Em 30 de outubro de 33, Getúlio telegrafou ao irmão preocupado com o incidente na fronteira argentina. Este o tranquilizou, prometendo não complicar o governo. Mentiu para o presidente FOTO: TIME & LIFE PICUTRES_GETTY IMAGES
Tiros na fronteira
Como o irmão de Getúlio Vargas conspirou com radicais argentinos e complicou a política externa brasileira
Lira Neto | Edição 82, Julho 2013
Em meio à escuridão, ouviu-se o resfolegar do pequeno motor a gasolina cruzando o rio Uruguai. Eram oito e meia da noite quando a embarcação avançou pelas águas negras e se aproximou lentamente dos troncos de madeira que faziam as vezes de ancoradouro. Nesse instante, o holofote da guarda marítima iluminou-lhe a proa. O foco de luz revelou que se tratava da lancha Dois Ases, dos barqueiros Georg e Josef Rosembeck, imigrantes alemães que ganhavam a vida fazendo a travessia de passageiros entre a brasileira São Borja e a argentina Santo Tomé.
Na tardinha daquele 15 de outubro de 1933, um comunicado da subprefeitura marítima de Santo Tomé concedera autorização para o desembarque noturno, a ser realizado fora do horário regulamentar de funcionamento do porto. A exceção fora solicitada pelo vice-cônsul brasileiro, Lúcio Schiavo, em cortesia ao grupo de senhores da alta sociedade são-borjense que desejava assistir à atração anunciada pelo Cine Astral nos jornais santo-tomenhos: El Rey de los Gitanos, de Frank Strayer, estrelado pelo tenor mexicano José Mojica. Uma moderníssima fita sonora, como nunca antes se vira por aquelas bandas.
Enquanto o holofote mantinha o foco sobre a lancha, o cabo argentino Francisco Filimer Verón desceu do posto de vigia, acompanhado do marinheiro Narciso Nuñez, para recepcionar os visitantes. Pelo que puderam perceber, havia cerca de dez homens a bordo. Alguns deles, fardados. Os primeiros a desembarcar foram Odon Sarmanho Mota e Ary Mesquita Vargas, sobrinhos de Getúlio, em roupas civis. Odon era filho de Protásio, o segundo dos irmãos Vargas; Ary, de Alda Sarmanho Mota, irmã da primeira-dama, Darcy. Ambos trajavam alinhados paletós cinza-claros, com reluzentes abotoaduras e prendedores de gravata dourados. Benjamin Vargas, o Bejo, irmão mais novo do presidente brasileiro, vinha a seguir, em trajes militares. Ostentava o uniforme de brim cáqui do 14º Corpo Auxiliar da Brigada Militar de São Borja, o “Catorze-de-pé-no-chão”, destacamento responsável pelo policiamento da zona missioneira.
O cabo Verón se postou no meio do ancoradouro e Nuñez ficou a meia distância, com um lampião de gás na mão, para iluminar o trajeto entre os troncos roliços e o caminho de terra que levava ao posto da guarda, instalado a cerca de 200 metros acima, numa elevação topográfica do terreno. Verón estranhou o fato de Bejo carregar debaixo do braço uma capa militar, sob a qual se insinuava o volume de um objeto comprido, cujos contornos pareciam sugerir o formato de um rifle ou de um fuzil. O cabo reparou também que os recém-chegados pareciam ter bebido alguns tragos além da conta. Cheiravam a álcool e estavam um tanto quanto trôpegos. Questionado sobre a natureza do artefato que trazia oculto, Bejo desconversou:
“Isso? Ora, isso é uma capa”, respondeu.
Verón insistiu. O que ele queria saber era o que estava escondido debaixo da capa.
“Nada”, sustentou Bejo.
O argentino se colocou imediatamente na frente de Benjamin Vargas, interceptando-lhe a passagem. Se quisessem prosseguir, todos teriam que se submeter à revista obrigatória, antes de serem liberados para subir ao posto da guarda, onde seria feita a conferência dos respectivos documentos de identidade. Com ou sem licença da subprefeitura, não poderiam entrar em Santo Tomé de outro modo. Se estivessem portando quaisquer armas, estas seriam confiscadas durante o tempo em que permanecessem em território platino.
