiranga e o estacionamento do Shopping Eldorado. Para ter um número significativo de observações, precisava fazer o experimento com vinte aranhas de cada espécie. Desenvolveu com a ajuda do pai um instrumento para romper as teias, um cortador de isopor adaptado. Usava máscara para não gerar, com a respiração, vibrações de ar que aranhas são capazes de perceber. Com o tempo, a bióloga aprendeu o jeito de cortar o fio e de dosar a força necessária para pinçar os grilos sem matá-los. Depois de manipular a teia de mais de 200 indivíduos, durante um ano e meio de trabalho de campo, a pesquisadora observou a pesca nas doze espécies que estudou.
Ela se lembra com clareza da primeira vez que viu o comportamento ser executado com perfeição. “Foi com uma Parawixia audax, aranha marrom linda de uns 3 centímetros que constrói uma teia enorme. Ela pescou de uma vez, trouxe o grilo inteiro. Foi sensacional”, contou Penna-Gonçalves, uma bióloga de 33 anos que usa pingente e tatuagem de aranha e tem detalhes de teias pintados nas unhas. O resultado foi publicado em 2008 na revista especializada The Journal of Arachnology, num artigo assinado também por Japyassú e Garcia.
Os pesquisadores notaram no artigo que as aranhas que pescam – os teridídeos – evoluíram a partir das espécies que constroem teias orbiculares. Ao praticar a pesca inesperada, a Zosis e suas primas monitoradas em laboratório estavam operando a mesma transformação observada na história evolutiva das aranhas, só que na escala de um indivíduo. “Você oferece uma situação inusitada e o animal muda o sistema de captura”, explicou Japyassú.
Além de lançar luz sobre a evolução das aranhas, o estudo, para o cientista, ajudava a entender também a mente desses artrópodes. De certa forma, os animais pareciam tomar conhecimento do mundo por intermédio da teia: o fio de seda, um elemento do ambiente externo, as ajudava a tomar uma decisão. “Os resultados não eram explicáveis pelas teorias centralizadoras que situam a cognição apenas no sistema nervoso central”, disse-me o biólogo em Salvador. Mas o artigo ainda não enveredava por essa interpretação, que Japyassú só viria a explorar alguns anos depois.
Hilton Ferreira Japyassú foi batizado em homenagem a um tio morto em 2015. Frade da Casa São Tomás de Aquino, o filósofo e teólogo Hilton Japiassu dava aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro e celebrava missas em uma favela da Zona Sul. Escreveu dezenas de livros, a maioria sobre epistemologia e história das ciências, sua especialidade.
O biólogo se lembra do frade como uma figura generosa, com quem desde a infância discutia temas de filosofia. “Essa relação me inculcou questões sobre como funciona a mente, o que é o conhecimento, como ele é possível”, disse o pesquisador paulistano de 54 anos, que usa barba sem bigode e óculos de armação grossa. O tio era um admirador da filosofia de René Descartes, o pensador francês do século XVII cujo dualismo postulava que o corpo físico era governado por uma mente racional – para ele, os animais, desprovidos de alma, seriam meros autômatos de comportamento mecânico e previsível. As ideias de Descartes contrariavam Japyassú. “Meu tio foi um cartesiano até o último momento”, contou. “Tínhamos brigas homéricas.”
Quando foi estudar biologia na USP, ele não tinha interesse específico por nenhuma espécie animal. Estava mais fascinado pelas questões filosóficas da biologia. “Minha motivação inicial era explicar a mente, se ela é uma coisa que flutua, se é algo independente, se está encarnada ou se, ao contrário, não está ligada ao corpo”, disse.
As aranhas existem há pelo menos 300 milhões de anos e já povoavam o planeta quando surgiram os primeiros dinossauros. Mas não é fácil contar sua história evolutiva: os fósseis de aranhas são raros, e os de fragmentos de seda, mais ainda. Presentes na mitologia de um sem-número de povos, esses animais sempre fascinaram os estudiosos da natureza, embora a aracnologia só tenha se consolidado como disciplina autônoma no século passado.
