Atingido por um tiro no peito, Marighella é carregado por policiais para fora do cinema Eskye-Tijuca, onde se refugiara numa sessão da comédia Rififi no Safári , em 9 de maio de 1964. Cercado, pensou que fosse morrer e gritou: "Matem, bandidos! Abaixo a ditadura militar fascista!" FOTO: FUNDO CORREIO DA MANHÃ_ARQUIVO NACIONAL
Tiro no cinema
Poeta e com fama de valente, o comunista Carlos Marighella desafia a sorte e tenta escapar do cerco da polícia política do Rio nas semanas seguintes ao golpe de 1964; o relato está no primeiro capítulo da biografia inédita do líder guerrilheiro, morto em 1969
Mário Magalhães | Edição 71, Agosto 2012
Carlos Marighella viu a zeladora do prédio onde morava caminhando em sua direção e pensou que, outra vez, conseguira ludibriar a polícia. Valdelice carregava um embrulho cor-de-rosa. Enfim, ele resolveria o problema da falta de roupa que o apoquentava havia mais de um mês. Na noite de 1º de abril, saíra às carreiras do quarto e sala que alugava no bairro do Catete e pulara com as pernas longas os degraus da escada do 7º andar até o térreo. Temia ser surpreendido pela polícia política do estado da Guanabara, que talvez já preparasse o bote para capturá-lo.
Estava certo. O presidente João Goulart ainda hesitava no Palácio do Planalto sobre o que fazer diante do golpe militar deflagrado na véspera enquanto, no Rio, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) escalava uma turma tarimbada para farejar o velho freguês da sua carceragem. Antes de despachar seu pessoal à rua, o ex-arremessador de peso Cecil Borer, chefe do Dops, alertou:
“Cuidado, que o Marighella é valente.”
Meia hora depois, os policiais invadiram o apartamento no Catete, mas não encontraram ninguém. Por pouco. Se em vez de subirem pelo elevador tivessem se arriscado pela escada, teriam dado com quem buscavam. A correria foi tamanha que Marighella só teve tempo de pegar uma troca de roupa. Amassou-a na malinha compartilhada com Clara Charf, sua companheira havia quinze anos. Desceram até a calçada e desapareceram em um táxi. No começo da madrugada, um bimotor Avro da Força Aérea Brasileira voou de Brasília para Porto Alegre, onde Goulart jogou a toalha. Na mesma hora, no subúrbio do Méier, Marighella reencontrava a vida clandestina.
Não era novidade para ele. Nas três décadas anteriores, passara mais tempo fugindo da polícia do que mostrando a cara. Também tinha sido assim nas últimas semanas, até o sábado em que finalmente resgataria camisas, calças e cuecas. De meias, não fazia questão. Desde a juventude, na Bahia, abominava-as. Era deputado, no Rio ainda capital da República, e as canelas sem meias pareciam aos amigos mais uma das privações decorrentes dos modos franciscanos de quem possuía apenas três ternos, todos doados. Ganhou tantas meias de presente que se obrigou a mudar de hábito antes que o comércio esgotasse os estoques. No Méier, queria outras peças. Improvisou, comprou uma ou duas, porém lhe faltava o que vestir naquele mês de maio que nem estava tão quente. Na sexta-feira, a máxima mal arranhara os 27 graus.
A temperatura aumentou quando Marighella notou um homem que vigiava Valdelice a uma distância que não chamava a atenção, mas sem perdê-la de vista. Com a mesma rapidez com que superou as escadarias no Catete, comprou dois ingressos na bilheteria do Eskye-Tijuca, o cinema em frente ao qual marcara com a zeladora. Fez-lhe um sinal, e entraram sem dar ao intruso a chance de se chegar.
Marighella se precavera para o encontro, não era para falhar. Como sempre, estava desarmado. Ignorava se havia mais de um tira. Mesmo cercado, poderia escapar, imaginou. Bastaria ganhar a sala de projeção e sumir, com as roupas lavadas e passadas sob o braço, por um caminho desprotegido. Como nas telas, uma fuga cinematográfica. Ele recebeu o embrulho e sentou-se numa poltrona central, mais ao fundo. Mesmo na escuridão, viu que crianças tomavam a matinê.
Antes de o dia amanhecer, um gari da limpeza urbana se avizinhou do prédio 131 da rua Corrêa Dutra, no Catete. Dez anos antes, a 200 metros dali, o presidente Getúlio Vargas se matara com um tiro no peito. Limpar, o gari não limpava. Lixo não era o seu negócio. João Barreto de Macedo vendia remédios, mas tonificava a saúde do bolso com outro ofício, o de caçador de subversivos. Não era funcionário público, e sim colaborador da polícia, que o recompensava pelo trabalho como espião e alcaguete. No sábado, chegou às cinco horas, disfarçado com o uniforme de gari.