Ao avisá-lo disso, Verón exigiu que Bejo lhe entregasse o objeto suspeito, que mantinha encoberto. Ninguém mais desembarcasse ou desse um único passo além daquele ponto. Caso se recusassem à inspeção, os brasileiros deveriam regressar pelo mesmo caminho por onde haviam chegado. Verón sublinhou as últimas palavras levando automaticamente a mão à cinta, como se fizesse menção de que não hesitaria em sacar o sabre-baioneta caso se sentisse obrigado a isso.
Seguiu-se um acalorado bate-boca, no qual sobraram vitupérios para ambas as partes. O cabo não devia saber com quem estava falando, irritou-se Bejo. Com a voz pastosa, identificou-se. Ele era o comandante do 14º Corpo Auxiliar de São Borja, o coronel Benjamin Vargas, irmão de Getúlio Dornelles Vargas, presidente dos Estados Unidos do Brasil. Já fizera aquela travessia milhares de vezes, sem jamais ter sido importunado. Existia um acordo entre ele e o intendente de Santo Tomé para o patrulhamento conjunto das duas margens do rio Uruguai. Do lado argentino, impedia-se a ação dos montoneros [1] filiados à União Cívica Radical, grupo de ativistas políticos contrários ao presidente Agustín Pedro Justo. Do lado brasileiro, resguardava-se a fronteira de possíveis investidas dos conspiradores constitucionalistas de 1932, exilados em Buenos Aires.
De modo ríspido, Bejo sugeriu que o sentinela o deixasse seguir ao prédio da subprefeitura, onde esclareceria o caso. Impedi-lo de ir adiante seria no mínimo um desaforo. O presidente Agustín Pedro Justo acabara de fazer uma visita ao Brasil e fora recebido no Rio de Janeiro com tapete vermelho, declarado general honorário do Exército Brasileiro. Não fazia sentido um irmão de Getúlio Vargas ser barrado por marinheiros subalternos. Era um constrangimento desnecessário, uma desfeita inaceitável. O cabo que abrisse caminho. Bejo iria passar, por bem ou por mal.
Afastado cerca de cinco passos, o marinheiro Narciso Nuñez, que iluminava a cena com o lampião, deu o sinal de alerta ao camarada:
“Cuidado, cabo! Ele tem uma arma de fogo!”
Foi o quanto bastou. Odon Motta, que estava ao lado de Bejo, pulou em direção a Verón. Agarrou-o pelo lenço do uniforme com a mão esquerda e, com a direita, sacou um revólver da cintura, apontando-o em direção à cabeça do argentino. Este deu um salto para trás na tentativa de se desvencilhar do ataque. Desequilibrado, Verón acabou tombando de costas sobre os troncos escorregadios, exatamente no instante em que Odon puxou o gatilho. Apesar da pequena distância, o movimento brusco o fez errar o alvo. A bala passou raspando o rosto de Verón, chamuscando-lhe a bochecha com a pólvora quente. Caído no escuro, o cabo permaneceu imóvel, e foi dado como morto.
Nuñez, que assistia a tudo, ainda pôde ver quando Bejo jogou a capa ao chão para melhor empunhar a submetralhadora que não mais se preocupou em esconder. Ao avistar a arma, o marinheiro, munido também apenas de um sabre-baioneta a exemplo do colega, tratou de apagar o lampião e correr ao posto da guarda, onde alertou os companheiros sobre o que estava ocorrendo lá embaixo. De súbito, uma saraivada de tiros de fuzil partiu em direção à lancha. Verón, por temer ser alvo do fogo amigo, levantou-se e apertou o passo, escuridão adentro.
A longa sequência de disparos de parte a parte deixou evidente que os homens a bordo da Dois Ases também estavam fortemente armados. O tiroteio, ao final, resultaria em dupla tragédia para a família Vargas.
Odon foi o primeiro a ser atingido. Uma bala entrou obliquamente na altura de sua orelha direita, trespassou-lhe a cabeça e saiu pela face, abrindo-lhe um rombo à altura do queixo. O sobrinho de Getúlio caiu ao chão já sem vida, próximo ao local onde antes Verón estivera deitado.
Em revide, Bejo mirou o barracão da guarda marítima. Despejou três rajadas seguidas de metralhadora, o que ofereceu a necessária cobertura para que ele e Ary retornassem à lancha, obrigados a abandonar o corpo de Odon para trás. Na confusão que se seguiu, Ary Vargas também encontraria seu fim. Levou um tiro na testa, já dentro da embarcação. A exemplo de Odon, morreu na hora.