Os aracnídeos foram parar na vida de Japyassú por influência do psicólogo experimental César Ades, um dos principais pesquisadores brasileiros da etologia, a ciência que estuda o comportamento animal. Empolgado com uma palestra de Ades sobre o comportamento das aranhas, Japyassú resolveu fazer mestrado e doutorado com o etólogo, estudando a construção da teia de uma espécie conhecida como maria-bola.
Ades mostrou ao aluno como o estudo das aranhas permitia atacar, no laboratório, algumas das questões filosóficas que lhe interessavam. Esses animais são considerados um bom modelo experimental para o estudo do comportamento. “É muito fácil trabalhar com aranhas em laboratório”, explicou o biólogo. “Você pode romper fios de teias, oferecer presas e ver o que elas fazem, manipular o tamanho das presas e o grau de saciedade das aranhas para entender que decisões elas tomam.” Os experimentos eram uma janela para a mente desses animais de oito patas.
“É curioso pensar que as aranhas estão nos ajudando a resolver essas questões, porque elas parecem muito distantes das criaturas a quem atribuímos uma mente”, observou Japyassú. Houve um tempo em que essas criaturas de cérebro rudimentar eram vistas pelos estudiosos como autômatos de comportamento instintivo, não muito diferentes da forma como Descartes concebia os animais. Contudo, experimentos recentes feitos pelo paulistano e por outros aracnólogos têm mostrado que as aranhas são dotadas de faculdades como a memória ou o planejamento de ações. “Elas não são essas maquinetas e podem demonstrar princípios de aprendizagem e de plasticidade cognitiva que são aplicados a animais bem mais complexos.”
Em 2015, Japyassú foi para a Universidade de St. Andrews, na Escócia, fazer pós-doutorado com Kevin Laland, biólogo inglês que estuda a circulação de informação entre animais, a sua aprendizagem e o seu comportamento social. Laland é um adepto da teoria da construção de nichos, segundo a qual a forma como os animais modificam os ambientes onde vivem – como as aranhas com suas teias – é capaz de influenciar o processo de seleção natural que age sobre eles.
Naquela temporada, o britânico levou Japyassú à casa do biólogo John Odling-Smee, o primeiro a propor, no final dos anos 80, o termo “construção de nicho”. Alguns anos antes, em razão de ter ficado cego, o pesquisador veterano havia equipado a sua residência nos arredores de Cambridge, cidade em cuja universidade fez carreira, com uma série de fios que lhe serviam de guia na hora de se locomover. “Mas isso é o mesmo que as aranhas fazem!”, espantou-se o cientista brasileiro. “Tem uma convergência cognitiva aí.”
As espécies de aranhas que constroem teias orbiculares são praticamente cegas. Para elas, as teias são como óculos que permitem perceber o mundo. “Imagine como deve ser complexo se deslocar num mundo tridimensional sendo cego”, disse o biólogo. Algumas aranhas reduzem a dificuldade do desafio tecendo uma estrutura plana – de duas dimensões – onde se deslocam com facilidade. Na teia, o animal também deixa registros do seu comportamento. “O fio diz onde a aranha já esteve e lhe transmite a memória do passado”, explicou Japyassú.
Estudar o canto dos pássaros era a ideia original do pós-doutorado do brasileiro com Laland. Mas o inglês se entusiasmou com as pesquisas do brasileiro com aranhas quando tomou conhecimento delas. “Conversamos sobre como é possível uma aranha construir a teia, como isso pode afetar a evolução de outros traços, por exemplo, o cuidado materno e a sociabilidade, e terminamos discutindo a respeito de como as aranhas usam as teias para juntar e processar informação sobre seu mundo”, disse Laland numa entrevista por e-mail. “A conversa com Japyassú foi tão fascinante que nem falamos mais de aves no resto do ano.”