As tocaias para Marighella foram montadas desde que ele escapara por um triz. Deram em nada. João Macedo jamais cruzara com seu alvo, mas sabia quem procurava. No arquivo do Dops, no prédio da rua da Relação, familiarizou-se com Marighella de frente e perfil, na coleção de fotografias inaugurada na década de 30 e atualizada com diligência. Desde a infância, em Salvador, ouvia falar do conterrâneo ilustre e suas querelas com a polícia. Nunca simpatizara com os comunistas e não haveria de querer bem ao cabra que julgava um malfeitor dos mais daninhos. Esquerda, para João Macedo, só a ponta do Botafogo, na qual teve uma passagem obscura aquecendo o banco de reservas do time que se orgulhava de Mané Garrincha na direita do ataque. Tinha a quem puxar na aversão ao comunismo: o diretor do Dops, Cecil de Macedo Borer. O Macedo comum os unia. Preferiam que ninguém soubesse do parentesco, e se alguém soubesse, calasse. Não faltavam insinuações sobre o apadrinhamento de Borer, o tio zeloso, para João arrumar a boquinha.
De tão anticomunista, o baiano Cecil Borer fora tido, nos anos de ascensão de Adolf Hitler, como descendente de alemães. Engano: seu pai emigrara da Inglaterra. Para montar a Polícia Especial, o governo de Getúlio Vargas garimpou atletas parrudos em academias e clubes esportivos. O fortão Borer arremessava peso e disco no Fluminense, agremiação rival do Botafogo que seu irmão Charles viria a presidir. Foi recrutado e virou “cabeça de tomate”, como o povaréu apelidou os integrantes da Polícia Especial, por causa dos quepes vermelhos.
Borer se formou na equipe que em 1936 varejou o Rio até agarrar os comunistas Luiz Carlos Prestes e Olga Benário, nos arredores do Méier, onde agora Marighella se escondia. A primeira prisão do jovem esquerdista Carlos Lacerda foi de autoria de Borer, ao reprimir uma agitação na porta da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, em 1933. Dali a décadas, Lacerda se elegeria governador da Guanabara. Já na pele de inimigo figadal dos correligionários de outrora, convocou o ex-algoz.
“Quem diria, doutor Borer, nós dois juntos”, ironizou Lacerda.
Pouco afeito a licenças de humor, o delegado retrucou:
“Não fui eu quem mudou, governador. Continuo na polícia.”
Lacerda sugeriu que ele desse um tempo na repressão política para se dedicar aos delinquentes que infernizavam os cariocas. Borer aplicou-se. Um por um, os bandidos trocaram as primeiras páginas dos jornais sensacionalistas pelos cemitérios. Isso quando os cadáveres não sumiam. O assaltante José Miranda Rosa, afamado como Mineirinho, era o terror do Rio. Seu corpo apareceu em um capinzal com tiros nas costas (três), pescoço (cinco), peito (dois), axila (um), perna (um) e braço (um). No bolso da calça, tinha uma oração a santo Antônio.
Contra Borer, não havia santo que protegesse. O delegado se proclamava insultado quando o vinculavam ao emergente Esquadrão da Morte e a execuções como a de Mineirinho. A posse de João Goulart como presidente da República, em setembro de 1961, estimulou Lacerda a devolver Borer ao setor em que se notabilizara. Para o delegado, parecia não haver diferença. Inexistia policial sobre quem pesassem tantas acusações de truculência quanto ele. Era o síndico do prédio da rua da Relação, no Centro do Rio, celebrizado menos como pérola da arquitetura em estilo eclético afrancesado do princípio do século XX e mais como reduto de selvageria contra prisioneiros políticos. Contava sem constrangimento que encomendava ratos para apavorar as mulheres detidas. mos, semanário comunista, tratava-o como “carrasco”, “nazista” e “torturador”. O colunista Paulo Francis, do vespertino janguista Última Hora, escreveu: “A fachada do fascismo é sempre popular. No interior é que se encontra Cecil Borer.”
Para má sorte de Marighella, Borer não engolira a fuga no dia do golpe. Conheciam-se desde outro maio, 28 outonos antes. Borer odiava Marighella e era desprezado pelo antagonista. O diretor do Dops destacou quem mais confiava para espreitar o prédio do Catete. O morador do apartamento 704 não apareceu, mas João Macedo perseverou. Soube que a zeladora guardava correspondência para Marighella e supôs que o destinatário gostaria de verificar o conteúdo. Passou a campaná-la. Às seis horas do sábado, quando o dia clareou com o sol inibido além das nuvens, a mulher saiu. Circulou pelo bairro, comprou na feira livre e voltou para casa sem reparar na onipresença de um gari. João Macedo quase desistiu. Tirou o uniforme. Por volta das quatro da tarde, Valdelice de Almeida Santana partiu com o embrulho.
