Ilustração feita a partir de uma foto de Maria Stella de Freitas Lemos tirada em 1992, durante o casamento de uma de suas netas: com o vestido de gorgorão azul, o preferido de Tetela CRÉDITO: CAIO BORGES_2022
Tetela e a gêmea louca
Os bolos, os babados e os deboches de minha avó
Fernanda da Escóssia | Edição 187, Abril 2022
Quando eu não tinha esse olhar de olheiras que tenho hoje, mas já acordava muito cedo, esperava com o coração aos pulos o dia em que Tetela mataria o porco. Tetela era minha avó materna e criava porcos no quintal de sua casa em Fortaleza. Engordava os bichos com farelo, milho e tudo o que sobrasse, para que estivessem roliços na ocasião propícia, fosse o batizado de um neto, fosse o aniversário de um filho.
Nossas casas eram vizinhas, unidas pelo quintal. De manhãzinha, eu chegava na cozinha dela, de pijama e pés descalços.
– Bença, vó.
– Deus te abençoe – ela respondia, sem parar de fazer o que estava fazendo: encher linguiça, no sentido literal.
Àquela altura, o porco já estava destripado e cortado em pedaços. Era a hora de preparar as linguiças. Com uma vareta muito fina e comprida, ela esticava as tripas do bicho, já limpadas à exaustão, e as preenchia com os miúdos temperados.
– Por isso, quando alguém é muito magro, se diz que parece um pau de virar tripa, tás vendo? [Ela engolia a primeira sílaba de “estás”, como é comum no interior do Ceará, onde crescera.]
Tetela nunca foi alta, mas sempre me pareceu imensa. Era opulenta de carnes, com peitos grandes, braços roliços, coxas fortes. Tinha aversão à magreza. Para ela, magreza era sinal de doença, quem sabe até de caráter duvidoso. Seus olhos azuis faiscavam, ela se enchia de pena quando comentava: “Fulana está morta de magra.” Ou: “Está magra, cadavérica.” Ou: “Muito magra, horrorosa.”
As netas sofriam com seus elogios ao contrário: “Tás tão famosa, gorda”, dizia, achando que nos agradava. Era a senha para ficarmos três dias sem comer, quem sabe para merecer depois um “Tás morta de magra, horrorosa”. Para ninguém cair na tentação da magreza, Tetela caprichava na comilança oferecida em sua mesa: seu rosbife era memorável, e ela fazia um bolo preto tão gostoso e com tantos ingredientes que o apelidamos de “Bolo Espera-me no Céu” – quem abusasse da guloseima corria o risco de acordar do outro lado. Seu doce de leite, bem, se alguém quisesse arrumar briga com ela, bastava insinuar que tinha errado o ponto do doce de leite.
Maria Stella de Freitas Lemos, que também assinava Maristela, ficou viúva em junho de 1947, aos 31 anos e com sete filhos para cuidar – o mais velho tinha 10 anos. Pouco antes da morte do marido, ela havia conseguido um emprego no Porto de Fortaleza. Meu avô, Jesus, operário de uma fábrica de sabão, tentou impedir o que lhe parecia um despautério, mas ela fincou pé: precisava trabalhar para ajudar nas despesas. Depois da morte dele, aos 39 anos, Tetela sustentou a casa sozinha graças ao emprego no porto e às noites que varava pedalando a máquina de costura. Fazia vestidos de todo tipo, inclusive de noiva, como o que minha mãe usou em seu casamento. Só tinha um problema: minha avó mudava os modelos sugeridos pelas clientes, acrescentando sempre um babado, um laço extra.
Guardo até hoje a última peça de roupa costurada por ela, um vestidinho caseiro feito para mim, naturalmente com um babado inexistente no desenho original. Em seu quarto de costura havia um móvel que ocupava meia parede, cheio de gavetinhas. Cada uma guardava um tipo de botão, de agulha, um rolo de linha de determinada cor… Penso que editar textos – meu trabalho na piauí – é um pouco como costurar, cortando e moldando o tecido para obter uma nova construção (mas sem os babados, claro).
Depois que Tetela morreu, em 1993, aos 77 anos, por muito tempo minha mãe sonhou com o barulho da máquina de costura na casa ao lado. Um dia, fizemos as contas: pelo casarão de minha avó passaram mais de trinta pessoas, que ficaram lá por alguns dias ou por muito tempo. Era gente que vinha do interior estudar, trabalhar, buscar emprego, fazer tratamento de saúde. Com sua generosidade, ela acolhia quem chegasse.