Aos 55 anos, Laland é um dos líderes de um consórcio internacional de 51 cientistas de oito centros de pesquisa que propõem a revisão de alguns aspectos da teoria da evolução tal como foi consolidada no século passado, a partir dos conceitos originais propostos por Darwin. Os resultados de Japyassú com aranhas reforçavam a nova perspectiva teórica encampada por Laland, chamada de síntese evolutiva estendida. “A construção das teias parece ter imposto uma seleção no cérebro e na cognição das aranhas”, disse o biólogo inglês.
Aseda usada nas teias é uma fibra composta por proteínas que a aranha sintetiza em seu organismo e secreta pelas fiandeiras situadas na extremidade do abdome. Para Japyassú e Laland, essa estrutura tem papel central na forma como elas conhecem o mundo e devem ser consideradas como parte integrante de seu sistema cognitivo, conforme afirmaram num artigo publicado no ano passado na revista especializada Animal Cognition.
Os dois atribuíram às aranhas o que chamam de “cognição estendida”. “Essa ideia pode ajudar a entender como elas conseguiram compactar o processamento de informação para caber dentro de suas cabeças minúsculas”, explicou Japyassú, notando que o cérebro de algumas espécies é menor que a cabeça de um alfinete. Elas parecem usar o ambiente de forma a exportar, para fora do corpo, uma fração do processamento de informação necessário para a resolução dos problemas. “É como se os fios de seda fossem uma extensão do sistema nervoso.”
A ideia de cognição estendida foi formulada pela primeira vez por dois filósofos da mente, o britânico Andy Clark e o australiano David Chalmers. Num artigo dos anos 90, a dupla argumentou que o conceito de mente deveria ir além dos limites físicos do corpo e abranger também objetos do ambiente externo que desempenham papel central nos processos cognitivos. Um pedaço de papel em que alguém anota um número de telefone, por exemplo, mas também os smartphones e demais dispositivos que usamos para armazenar e processar informações, seriam parte integrante da mente estendida de um indivíduo.
Em entrevista por Skype, Chalmers disse que não se surpreende ao ver o conceito de cognição estendida aplicado a outros animais além dos humanos. “Você pode tentar aplicá-lo a qualquer animal que faça uso extensivo de ferramentas em seu ambiente, e as aranhas são um caso paradigmático.” O filósofo sacou seu celular para fazer uma comparação. “Eu uso o Google Maps para me locomover em Nova York, e ele é uma extensão do meu sistema de navegação. Talvez as teias desempenhem um papel parecido para as aranhas.”
A hipótese de Japyassú e Laland era não apenas original, mas testável em laboratório. Para prová-la, eles se valeram de um critério proposto por David Kaplan, filósofo da biologia e da ciência cognitiva, professor da Universidade Macquarie, em Sydney, na Austrália. Para que um elemento externo do ambiente possa ser considerado parte do sistema cognitivo de um animal, argumenta Kaplan, é preciso que esse elemento e o animal afetem mutuamente um ao outro. Considere, por exemplo, um cego que se locomove com a ajuda de uma bengala: ela afetaria a percepção do indivíduo caso mudasse de tamanho ou consistência, mas é incapaz de se modificar em resposta a mudanças no estado mental do cego. Portanto, não é possível considerar que a cognição se estende ao objeto.
Para provar que a teia é parte ativa da cognição das aranhas, seria preciso demonstrar, por um lado, que elas conseguem modificar a disposição dos fios e, por outro lado, que a própria estrutura da teia pode interferir em seu comportamento. Japyassú e Laland, entretanto, não precisaram conduzir novos experimentos para demonstrar a hipótese, pois a literatura técnica já dispunha de exemplos suficientes – incluindo o trabalho de 2008 em que o brasileiro e suas alunas relataram que as aranhas de teia orbicular podem pescar presas.