Caminhou até a rua do Catete e dobrou à direita. Na mesma calçada, acompanhou-a o olheiro Carlos Gomes, detetive que secundava João Macedo. Do outro lado da rua, o apaniguado de Borer a observava. No Largo do Machado, Valdelice tomou o ônibus para a Tijuca sem perceber a companhia. João Macedo sentou-se atrás dela. O colega, na frente. A zeladora desceu na praça Saens Peña, e os dois, separados, seguiram-na. Ao se aproximar do cinema, Valdelice obedeceu ao aceno de Marighella para entrar. João Macedo correu a um telefone e chamou a rua da Relação. Borer ordenou que seu primeiro time de agentes se apressasse. Só desligou depois de martelar:
“Cuidado, que o Marighella é valente.”
Aos 52 anos, Carlos Marighella era mesmo tido como valente, favorecido pelo tamanho, que intimidava – embora não fosse brigão, de partir para o tapa. Aos 27, registraram sua altura em 1,78 metro, um porte de respeito para o homem brasileiro da época. Acadêmico da Escola Politécnica, Marighella tornou-se conhecido em Salvador pela assiduidade nas manifestações contra o Palácio da Aclamação e pelos poemas que compunha desde o ginásio. Iniciara-se nas rodas de capoeira soteropolitanas, nas quais mestre Pastinha o encantava. Mas não se contavam entreveros em que tivesse saído no braço ou nas pernas de capoeirista. As exceções eram as prisões, e as histórias sobre sua valentia falavam de gestos na cadeia. É possível que o cabelo, cortado com uma bossa ainda nova, reforçasse as tintas do seu cartaz: diante do espelho, navalhava as laterais da cabeça e deixava de pé uma faixa longitudinal que se prolongava até a nuca. O penacho sugeria um índio pronto para a guerra. Ao conhecê-lo, Paulo Francis lembrou-se do último dos moicanos.
Depois dos idos de março, nem o cabelo Marighella aparava. O visual ajudava a disfarçar. O corre-corre roubou-lhe tempo para os afazeres mais comezinhos. Assim que uma família de operários do Méier acolheu-o com Clara, ligou para a escola onde seu filho de 15 anos estudava de segunda a sexta, em regime de semi-internato. Carlinhos passava os fins de semana no Catete. Que ele não pisasse em casa, pois o perigo rondava. Duas semanas mais tarde, surgiu de surpresa em um fim de tarde no Colégio Batista, na Tijuca, e conversou com o garoto numa padaria nas cercanias. De peruca cabeluda, calça e blusão jeans, vestia aos olhos do filho a indumentária de motoqueiro. Só faltava a motocicleta. Enquanto comiam um sanduíche, orientou Carlinhos sobre como se virar enquanto o pai se mantivesse na moita. Falou da decisão do presidente deposto de não resistir:
“Esse Jango é frouxo.”
Não era apenas o já exilado João Goulart que o exasperava. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), em que militava havia trinta anos e do qual era dirigente graduado, contrariara Marighella com o que ele considerou inação frente aos golpistas. O partido jogara suas fichas em Jango, e o cacife fizera, dos comunistas, sócios beneméritos da derrota do estancieiro gaúcho que prometia a reforma agrária. Aos camaradas, pronunciava resmungos contra o comando partidário. Foi assim no apartamento do dramaturgo Oduvaldo Vianna, demitido da Rádio Nacional em abril. Lá, à beira do canal que separa o Leblon de Ipanema, desabafou com o anfitrião e a atriz Vera Gertel, do recém-banido Centro Popular de Cultura.
No início da tarde da sexta-feira, véspera do sábado em que iria recuperar suas roupas, Marighella compareceu sem avisar à casa de outro comunista degolado da Rádio Nacional. Diretor artístico da emissora até março, Dias Gomes levou-o para o escritório discreto nos fundos da residência no Jardim Botânico. Ocorreu-lhe que o amigo viesse segredar iniciativas contra o regime. Surpreendeu-se quando Marighella, em vez de sacar um manifesto incendiário, mostrou seus poemas recentes. Mais um dos tantos camaradas baianos radicados no Rio, Dias escrevera a peça O Pagador de Promessas, cuja adaptação para o cinema conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962. Ao contrário dele, sua mulher, a novelista Janete Clair, não militava no partido. Marighella despediu-se depois de passar horas a papear sobre teatro e poesia. Muitos anos mais tarde, em uma telenovela de que foi coautor, Dias Gomes batizaria como “arapongas” os espiões da polícia política e seus congêneres das Forças Armadas.
Em atividade febril, na qual era raro um descanso como o da sexta-feira, Marighella se expunha aos arapongas.
