ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Teste da seringa
Conselhos a um jovem comediante
Renato Terra | Edição 90, Março 2014
“Chama o bombeiro!”, gritou, de pé no meio do auditório, um homem com roupa de mulher. Sem reagir ao alerta, uma moça vestida de doméstica colocou uma prótese na boca, virou-se para a pessoa sentada ao lado e perguntou: “Melhor com ou sem dentadura?” Algumas cadeiras adiante, um homenzarrão com roupa de bebê ajeitava o babador.
Diante de todos, em cima do palco, um senhor de idade reclamava do INSS e desabafava. “Outro dia, olhei para minha patroa e senti uma quentura na barriga. Achei que era amor.” Com as mãos na altura do umbigo, esclareceu: “Mas era fome. Comi e passou.” Antes de se despedir, mostrou-se conformado com a sorte: “A gente vai levando, vai levando.”
Era o segundo dia da oficina de humor “Tragam seus Personagens”, realizada no fim de janeiro na Zona Sul carioca. O humorista Yuri Lima Cabral apresentava seu personagem, seu Lazo, para a professora – a atriz e diretora Carmen Frenzel. No fundo da sala, outros atores se aprontavam para entrar em cena.
Vinte e um aspirantes a humorista pagaram 1 100 reais para que Carmen os ajudasse a lapidar seus personagens ao longo da semana. No último dia do curso, cada um se apresentaria diante do veterano Maurício Sherman. Nome conhecido do humor da TV Globo, ele já dirigiu Chico Anysio, Jô Soares e Os Trapalhões. Hoje, é responsável pelo Zorra Total, no ar há quinze anos nas noites de sábado. A expectativa dos alunos era chamar a atenção do diretor e quem sabe conseguir um teste para o humorístico.
Antes de apostar as fichas em seu Lazo, Yuri Cabral havia apresentado outros tipos, como um estilista histriônico ou um nordestino irritadiço. A professora disse que tinha gostado muito do aposentado e incentivou o uso do bordão “A gente vai levando, vai levando”. “Você deu muita humanidade ao personagem”, completou.
No começo do curso, Carmen disse que sabia o que Sherman queria. “Ele vai citar o Chico Anysio e dizer que os melhores personagens são os que nascem da observação das pessoas próximas”, apostou. Contou também que o diretor tinha ressalvas com trocas de gênero. “Ele não costuma curtir homem fazendo mulher e vice-versa. Tem que estar num nível extraordinário para agradá-lo.” Avisou ainda que cada ator deveria escolher um único personagem para desenvolver no curso e que a apresentação final teria no máximo quatro minutos.
Ao longo da semana, Carmen assistiu pacientemente às apresentações de todos. Depois de cada número, os atores sentavam no palco e ouviam seus conselhos. Com uma abordagem cuidadosa, mas objetiva, ela orientou dois bombeiros medrosos, uma perua desquitada, uma empregada doméstica deslumbrada com as redes sociais, um rapper que não sabia rimar, um carioca pavoroso que se julgava Don Juan.
Alguns humoristas trouxeram seus personagens prontos e testaram sotaques, figurinos e trejeitos. Aproveitaram os toques da professora para aprimorar o texto, acertar o timing das piadas e definir bordões. Ao traficante Beto Rei, interpretado por Renata Torres, Carmen recomendou eliminar referências à violência e às UPPs. “Sábado à noite é dia de criança e idoso ver tevê”, justificou. “Tem que aliviar.”
A atriz pernambucana Dani Sanders não tinha a menor ideia do personagem que faria. “Estou aqui porque meus amigos dizem que eu sou engraçada”, disse, arrancando risadas. Dona de um humor espontâneo, ela relatou, com ar frustrado, uma série de testes em que foi reprovada por causa do sotaque. Provocou mais risos. “O personagem é você mesma”, resumiu Carmen. No dia seguinte, Dani apareceu de peruca ruiva, vestido de oncinha e lapidou o bordão “Eu fico doida, doida, doida!”
Maurício Sherman chegou para avaliar os jovens humoristas às três da tarde de um domingo. Havia feito 83 anos na véspera. Enquanto almoçava, antes das apresentações, disse que vivia buscando novidade. “A longevidade do Zorra Total se deve à renovação constante”, explicou. Lembrou que o programa já exibiu mais de 5 mil esquetes, e disse que não é possível compará-lo ao humor da internet, do teatro ou da tevê a cabo. “Quanto tempo demoramos para exibir um beijo gay na tevê aberta?”
Sherman manifestou impaciência com alguns comediantes da nova geração. “Tem uma turma que quer fazer humor de cara limpa”, afirmou. “Não são comediantes, são contadores de história. E há uma grande diferença entre o contador de histórias e o intérprete.” Em seguida confirmou a profecia de Carmen Frenzel: “O Chico Anysio possuía as duas características.”
Para assistir aos alunos, o diretor sentou-se ao lado da professora na primeira fila. Reagiu de maneira lacônica aos primeiros personagens. “No final a gente fala”, limitou-se a dizer ao fim dos primeiros números. Mas não se conteve e foi mais incisivo à medida que as apresentações se sucediam. “Falta amadurecer mais o personagem, falta verdade”, disse para o rapper ruim de rima. Poucos personagens despertaram seu interesse. Sherman conversou longamente com a perua de meia-idade e com o traficante Beto Rei, e pediu que fizessem outros personagens. Seu Lazo também mereceu um elogio. “Você tem talento, o velho é muito bom.”
Ao final, reuniu os pretendentes no palco. Com algum cuidado, disse ter ficado decepcionado com a qualidade dos textos e ressaltou que a concorrência anda ingrata. “Está na moda ser humorista. É o que as meninas gostam. Já se foi a época dos surfistas”, brincou.
Antes de avaliar os personagens, Sherman havia dito que o humor pode ter muitas variantes. “Mas tudo pode ser resumido em um caminho: ter graça.” Antes de se despedir, o diretor citou um exemplo que tinha em alta conta – um diálogo que havia inspirado a criação do quadro do Zorra Total ambientado num vagão de metrô. “Esse cara atrás de mim é enfermeiro?” Após uma breve pausa, ele mesmo arrematou: “É que estou sentindo a seringa dele.” Sherman abriu os braços com as mãos espalmadas para cima, como se mostrasse: “É isso!”