Os experimentos que documentam a influência das mais variadas drogas sobre o formato das teias são abundantes nos anais da aracnologia. Foram impulsionados por uma descoberta casual feita, em 1948, pelo zoólogo alemão Hans Peters, que estudava as aranhas-de-jardim Araneus diadematus. Como elas construíam suas teias de madrugada, Peters imaginou que, com a ajuda de algum estímulo químico, talvez conseguisse pôr as aranhas para trabalhar de dia, em horário bem mais conveniente para sua observação. Recorreu então a um colega farmacologista, o suíço Peter Witt, que teve a ideia de dar anfetamina para os animais. A droga não afetou o horário de trabalho das aranhas, que continuaram a tecer à noite, mas suas teias tinham formas muitos mais irregulares.
O relato de Peters abriu as portas para uma enxurrada de experimentos nos quais todo tipo de droga foi oferecido às aranhas, geralmente dissolvida em água com açúcar e administrada na boca do animal. Embaladas pelo calmante diazepam, as aranhas tecem uma teia miúda e regular; chapadas de maconha, elas constroem uma teia com falhas, mas que ainda guarda alguma organização circular; inebriadas pelo LSD, criam uma estrutura mais regular que de hábito; uma dose de cafeína, por sua vez, as leva a produzir uma trama caótica e aparentemente sem nexo. Experimentos assim caíram em desuso com o tempo, mas as imagens das teias distorcidas são bastante populares na internet.
Outro exemplo de como uma alteração no estado da aranha interfere nas propriedades da teia é o caso da Cyclosa octotuberculata, estudada pelo cientista japonês Kensuke Nakata. Quando está com muita fome, ela estica mais os fios da teia, de modo a torná-los mais sensíveis para a transmissão de vibrações de presas menores, que seriam ignoradas em outras circunstâncias. É como se a aranha ajustasse o grau de seus óculos para ver com mais clareza detalhes que lhe interessam. “Um estado interno – a fome – alterou propriedades do fio da teia”, explicou Japyassú. “Em outras palavras, ela usou o fio como um processador de informação.”
Nakata testou também o caminho reverso, tensionando artificialmente os fios da teia de uma aranha saciada. Os animais invariavelmente capturaram as pequenas presas coladas a esses fios, mesmo já estando alimentados. “O fio tem um papel importante na decisão da aranha de atacar ou não a presa”, concluiu Japyassú. “Não pode ser considerado um transmissor ou filtro passivo da informação vibratória.”
Os experimentos em que as aranhas de teia orbital se mostraram capazes de pescar, feitos por Japyassú na época do Instituto Butantan, lhe ofereciam mais um argumento. Neles, uma manipulação do ambiente externo – a intervenção na teia – levara a uma mudança no comportamento do artrópode, motivando a captura inabitual. “Como os fios da teia manipulam a aranha, mas também são manipulados por ela, podemos dizer que fazem parte do seu sistema cognitivo.”
“Como Descartes reagiria ao ver um artigo científico com o título ‘Cognição em aranhas’?” A pergunta foi formulada por dois especialistas na matéria, Robert Jackson e Fiona Cross, da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, num artigo de 2011 que tinha precisamente esse título. Ao longo de 59 páginas, a dupla resumiu proezas notáveis desses artrópodes observadas em laboratório ou no campo. Certas espécies são capazes de feitos que pressupõem algum conhecimento do mundo: podem planejar estratégias engenhosas de ataque, enganar suas presas e lembrar o tipo, o tamanho, a localização e até a quantidade de animais capturados.
Jackson é um aracnólogo americano que atua há mais de quarenta anos na área e foi o orientador de doutorado de Cross – neozelandesa que costuma ser chamada pela imprensa de seu país de “Dr. Spider” (“Doutora Aranha”, em inglês). Muitos dos resultados relatados pela dupla de pesquisadores foram obtidos por eles próprios em experimentos com animais do gênero Portia, aranhas saltadoras que eles investigam no Quênia. Diferentemente das espécies de teia orbicular pesquisadas por Japyassú, as Portia têm ótima acuidade visual, comparável à de um gato, e costumam atacar com um salto certeiro suas presas, geralmente outras aranhas.