A maioria dos seus confrades do Comitê Central do PCB se mantinha em isolamento monástico. Eles privilegiavam a segurança, sem os riscos decorrentes das articulações políticas. Marighella ousava, nos esforços de recomposição da militância dispersa. Para isso, precisava conversar e circular. Questionava: como combater a ditadura trancado em casa? Andou para cima e para baixo desde o golpe. Apostou em rebelião de sargentos nos quartéis e investiu em uma reviravolta na Vila Militar contra os revoltosos de abril. Nada vingara, nem no Rio nem Brasil afora. Comoveu-se com as notícias vindas do Recife dando conta das surras e humilhações impostas por oficiais do 4º Exército ao líder camponês Gregório Bezerra. No Quartel de Motomecanização colocaram os pés do sexagenário Gregório, em carne viva, numa poça de ácido de bateria. Com o pescoço laçado por três cordas, ele foi arrastado pelas ruas feito potro xucro, com um coronel a anunciar:
“Este é o bandido comunista Gregório Bezerra! Vai ser enforcado na praça! Venham assistir!”
Marighella já vivenciara cenas parecidas, com ele no lugar de Bezerra, seu companheiro de bancada na Assembleia Constituinte de 1946 e para quem redigia discursos. Em caminhadas com Carlinhos pela Praia do Flamengo, contou das brutalidades que sofrera e garantiu: se o tempo político fechasse, não o capturariam vivo. No começo do ano, em viagem a Salvador, suas palavras ficaram na memória de Caetano, o irmão caçula:
“Se quiserem me prender outra vez, eu não deixo. Resisto, dou tiros e até morro. O que não quero é voltar a ser torturado.”
A despeito do perigo, Marighella deu um jeito de combinar com a zeladora para o sábado. Não pegaria somente roupas. Ansiava pelas cartas, como previu na mosca o atinado João Macedo. Saiu cedinho do Méier, conversou com militantes e leu nos jornais o desfecho de mais uma semana ruim. Era o dia 9 de maio de 1964, um mês depois do Ato Institucional com o primeiro pacote de cassações de direitos políticos.
Na quinta-feira, o presidente Castello Branco engordara a lista com dois deputados federais, sete estaduais, um prefeito de capital e outros derrotados de abril. Velho camarada de Marighella, compositor e ator demitido da Rádio Nacional, Mário Lago foi levado ao Dops. Apresentou-se como comunista. O ministro da Guerra, Arthur da Costa e Silva, sublinhou na celebração do 19º aniversário da vitória dos Aliados na Europa: “A luta não terminou, porque o comunismo está sempre atuante em sua guerra ideológica contra o mundo democrático e cristão.” Os jornais faziam rir. O general Mourão Filho, que em 31 de março desceu suas tropas de Juiz de Fora para o Rio, autorretratou-se: “Em matéria de política, não entendo nem falo nada. Sou uma vaca fardada.”
Ao ir para o cinema, Marighella já lera a reportagem sobre um dos seus compositores favoritos. Internado para uma cirurgia no nariz, Cartola antecipara: sem dinheiro, pagaria os médicos com samba. Marighella se distraía ao compor. Às vezes se mostrava inspirado, como em um frevo cheio de graça sobre Cacareco, o rinoceronte campeão de votos numa eleição em São Paulo. Nunca teve uma música gravada. Um cantor amigo, Jorge Goulart, interpretou o grande sucesso do último Carnaval sob a democracia: a marchinha Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly e Roberto Faissal.
Na tarde do sábado, a cabeça de Marighella não estava sintonizada em música. Ele pressentiu a encrenca quando Valdelice caminhava pela rua Conde de Bonfim trazendo o pacote e a campana. No escuro do cinema, sentou-se para planejar a fuga. Já tinha escapado tantas vezes. Por que não dessa? Tinha que pensar rápido. Pela porta da frente não teria chance, e a saída lateral parecia temerária. Não ligou para o filme que arrancava gargalhadas do público infantil. Até que a projeção foi interrompida, e as luzes se acenderam.
O cinema não se ilumina por acaso, nem o projetor falha ou o projecionista se atrapalha na troca de rolos. A pane é uma farsa, ordenada por João Macedo ao gerente. Antes, Macedo e seu parceiro contaram os minutos para a chegada dos reforços. Na entrada da galeria onde fica o Eskye-Tijuca, exibe-se o anúncio da comédia Rififi no Safári, com Bob Hope e Anita Ekberg: “Um explorador de araque na África com a mais sensacional das louras.” A sessão das quatro da tarde está mais perto do fim que do começo. O crítico do Correio da Manhã detonou o filme. Abominou a sisudez dos decotes da bem fornida Anita e salvou apenas uma gag sobre o presidente americano John Kennedy e o governante soviético Nikita Kruchev. Um fotógrafo do jornal fez pouco da opinião e levou a filha.
