The voices
Peripécias do avatar vocal de Tom Cruise, Al Pacino e Richard Gere
Tomás Chiaverini | Edição 54, Março 2011
Pressionado de todo lado, o chefe dos detetives deu um anel direto para o coronel, na expectativa de que este lhe adiantasse o que fosse sobre os dois cadáveres recém-desovados no tristemente famoso Vale do Silicone. Teve sorte:
– Sim, já sabemos o principal – informou-lhe o coronel, com a satisfação de quem vive de matar charadas. – Ambos morreram de encontros ruins.
– Tem certeza? É a mesma causa mortis do macaquinho do Indiana Jones!
A vida em versão brasileira não é cor-de-rosa, como bem sabe o ator carioca Ricardo Schnetzer –, e não só pelo risco permanente de ser humilhado pela tradução. Aos 57 anos, e depois de três décadas de atuação em superproduções do cinema mundial, ele mora num quarto e sala no Rio de Janeiro, costuma ter alguma dor de cabeça para pagar as contas do mês e, quando caminha pelas ruas, não precisa se preocupar com o assédio dos fãs, vítima que é do mais perfeito anonimato. Para o distinto público, ele não é um nome e, menos ainda, um rosto. Por outro lado, quando abre a boca… Dono de um timbre grave, modulado por quarenta anos de tabagismo militante, Schnetzer fala por Al Pacino, Tom Cruise, Richard Gere e Nicolas Cage, entre outros mais ou menos famosos que, em versão brasileira, encontraram nele o seu grande porta-voz.
Num estúdio de dublagem no centro da cidade, de pé junto ao microfone, olhos fixos no televisor da saleta de gravação, Schnetzer exclama:
– Clark, me dê uma mão aqui!
Em vinte minutos de trabalho, ele cobre, em média, noventa segundos de filme. No momento, está insatisfeito com o que diz o pai adotivo do Super-Homem no seriado Smallville:
– Uma mão, umamão, um mamão…
Ele pronuncia o texto em voz baixa, quase sussurrando. Em seguida, joga para trás a franja à la Pacino, pigarreia forte, bebe um gole d’água de um copo descartável, rabisca a folha do script e repete a plenos pulmões:
– Clark, me dê uma ajuda aqui!
Schnetzer acaba de salvar os brasileiros de um clássico escorregão estilístico. Puro requinte, quando se sabe que, na cena fictícia que abriu esta esquina, o detetive deveria ter dado um telefonema (give a ring) direto para o legista (coroner), o qual lhe teria dito, a propósito dos cadáveres do Vale do Silício, que a morte havia sido provocada pela ingestão de uma tâmara (date) envenenada, e não por algum encontro ruim (bad date) sabe-se lá de quem com quem. (A versão brasileira simplesmente mentiu sobre o fim do macaquinho em Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida.)
Da sala contígua, pelo intercomunicador, Sheila Dorfman dirige a gravação. Com a desenvoltura de Miss Simpatia – ela é a voz brasileira de Sandra Bullock –, pede que Schnetzer repita determinado trecho, que encurte tal palavra, estique certas pausas, altere ligeiramente o tom dessa ou daquela fala.
Schnetzer vira um Scarface na frente do microfone. Acompanha as palavras com gestos e expressões intensas, ainda que essa parte visual do seu trabalho jamais extravase a obscuridade das saletas de dublagem. Além disso, a interpretação já vem mesmo pré-moldada. Ao dublador, cabe enquadrar-se. Quanto mais colado ao original, quanto mais discreto e invisível, melhor.
A simbiose entre ator e dublador pode gerar situações bizarras. Schnetzer, por exemplo, foi alvo de uma transferência ego-vocal. A coisa começou com o telefonema de uma desconhecida que se dizia interessada em contratá-lo. Ao primeiro contato, sucederam-se outros, sempre tarde da noite. O trabalho nunca saía, mas a virtual contratante seguia telefonando, sempre necessitada de mais detalhes sobre a carreira do dublador. Schnetzer se deixou pendurar em longos diálogos noturnos. Uma hora, até que enfim – porque profissionalismo e boa-fé também têm limites –, ele notou que do outro lado da linha havia pausas cada vez mais longas, as quais vinham preenchidas como que por suspiros abafados. Num estalo, o bom Schnetzer entendeu o porquê da curiosidade especial em relação a Richard Gere e teve certeza de que sua interlocutora não passava de uma desfrutadora do trabalho alheio em busca de prazeres verbalmente induzidos pela voz sedutora do galã de Uma Linda Mulher.
A dublagem às vezes é a arte de deixar barato. Não há meio de encaixar a palavra “trabalho” numa boca que diz job, nem de fazer essa boca pedir “por favor” em vez de please. Foi essa discórdia irremediável que levou à popularização dos malditos “tiras”, categoria profissional que, embora de existência praticamente restrita às telas, desbancou os quadrissílabos “policiais”, que jamais entrarão em sincronia com os cops, seus colegas americanos.
De todo modo, tiras ou policiais, nossos cops são gente muito mais fina e nossa bandidagem não fica atrás. Como nunca se sabe exatamente que destino reserva o Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação a um filme dublado, os estúdios amenizam ao máximo o linguajar. Assim, entre nós, tiras durões são livres para “chutar traseiros” até dizer chega, enquanto traficantes enfurecidos podem amaldiçoar sonoramente todos os “filhos da mãe” da sua carteira de desafetos.
Se estiver dublando o piloto de um avião desgovernado, Schnetzer também praguejará, é claro, mas com modos:
– Meleca!
Uns meses atrás, quando recebeu convite para a première de Encontro Explosivo, ele chegou a pensar que sua realidade seria salpicada de glamour. Era só para assistir ao filme (pena que em versão legendada), mas Schnetzer imaginou que finalmente seria apresentado ao herói Tom Cruise, ao qual vinha emprestando a boca por mais de vinte anos. Com alguma ansiedade, preparou-se para o evento.
E pois é, não havia um comitê de recepção ao qual ele devesse se dirigir para dizer: “Boa-noite, eu sou Fulano de Tal, meu nome está na lista de convidados.” Logo, também não haveria ninguém para dizer: “Tom, esse aqui é o Ricardo!” Foi preciso acotovelar muitas histéricas antes de chegar à beira do tapete vermelho, e quando o astro, sorridente e pimpão num bonito blazer preto, passou diante dele do lado de lá do cordão de isolamento, Schnetzer gritou.
Mas não gritou como a concorrência, aquelas moças descabeladas que o rodeavam. Gritou como Al Pacino, isto é, como Michael Corleone amparando a filha morta nas escadarias do Teatro Massimo di Palermo:
– Tom, I am your voice in Brazil!
Não sendo surdo, Cruise entende o apelo e vira-se para cumprimentar o cara. Protocolarmente simpático, faz a piadinha sobre estar ali inteiro, em carne e osso, diante da sua própria voz, e segue adiante. Corta.
A cena protagonizada pelos dois atores durou pouquíssimos segundos, mas Schnetzer não se mordeu com essa brevidade. Até por dever de ofício, ele sabe que às vezes a vida fica muito aquém da imaginação.