Em sua caçada, a Portia fimbriata pode fingir que é um inseto, simulando as vibrações desses animais sobre a teia da vítima. Quando a aranha residente vem conferir a refeição que esperava encontrar, é atacada pela invasora à espreita. Já a Portia labiata adotará estratégias diferentes de ataque, a depender do comportamento da presa: se a aranha residente estiver cuidando de seus ovos, menos propensa a se defender, a predadora não hesitará em atacar a vítima de frente; se estiver atenta, a invasora fará um desvio e a golpeará por trás. “Usando linguagem casual, poderíamos dizer que, uma vez que identifica o problema (como alcançar a presa), a Portia pensa sobre ele, entende a solução e age”, escreveram Jackson e Cross.
Os especialistas da Universidade de Canterbury reconhecem a importância das teias para a percepção das aranhas, mas se recusam a atribuir a elas a função proposta por Japyassú e Laland. “Dizer que as teias são uma ‘extensão’ [do sistema cognitivo] seria enganoso, pois é improvável que a aranha experimente a teia como uma extensão do que quer que seja”, escreveram no artigo de 2011. Na sua visão, a teia seria aquilo que o biólogo britânico Richard Dawkins chamou de um “fenótipo estendido”, ou seja, um produto dos genes do animal que se manifesta não em seu organismo, mas no próprio ambiente, da mesma forma que o ninho de um pássaro ou o dique construído por um castor.
“Não estamos muito convencidos de que a aranha esteja usando a teia para, literalmente, pensar”, explicou-me Cross por e-mail, em entrevista cujas respostas foram assinadas também por Jackson. Afirmaram que as teias podem ser consideradas, junto com os órgãos da aranha envolvidos na sua construção, um sistema sensorial que processa sinais, mas que não veem nenhum elemento de cognição no processo. Ressaltaram, porém, que não havia teia envolvida na maioria dos experimentos que eles fizeram com as aranhas saltadoras. “A Portia até pode usar a teia de sua presa, mas não se vale dela como parte de seu sistema cognitivo”, escreveram.
Jackson e Cross dão ao termo “cognição” uma definição mais restritiva que a adotada por Japyassú. “Usamos a representação como critério para dizer se um comportamento das aranhas é cognitivo”, afirmaram. Em outras palavras, o animal precisa ter uma imagem mental do mundo para que se possa falar em cognição. “A representação é necessária no contexto da memória de trabalho, da violação da expectativa ou do planejamento de desvios”, continuaram os pesquisadores, referindo-se a comportamentos que haviam observado nas Portia. “Essas tarefas pertencem claramente ao domínio da cognição e requerem que um animal ‘pense’.”
David Chalmers, um dos proponentes do conceito de cognição estendida, não acha descabido que se use o verbo “pensar” para caracterizar o comportamento das aranhas. “Parece provável que elas representem o mundo”, disse o filósofo australiano. “Esses animais têm objetivos e tomam decisões para atingi-los, e podemos considerar isso uma forma primitiva de pensamento. A questão que fica em aberto é se a teia contribui para essa representação de mundo.”
Hilton Japyassú recebe as críticas ao seu trabalho com naturalidade e as atribui ao conflito que há entre os estudiosos da cognição. Alinhado com Chalmers, Clark e outros pensadores atuais, ele prefere não restringir esse fenômeno aos processos mentais que acontecem dentro dos limites do organismo. O brasileiro trabalha com uma definição abrangente de cognição, que abarca todo o processo de aquisição, processamento, estocagem e uso da informação. “Mas tem gente que vai insistir que a cognição é só dentro do cérebro.”