A tarde tem mais sabor para a estudante Elisabeth Mamede, seu irmão Celso e a prima Kátia. Aos 14 anos, Elisabeth foi autorizada pela família a ir sozinha pela primeira vez com os mais novos. Nenhum deles percebe, alguns metros atrás, um homem que se atrasa demais para a sessão ou se adianta para a próxima. Mais de dez policiais enviados por Cecil Borer não se atrasam. Desconhecendo o ponto preciso onde Marighella se acha, bloqueiam as saídas e adentram no salão. Não admitirão escapadas cinematográficas. Sabem que crianças dominam o ambiente. Ex-atleta, cerca de dez anos mais jovem que Marighella, João Macedo não se esquece da advertência de Borer. Simulado o defeito na projeção, as luzes se acendem e os caçadores vislumbram a caça.
De pé, por trás e pela direita de Marighella, sentado na cadeira, um policial ordena-lhe que o acompanhe. Outro cerca-o por trás, pela esquerda. À sua frente, o terceiro mostra a carteira com as iniciais do Dops. Tudo num instante. O quarto, ao lado do que dá a carteirada, agacha-se e aponta o revólver calibre 38. Marighella pensa que vai morrer e grita:
“Matem, bandidos! Abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o Partido Comunista!”
Não terminou, quando o agente dispara à queima-roupa. Ferido no peito, Marighella equilibra o corpo na perna esquerda e, com a direita, acerta um golpe que joga longe a arma. Outro chute destrói uma cadeira. Seus sapatos voam longe. Os policiais o chutam e esmurram, ele não cai e retribui as agressões. Um gosto adocicado tempera sua boca. É o sangue que o empapa. No rosto, o sangue turva a visão, e Marighella tem a impressão de que enfrenta ao menos sete. São oito, somam testemunhas. Não consegue ver a face dos tiras e nunca poderá identificá-los.
O tiro foi um, mas o sangue escorre por três perfurações. A bala entrou no tórax, saiu pela axila e se alojou no braço esquerdo. Marighella continua a lutar. Como um leão, compara um dos contendores que tentam imobilizá-lo. Outro berra, encolerizado:
“Vermelho! Vermelho!”
Com a altercação, o público se vira, ouve o tiro e enxerga o clarão que ele acende. Em pânico, as crianças choram. Elisabeth, Celso e Kátia se abaixam e engatinham. Dominado, com a camisa desabotoada e já sem o paletó ensanguentado, Marighella é puxado pelos policiais para fora do cinema. O fotógrafo do Correio da Manhã que passeia com a filha empunha a câmara, mas os policiais o ameaçam e impedem que registre a cena. Corajoso, logra fazer algumas chapas, tremidas. Valdelice é presa.
Quase na calçada, Marighella reconhece a camionete do Dops e decide: “Não vou entrar no tintureiro.” É a expressão popular para os veículos da polícia destinados à condução de presos. A resistência não tem fim. Empurrado, apoia as pernas no teto da viatura e não entra. Leva mais pontapés e socos. Já são catorze homens contra um. Ao cair, pisoteiam-no, e o corpo avermelha a calçada. Transeuntes protestam. Os passageiros de um lotação os imitam e são corridos por policiais que surgem de todos os cantos. O secundarista Alcides Raphael, que assistirá à sessão das seis horas, estima em cinco minutos o tempo para o homem que luta sozinho ser embarcado – o Correio da Manhã cronometrou dez minutos de espancamento.
Marighella só para quando lhe acertam uma pancada na cabeça e ele desmaia. Chega apagado ao Hospital Souza Aguiar. Policiais militares com metralhadoras esperam o tintureiro 964 do Dops. Ao deparar com o corpo imóvel, os médicos não sabem se está vivo ou morto. Tomam-lhe os sinais vitais e o socorrem. Os plantonistas do maior pronto-socorro do país custam a crer que aquele cinquentão, ferido, encarou tantos policiais mais jovens. A bala atingiu a ponta da costela e por pouco não perfurou o apêndice xifoide, o que poderia ter-lhe custado a vida. Com perda abundante de sangue, são incertas as perspectivas. A extração do projétil terá de esperar.
Para a polícia, critérios médicos nada diziam. Com Marighella ainda desmaiado, algemaram-no e o amarraram à maca. Além dos agentes do Dops e dos policiais militares, o 19º Distrito providenciou um efetivo a fim de assegurar que o comunista não escapuliria na madrugada dominical. Temiam o restabelecimento milagroso e a ação de um comando de resgate. Não havia ordem de prisão contra Marighella. Não era um foragido. Nos novos tempos, o de menos. O garrote, no entanto, estava longe do aperto que o país conheceria. Já na noite de sábado, as rádios trombetearam a operação policial no cinema tijucano. No domingo, o Jornal do Brasil titulou: “Ex-deputado Marighella foi ferido à bala num cinema quando resistiu à prisão.” O Correio da Manhã foi mais conciso: “Dops atira contra ex-deputado na GB.”