Quando meu pai pediu minha mãe em casamento, Tetela mandou um emissário à cidade onde ele vivia, em Mossoró, no Rio Grande de Norte, para se informar sobre o pretendente. O informante voltou preocupado:
– É um rapaz bom, dona Maristela, de uma família de jornalistas. Ficou viúvo moço, é bom pai, bom filho… Só tem um defeito: gosta muito de política.
– Então não tem problema, eu também gosto. Isso não é defeito, é qualidade.
Na política, ela foi conservadora. Na vida, inovou, ao ser dona do próprio nariz num tempo em que das mulheres esperava-se apenas obediência. Anticomunista convicta, depois de ler Olga, o livro de Fernando Morais, encantou-se com a personagem. Nos terços que rezava todas as noites em intenção das almas dos falecidos, passou a incluir Olga Benário, a judia comunista entregue aos nazistas em 1936 pelo governo de Getúlio Vargas.
Era das pessoas mais espirituosas que conheci. Gargalhava alto e pensava rápido. Tinha um repertório, famoso entre a parentada, de palavrões censurados para menores e expressões que evocavam partes da anatomia de localização insólita, como “entre o cu e o rabo”. Assistia às novelas confundindo realidade e ficção: “Essa nunca me enganou, desde aquela outra novela já não valia nada!”
Um dia, Tetela cismou de vender leite para completar o orçamento doméstico. Eu voltava da escola e parava na casa de muro baixo para ajudar a encher as vasilhas com a medida de litro. Ela pagava à vista ao fornecedor que trazia o leite de um sítio próximo, mas vendia fiado aos fregueses, anotando, com sua letra caprichosa, todas as contas em cadernos pretos de capa dura. Por isso, estava sempre no vermelho e, quando o leite talhava, o prejuízo era maior ainda, pois não tinha como vender o produto.
Fazia aniversário em 1° de abril, dia em que o passatempo de filhos, sobrinhos e netos era passar trotes para ela e ver se caía nas nossas mentiras. Num desses telefonemas, animou-se com um cliente, que se apresentou como doutor Otávio e queria comprar 50 litros de leite de uma tacada só, para uma festa.
– Mas a senhora tem 50 litros para vender?
– Claro, fique tranquilo, doutor. [Ela adorava um doutor.] Meus fornecedores garantem. [O fornecedor, coitado, era um só, um velhinho que mal podia com os galões de leite.]
– Mas, dona Maristela, e se o leite talhar?
Foi quando ela percebeu o trote. Não se encabulou:
– Se talhar, doutor, eu enfio o leite todinho naquele seu lugar.
Outra vez, quando enfrentava uma de suas enxaquecas, um incauto bateu com o carro no muro da casa dela. Parte do muro veio abaixo, junto com a grade na qual ela cultivava seus jasmins.
O dono do carro tocou a campainha da casa de Tetela. Ela apareceu à porta, gordíssima, de camisola branca, com um pano na cabeça. Aos berros, xingou o homem de “fela da puta” (sim, era a expressão que ela usava). E daí para baixo. “Você derrubou meu muro, acabou com meus jasmins…” O homem tentou se explicar, dizendo que pagaria por todo o estrago, mas ela se recusou a ouvir: continuou a cobri-lo de impropérios.
No dia seguinte, o homem voltou para tentar reparar o malfeito. Tetela estava chegando da rua, penteada e bem-arrumada, talvez com seu vestido favorito, o de gorgorão azul. O homem disse que tinha derrubado o muro sem querer e gostaria de falar com a dona da casa.
– Pois não, sou eu mesma – ela disse.
– A senhora? Mas ontem conversei com uma mulher gorda, bem nervosa…
– Ah, meu senhor, não ligue não. A dona da casa sou eu, Maristela Freitas. Aquela é minha irmã gêmea. Ela é louca, não repare. O senhor nem precisa pagar nada.
Tetela era assim, imensa.
Quando eu preciso chamar minha gêmea louca para resolver alguma pendência, é dessa história que me lembro. E só depois entra em cena a dona da casa, afável e elegante, em seu vestido de gorgorão azul.
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