Japyassú acha que a definição de cognição deveria refletir a pluralidade com que ela se manifesta nos seres vivos. “A cognição não é um fenômeno único, ela surgiu possivelmente múltiplas vezes ao longo da evolução, com qualidades distintas em grupos de animais distintos”, afirmou. “Não tenho dúvidas de que nós, os humanos, temos uma cognição do tipo cartesiana”, disse o biólogo, dando o braço a torcer ao tio frade com quem ele discutia filosofia da mente. “Temos o pensamento abstrato e representações internas do mundo, mas isso é só um aspecto da cognição.” Talvez não seja sequer o aspecto predominante no comportamento humano, continuou. “As pessoas não pensam logicamente o tempo todo, quando andam na rua ou pegam um ônibus. Elas estão interagindo com o mundo e usando outro tipo de cognição.”
Também incomoda o biólogo brasileiro a ideia de que a informação para um comportamento esteja codificada nos genes e que o ambiente seja apenas um cenário para as ações do animal. Por isso lhe parece inadequado considerar a teia apenas um fenótipo estendido da aranha, conforme a imagem de Dawkins. “Essa ideia é bonita, e o Dawkins é muito bom com metáforas, mas dizer que os cupinzeiros ou diques feitos por castores são o fruto de um conjunto de genes é uma simplificação muito grande”, protestou Japyassú, que prefere adotar uma visão mais sistêmica da informação e da comunicação.
Laland tampouco se espantou com as críticas às conclusões de seu artigo. “Trabalhos inovadores sempre serão questionados, pois para os tradicionalistas o novo jeito de pensar será difícil, e suas implicações, desafiadoras, especialmente se elas enfraquecerem as pesquisas deles”, escreveu o escocês. “Mas há meios perfeitamente factíveis para fortalecer nossos argumentos.” No artigo publicado na revista Animal Cognition, ele e Japyassú afirmam que o uso de ferramentas genéticas para fazer a análise comparada de aracnídeos e outros pequenos invertebrados pode apontar tendências evolutivas que confirmem a emergência da cognição estendida – um caminho que Laland pretende trilhar nos próximos anos.
Na Bahia há nove anos, Japyassú continua a pesquisar aranhas, embora não mais em tempo integral, como fazia nos tempos do Butantan – tem estudado também o comportamento de outros animais, como aves e roedores. Só agora está orientando a primeira tese de doutorado sobre aranhas em Salvador. “É difícil convencer alunos a trabalhar com esses bichos”, brincou. “A maioria sai da graduação querendo trabalhar com espécies bonitinhas e carismáticas.”
O doutorando que pegou o bastão – o biólogo paulista Leonardo Resende – está pesquisando uma espécie de aranhas que vivem em colônias, a Anelosimus eximius. É um caso raro entre esses animais: das 47 mil espécies conhecidas, apenas cerca de trinta são consideradas sociais. “A aranha é um animal solitário, canibal e predador”, explicou Japyassú. “Elas são muito agressivas e comem umas às outras.”
As Anelosimus eximius são aranhas avermelhadas de 2,5 centímetros que ocorrem em ambientes de floresta. Vivem em grandes teias coletivas que podem passar de 10 metros de extensão e abrigar milhares de indivíduos. O núcleo da teia – um grande lençol tridimensional de seda repleto de folhas e galhos caídos das árvores – é conectado aos galhos da vegetação acima por uma profusão de fios. “Pense numa barca”, propôs Japyassú. “Esses fios funcionam como a vela. As presas vêm voando ou pulam sobre a vegetação, batem na vela e caem até chegar ao lençol.” Resistente, a trama de seda permite capturar esperanças, gafanhotos e outras presas de grande porte que escapariam com facilidade das teias mais frágeis construí-das por aranhas solitárias.