Ao saber do tiro no homem de sua vida, Clara Charf se desesperou. Se ela o acudisse no hospital, seria presa. Já haviam experimentado situação semelhante, uma década antes, com os papéis invertidos: ela em cana e ele solto. Era hora de se despedir do Méier. Apanhou seus poucos pertences e se refugiou no apartamento do embaixador Álvaro Lins, no Parque Guinle, a poucos passos do Palácio Laranjeiras, onde Jango despachou até o 1º de abril.
As chances de seu marido fugir andando eram tantas quanto as de uma das cotias do Campo de Santana, defronte ao Souza Aguiar, subir os degraus do ônibus e pedir troco para uma nota de 10 cruzeiros. Não é que fosse improvável arregimentar um punhado de militantes para libertá-lo. Com a debandada pós-golpe, era difícil até reuni-los para um inofensivo convescote de análise conjuntural.
Marighella dormiu colado ao sobrado da Praça da República, esquina da rua da Constituição, que em 1922 abrigara a primeira sede do PCB. No outro lado, a menos de 100 metros do hospital, fincava-se a Faculdade Nacional de Direito. Os estudantes lá feridos no 1º de abril foram atendidos no Souza Aguiar, bem como os baleados na Cinelândia. Mais um pouco e se alcançava a estação ferroviária da Central do Brasil, palco do comício pró-reformas na sexta-feira, 13 de março de 1964. O prédio do Ministério da Guerra, quartel da conspiração anti-Goulart, era vizinho da Central.
Não era essa geografia que embalava os sonhos – ou pesadelos – de Marighella. Horas depois da internação, ele se levantou com a maca nas costas e discursou com paixão. No delírio, estava preso na rua da Relação. Praguejou contra o Dops e os meganhas. Os policiais observaram com atenção quando os médicos o acordaram e o acalmaram. A sangria não estancava, e os analgésicos não aliviavam a dor. Faltava-lhe força para se virar no leito. Voltou a dormir, alternando estalos de consciência. Em um deles, ao abrir os olhos, deu de cara com um rosto familiar, o do cunhado Armando Teixeira. Casado com Tereza Marighella, ele soubera da prisão pelo rádio e deu um jeito de averiguar como estava o irmão de sua mulher. Desviou da recepção e subiu à enfermaria, sem notar os guardas que a distância monitoravam o paciente. Embora sob efeito de sedativos, Marighella reagiu: com um dedo, apontou a vigilância; com outro, disse que estava bem.
O magote de repórteres que tentavam ouvir Marighella obteve êxito na manhã seguinte ao domingo em que Teixeira se certificou de que o cunhado sobrevivera. O ferido era removido de maca da sala de curativos para a de raios X quando os jornalistas o cercaram. Contorcendo-se, falou com dificuldade. O sangue escorria pela boca:
“Eles não tiveram dúvidas em me eliminar. Sou comunista, sim, mas não um criminoso. Não lamento o que me aconteceu, mas lamentemos pelos inocentes que estão caindo nas garras da nova ordem.”
Esforçava-se para prosseguir quando um soldado da Polícia Militar afastou os entrevistadores. Logo Marighella presenciou o bate-boca entre médicos e policiais. A equipe do hospital resistiu à determinação para que o paciente fosse transferido de imediato. Seria imprudência mandá-lo para a Penitenciária Lemos de Brito, a menos de 2 quilômetros dali. De nada adiantaram os argumentos. Pouco mais de quarenta horas depois de dar entrada no Souza Aguiar com a vida em jogo, Marighella foi levado de ambulância.
As dores aumentaram. No destino, o contratempo: o diretor da penitenciária recusou o hóspede involuntário. Temia responder pelo que sucedesse com um ferido grave que só teria condições de tratamento decente longe dali. E inexistia condenação ou mandado de prisão. Por motivos idênticos, o Presídio Fernandes Viana fechou as portas a Marighella. Voltaram ao Souza Aguiar, de passagem. Ele foi novamente algemado à maca e transportado para a Lemos de Brito, porque não haveria de ser um reles burocrata de cadeia quem mandava. O lugar estava longe de lhe ser estranho.
Havia quase vinte anos que passara pela última vez no complexo penitenciário da rua Frei Caneca. Ele não esqueceu as horas de euforia em um pernoite que antecedeu a liberdade. Agora, voltava por baixo. Puseram-no em um cubículo estreito, o de número 31. Leu a placa do lado de fora: “Incomunicável.” Para falar com o corredor, só por uma janelinha que nunca se abria na porta de madeira. O ar penetrava por um buraco gradeado no alto da cela. Um muro baixo separava catre e colchão de privada e pia.
