Tem papinha na plateia
A primeira infância vai ao teatro
Fábio Fujita | Edição 64, Janeiro 2012
O saguão do teatro em que os espetáculos seriam encenados não chegava a ser amplo, mas o público a quem eles se destinavam se acomodou sem maiores problemas. Era uma manhã de sábado no Espaço Sobrevento, na Zona Leste de São Paulo, que apresentava, na sequência, as peças Bailarina e Meu Jardim. A meia hora do início da sessão, o público vinha chegando e socializando.
Com ingresso assegurado, João logo tomou para si um pato de madeira com rodinhas que achou por ali. Levou-o para passear. Após alguns giros pelo saguão, cedeu ao cansaço e se deixou estatelar num tapete que simulava um chão de pedregulhos. À distância, seu pai temeu que tivesse se machucado e saiu atabalhoado em seu socorro. “Quanta inocência”, deve ter pensado João, que testemunhou a seguir a tremenda dificuldade do pai para acomodar seus glúteos num dos minipufes ali espalhados. Tivesse um mínimo de proficiência verbal, João teria enquadrado o progenitor: que modos eram aqueles? Com 1 ano e 2 meses, ele era um dos espectadores que, por assim dizer, aguardavam o início de espetáculos criados especificamente para a primeira infância: bebês com idade entre 6 meses e 3 anos.
O pato de madeira que fez a cabeça de Joãozinho era um dos objetos soltos pelo saguão, que fazia as vezes de brinquedoteca. Não obstante, a maioria dos bebês ignorava bonecos, quebra-cabeças e outros joguetes, hipnotizados que estavam diante de tantos semelhantes. A ideia da iniciativa era justamente oferecer aos bebês uma oportunidade para o convívio social além do núcleo familiar – coisa rara na idade. “Os pais acabam impondo uma espécie de resguardo até que os bebês possam se comportar de uma certa maneira, sem chorar, gritar ou incomodar”, justificou Luiz André Cherubini, um dos mentores do projeto e ator principal de Meu Jardim. Os pais se surpreendiam ao flagrar os pequenos em animada interação com seus pares.
Quando um bebê chorão se aproximou, Joãozinho o recebeu como um bom anfitrião. Para sinalizar suas melhores intenções, ofereceu-lhe o pato de madeira. O recém-chegado, porém, fez um grande bico e não quis conversa. Resignado, João decidiu mudar de foco. Para chamar a atenção da doce Luiza, de 1 ano e 3 meses, vestida num aconchegante macaquinho de camurça, trocou o pato por um chocalho. Luiza chegou a dar alguma atenção ao colega enquanto este sacudia o ruidoso objeto, mas partiu em desabalada disparada tão logo ele deu brecha, até parar no abraço do papai. O pretendente entendeu ali que há tempo para tudo na vida. Que esperasse alguns anos mais.
Antesde serem convidados a se dirigir à sala onde os espetáculos seriam encenados, os pais ouviram instruções. Deviam evitar as orientações óbvias à prole durante o espetáculo, do tipo “veja filho, que bonitinho!”. “Imaginem se todos os pais fizerem isso”, brincou a moça da produção, e todos riram em uníssono, como se aquele fosse um comportamento típico dos pais dos outros. “O pai tenta direcionar o olhar da criança, mas ela deve olhar para onde quiser”, explicou Cherubini.
Carrinhos de bebê podiam ser guardados num corredor em que uma placa indicava: “Permitido estacionar” (naquela manhã, não foram registrados problemas com flanelinhas). Se a criança chorasse durante a apresentação, a recomendação era que fosse tirada da sala até que se acalmasse. “Imagina-se que teatro para bebês seja uma gritaria, uma choradeira, mas os espetáculos são absolutamente silenciosos”, observou Cherubini. Alguns choros e ruídos puderam ser ouvidos no início de Bailarina, monólogo em que a atriz Sandra Vargas falava da caixinha de música que ganhara de presente da filha. De fato, assim que ecoou a música, os bebês se calaram como se tivessem ensaiado, tomados por um deslumbramento coletivo.
Meia hora depois, ao final do primeiro espetáculo, Sandra foi rodeada por bebês nos colos das mães. Alguns apontaram a bailarina na caixinha, outros mexeram nos colares da atriz, que, escolada, interagiu com eles falando normalmente, sem recorrer a onomatopeias de ternura.
No intervalo para a peça seguinte, Meu Jardim, um pai foi até o café e comprou um refresco de uva. A filha o olhou com certo desdém, talvez em sinal de reprovação – se ela conseguira resistir às papinhas, achocolatados e demais tentações da vitrine, ele também deveria ser capaz desse desprendimento. Após a assistente de produção reiterar as orientações para os pais, teve início a segunda peça.
Meu Jardim conta a história de um homem que, no coração do deserto, decide usar as sementes que juntou para fazer um jardim e, assim, diminuir a solidão. As mudanças constantes de sons e luz para mimetizar sol, vento e tempestade cativaram a atenção dos bebês ainda mais do que em Bailarina. Conforme as árvores e flores cresciam no desenrolar da trama, os animais eram atraídos ao jardim. Os bichos eram apresentados na forma de bonecos de pano e marionetes, causando risos, sustos e espanto. Uma mãe não se conteve: “Olha, filho, o cavalinho!” Outro bebê, curioso, encarou, entre atônito e perplexo, o boneco de uma galinha que cacarejava.
Sem divisão clara entre palco e plateia, alguns bebês foram postos em assentos especiais almofadados, no espaço da primeira fileira. Para Luiz André Cherubini, as peças têm o mérito de derrubar o mito segundo o qual as crianças daquela idade só ficam no colo dos pais. “No espetáculo, eles veem que não são tão importantes assim, que a criança tem a sua independência”, disse.
O melhor exemplo foi dado pelo garotão Matheus, de 8 meses. Sem hesitar, escapou da mãe e cruzou o palco engatinhando, em plena apresentação. Joãozinho tentou imitá-lo, no que foi contido pelas pernas, enquanto Luiza podia ser vista dando pulinhos de empolgação num canto. A certa altura, enquanto o personagem de Cherubini dormia em cena, Matheus olhou para o corpo estirado do colega de palco e abriu o berreiro. Teria entendido que o amigo batera as botas? O motivo foi uma causa mais corriqueira, conforme a mãe esclareceu depois. “Ele chorou porque fez caquinha.”