Presas grandes são garantia de alimento por um bom tempo para a colônia. Quando um inseto é capturado, as aranhas atacam em bando, por todos os lados. Algumas avançam primeiro – são aquelas que os cientistas chamam de “ousadas”. Outras chegam um pouco depois, quando a presa já não está mais se debatendo; e há ainda as que aparecem apenas no fim do processo, para comer a presa – são as “tímidas”. Estas últimas podem parecer aproveitadoras, mas são elas que se ocupam da manutenção da teia ou do cuidado com a prole. As aranhas sociais desempenham tarefas distintas na colônia, embora não manifestem as diferenças fisiológicas encontradas nas castas de insetos sociais como abelhas ou formigas.
Resende – um rapaz de 27 anos, calvo e de óculos – explicou que a personalidade da aranha é medida em laboratório num “teste de audácia” que consiste em disparar uma lufada de ar contra o animal, simulando a aproximação de um predador aéreo. A reação instintiva da aranha é se encolher. “Medimos o tempo que o indivíduo leva para voltar a se locomover”, explicou o biólogo. “Os que demoram muito estão no lado mais tímido do espectro; os que se mexem logo são os mais ousados.”
Estudos anteriores mostraram que as aranhas ousadas são as que ficam na periferia da teia e reagem primeiro, em caso de ameaça; já as mais tímidas preferem as áreas mais protegidas no interior da teia e ficam às vezes escondidas embaixo de folhas aprisionadas no lençol de seda. A hipótese por trás da pesquisa de Resende é que a organização social da colônia só foi possível graças às teias complexas. “Acreditamos que foi a construção de nicho – a modificação do ambiente pela elaboração da teia – que promoveu o surgimento da separação de personalidades que encontramos nas aranhas sociais”, explicou o biólogo.
Para provar sua hipótese, Resende está realizando experimentos com colônias artificiais de Anelosimus eximius montadas no laboratório de Japyassú na UFBA. As aranhas são submetidas ao teste de audácia e marcadas, uma a uma, com tinta permanente colorida (aplicada com um palito de dente) para identificar sua personalidade. Depois, são distribuídas por caixas onde constroem suas teias. Parte delas vai para caixas vazias, e as demais ficam em recipientes mais elaborados, com pedaços de papelão simulando galhos e folhas. “O resultado esperado é que a estrutura complexa promova indivíduos mais especializados, com personalidades bem definidas e resistentes às perturbações”, explicou o pesquisador.
Resende já fez uma primeira leva de testes com animais que coletou num fragmento de Mata Atlântica na região metropolitana de Salvador, de onde as aranhas e pedaços de teia foram trazidos em sacos de lixo. Muitas delas morreram durante o experimento – a Anelosimus eximius é uma espécie difícil de criar em laboratório, e as colônias experimentais não costumam durar muito. A fim de reunir um volume de dados suficiente para tirar conclusões com validade estatística para sua tese de doutorado, o biólogo vai fazer uma nova rodada de testes com aranhas que pretende coletar em junho.
Caso os animais de fato apresentem o comportamento previsto por Resende, sua pesquisa deve dar novos argumentos em favor da tese da cognição estendida em aranhas. Ele notou que as teias não são estáticas – as aranhas vão transformando a posição da vela de forma a capturar mais presas e modificando o seu formato em função da direção do vento e das folhas que caem. “E a estrutura da teia, por sua vez, modela o comportamento dos indivíduos”, disse. “Está aí o caminho de mão dupla que permite que a gente fale em cognição estendida.” O doutorando pôs-se então a divagar sobre as implicações de se aplicar esse conceito a colônias inteiras de aranhas, e não apenas a indivíduos solitários, como os estudados por seu orientador. “Poderíamos pensar não mais no indivíduo afetado pela teia, mas na colônia como um todo tendo uma espécie de cognição coletiva, um ambiente que as aranhas vivenciam juntas, interagindo entre si, modificando o comportamento uma da outra e a estrutura da teia”, especulou.