Sem ordem judicial para encarcerá-lo, não poderia ser considerado prisioneiro. Foi registrado em “regime de depósito”. Era o depositado 523. À noite, deparou-se com companhias. Pequenas baratas se insinuavam. Poderia contá-las, substituindo ovelhas oníricas, se o sono demorasse. Não precisou: enfraquecido, adormeceu. Ao despertar na madrugada, descobriu que as baratinhas festejavam carne nova onde brincar: perambulavam por seus lábios. Nos dias seguintes, foi submetido ao isolamento só quebrado por idas à enfermaria, onde o cirurgião Acioly Maia extraiu a bala. A ponta vermelha, achatada pelo impacto na costela, chamou a atenção de Marighella. Então ele soube que, além de escapar da morte, quase teve o braço esquerdo incapacitado – o projétil raspou no tendão.
No cubículo, continuou proibido de receber visitantes e de apelar a advogado. Não podia conversar com ninguém. Sem ser requisitado para depoimento ou audiência, comparou-se a um objeto que a polícia largara no almoxarifado. Gostaria de saber do que o acusavam. No inquérito a que não teve acesso, a resposta era um branco: formalmente, de nada. Ignorava o que ia pelo mundo, porque também vetaram jornais. Se pudesse ler, talvez desconfiasse de que a cidade se esquecera do joelho estourado que provocou o corte de Garrincha da Seleção convocada para a Copa das Nações; da campanha de um padre para os militares banirem o beijo e outros “costumes indecorosos”; e das especulações sobre como podia uma cabeça, a do general Castello Branco, se equilibrar sobre o tronco sem o apoio de pescoço. Parecia não haver outro assunto que Carlos Marighella e sua resistência à prisão.
O Última Hora condenou, no editorial “Show sanguinário”, a remoção para a Lemos de Brito. Considerou-a ameaça à vida: “Se amanhã o sr. Carlos Marighella aparecer morto, tratar-se-á por certo de um ‘lamentável acidente’, segundo as versões oficiais. Mas que outra coisa se pode esperar quando um homem, odiado pela polícia e por ela ferido, vai receber ‘tratamento’ na enfermaria de um presídio?” Ao descrever os procedimentos no cinema, o Correio da Manhã falou de “crueldade” e “imbecilidade”. O jornal incitara a deposição de Goulart, mas em poucas edições se tornou opositor da maré repressiva. Em seguida à prisão de Marighella, publicou na primeira página os trinta tópicos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. No artigo “Em defesa das crianças”, o colunista Sérgio Bittencourt exaltou, em Marighella, a “valentia de alguém desarmado”: “O que sei, o pouco que sempre soube, é o que um bom-senso me grita: pior que fazer uma ‘revolução’ com aspas é aliar essa mesma ‘revolução’ ao sangue inútil arrancado do corpo de um homem cambaleante, indefeso e sozinho – tudo isso, ante os olhos confusos e assustados de crianças, que podem não saber o que seja uma ‘revolução’, mas já percebem o que é uma covardia.”
Um dos pilares da “Revolução”, como se proclamou o novo regime, o Conselho de Segurança Nacional queria interrogar Marighella com urgência. Por isso mandou transferi-lo, recém-baleado, para a Lemos de Brito. Foi o que informou o Jornal do Brasil. As redações botaram as tropas em campo para apurar o caso do cinema. O Jornal do Commercio revelou uma testemunha que confidenciou ter ouvido o investigador Hiram dizer a um companheiro da polícia política: “O homem já estava dominado, não havia necessidade de atirar.” O furo de maior repercussão foi a fotografia de Marighella carregado por dois policiais, antes de se rebelar novamente na entrada do tintureiro. O Correio da Manhã batizou-a como “A imagem do terror”.
Com base nela, o matutino qualificou de “falsa e tola” a versão do coronel Gustavo Borges, secretário de Segurança da Guanabara. O coronel e seus subordinados do Dops alegaram que a arma era de Marighella, que ele se ferira sozinho, e um único policial o detivera. Nos relatos que mais falseavam do que esclareciam, o secretário deu uma pista de quem apertara o gatilho, abandonando a ficção de que o ferido alvejara a si mesmo: “Quem atirou contra o cidadão Carlos Marighella não pertence aos quadros da polícia.” João Macedo não pertencia. Não era o único. Sobrou para Valdelice Santana. Presa no Eskye-Tijuca, levaram-na para a rua da Relação, onde apanhou para fornecer informações que desconhecia. Casada com um funcionário do prédio do Catete, foi apresentada pelo Dops como amante do preso famoso. A zeladora mantinha uma chave do apartamento que eventualmente limpava. Por essa razão, Marighella lhe encomendou as roupas e a correspondência.
Ele não sabia o que se passava fora do cubículo – o Conselho de Segurança Nacional não o procurou. De tão sozinho, na sexta-feira seguinte à prisão espalhou-se o boato de que morrera. Já era junho, dia 5, quando o mandaram se aprontar, pois o Dops o convocava. Pediu a roupa com que desembarcara na Lemos de Brito. Era a mesma que usava no cinema. Vestiu a calça com manchas de sangue ressecado e a camisa, mais ensanguentada ainda, com três furos de bala. Nos pés, nada, porque os sapatos se perderam na pancadaria. Iria descalço. Planejou o visual como “libelo acusatório”.
A caminho do Dops, parou no Instituto Médico Legal, na rua dos Inválidos. Um médico o examinou e confidenciou que o tiro fora para matar. Meia quadra depois de sair do IML, Marighella distinguiu na esquina da rua da Relação o prédio onde um dia o inferno se descortinara para ele. Ao dar com o maltrapilho, o escrivão indagou:
“Por que o senhor veio com esta roupa suja de sangue?”
“Porque o Dops me deixou incomunicável esses dias todos”, rebateu Marighella. Ele avisou: “Não ponha aí no papel que isso é ‘Revolução’, senão eu não assino coisa nenhuma! Ponha ‘golpe militar fascista, Ato Institucional fascista’!”
Encerrado o depoimento, voltou para o cubículo 31, onde vegetou por mais vinte dias. Retornou ao Dops sem saber por quê. Cedeu a um par de chinelos e manteve a roupa avermelhada. Ao chegar, policiais de São Paulo retiraram dezenove cadernetas de uma pasta de couro amarelo. As anotações tinham a letra inconfundível de Luiz Carlos Prestes: pequena, arredondada e feminina. Foragido desde o golpe, o secretário-geral do PCB deixara em sua casa apontamentos sobre o cotidiano do partido. Citava Marighella 133 vezes. Provocado sobre os blocos espirais que tinha diante de si, Marighella os reconheceu, porém desconversou:
“Não conheço; nada a declarar.”
Para sua surpresa, na saída não foi reconduzido à Lemos de Brito. Ficaria no Dops. Comemorou o reencontro com companheiros detidos. Marighella lhes disse que, se houvesse aceitado a prisão no cinema em silêncio, teria sido torturado, e ninguém saberia. Sem colchões para todos, alguns dormiam sobre jornais. Marighella dividiu o colchão com o “vice-xerife” eleito pelo coletivo de presos, José Maria Nunes Pereira. Em seu apartamento, gravitava a representação do Movimento Popular de Libertação de Angola. A despeito da recepção calorosa, Marighella deu-se conta de que se metera numa fria. O vento úmido e gelado entrava pelas barras de ferro da porta do xadrez. Os cariocas equiparavam o inverno de 1964 ao de três anos antes, quando pinguins da Patagônia visitaram as praias da cidade. Marighella tossia e sentia os pulmões fracos. A comida causava disenteria, e uma centena de presos disputava um só sanitário. O passeio das baratas era melhor que aquela boia. Perdeu os quilos que recuperara. Quis voltar para a penitenciária, mas lhe disseram não.
No fim da tarde de 2 de julho, data da independência da Bahia que tanto estudara na escola, avisaram-no que se preparasse para pegar a estrada. Seu destino seria o Dops de São Paulo. A temperatura despencara para os 12 graus. Os companheiros arrecadaram algum dinheiro, frutas e agasalhos para confortá-lo. Funcionários da polícia, apiedados do seu abatimento, também. No portão, encontrou a camionete cinza com faixa amarela. Recordou a empresa de transportes Lusitana e seu slogan consagrado, “O mundo gira, a Lusitana roda”. Repetiu para si: “O mundo gira, o Marighella roda.”
Pelas frestas, espiou a Via Dutra. Os policiais da escolta lhe atiraram uma japona para afugentar o frio. A cada buraco, a cabeça batia no teto baixo. Ao protegê-la com as mãos, largava o banco de ferro e se desequilibrava. Sacolejando, identificou-se com uma fruta no liquidificador. Dividia os fundos do tintureiro com o pneu sobressalente e algumas ferramentas. O antigo aluno de engenharia projetou uma viagem menos sofrida. Deitou-se sobre o estepe e apoiou os pés em uma lateral e no piso da camionete. A mão esquerda segurou outra lateral. A direita salvou o cocuruto das batidas. As feridas doíam como agulhadas. Com o balanço, os vômitos se sucediam. A madrugada estava longe do fim quando Carlos Marighella se sentiu numa nave a viajar pela estratosfera. Lembrou-se do cosmonauta pioneiro do espaço. E sonhou, acordado, que era Yuri Gagárin.
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