A fuga se deu de forma atabalhoada. A confiar no relato posterior de Benjamin Vargas, o condutor do barco, Georg Rosembeck, estava fora de ação, agonizante, com o pulmão arrebentado por um balaço. Para agravar a situação, o tanque de combustível foi perfurado por um tiro, ocasionando uma grande explosão quando a Dois Ases já se encontrava a poucos metros da margem brasileira. Para escapar do fogo, os passageiros saltaram à água. Tiveram de seguir a nado até São Borja. Mal tiveram tempo para retirar o cadáver de Ary de dentro da lancha em chamas. Ninguém conseguiu fazer o mesmo com Rosembeck, que, se porventura ainda estivesse vivo, morreu devorado pelas labaredas.
Os funerais de Odon Sarmanho e Ary Vargas provocaram imensa consternação em São Borja. O corpo de Odon, que ficara prostrado no local do tiroteio, foi mandado resgatar pelo consulado brasileiro. Junto a ele, encontrou-se o revólver que portava, sujo de barro e sangue. Um Colt Detective de cano curto, calibre 38, com cinco cápsulas deflagradas e apenas uma intacta. Era uma bala dundum, do tipo previamente preparada para explodir ao penetrar no corpo da vítima. Nos bolsos do paletó, havia mais um punhado de projéteis semelhantes e um maço de cigarros da marca Regência, devolvido à família acompanhado das condolências da prefeitura de Santo Tomé.
O intendente são-borjense, Cleto Dória de Azambuja, telegrafou ao interventor gaúcho Flores da Cunha para comunicar o ocorrido. A versão de que Bejo e seus sobrinhos teriam sido confundidos com contrabandistas ao tentar desembarcar em Santo Tomé para assistir ao cinema – ou para participar de um inocente baile, segundo outra variante perpetuada pela família – ganhou foros de verdade. “Nada justifica tão inominável atentado que causou profunda revolta no seio da população deste município”, dizia a mensagem de Azambuja a Flores.
Em Buenos Aires, na Casa Rosada, o vice-presidente em exercício, Julio Argentino Roca, convocou uma reunião de emergência com os ministros do Interior, Exterior, Guerra e Marinha a fim de discutir a gravidade do caso. Após comunicar o fato por telegrama ao titular Agustín Justo, que espichara a viagem ao Brasil com uma visita oficial ao Uruguai, Roca autorizou um comunicado à imprensa de seu país, expedido com o timbre do Ministerio de las Relaciones Exteriores y Culto. O texto informava que os ocupantes da lancha brasileira, ao serem abordados e intimados a baixar armas, haviam disparado o primeiro tiro. “Uma agressão que foi repelida pelos marinheiros da subprefeitura de Santo Tomé”, justificou o documento.
No Rio de Janeiro, a história foi vendida pelo valor de face imposto pelas autoridades são-borjenses. Os dois sobrinhos do chefe do Governo Provisório teriam sido barbaramente assassinados por guardas da fronteira platina, sem que houvessem feito nenhum movimento suspeito. “Vivemos sob a repercussão dos acontecimentos benéficos da visita do presidente argentino, embora um tanto ensombrados pelo atentado de Santo Tomé”, lastimou Getúlio, em seu diário.
A imprensa brasileira, por ordem dos censores federais, adotou a tese de atentado e cobriu o episódio com o véu da discrição. O acontecimento foi minimizado, reduzido a mero incidente policial, “sem maiores consequências nas relações diplomáticas entre Brasil e Argentina”. Os jornais diziam lamentar profundamente a morte precoce dos dois jovens parentes de Getúlio, mas asseguravam que tudo não passara de um terrível mal-entendido, “desses que mais parecem um capricho do destino”.
Por trás das informações apaziguadoras, os relatórios confidenciais que chegavam ao Itamaraty começaram a dar conta de uma narrativa bem diversa. “Recebi informações de São Borja de que os fatos em Santo Tomé haviam ocorrido de uma forma diferente à que foi contada. A história do cinema sonoro não é verdadeira”, alarmou-se Getúlio, em outra anotação do diário.
Na verdade, Bejo usara tal pretexto para promover uma caçada contra Jovelino de Oliveira Saldanha, jornalista que tempos antes enchera as páginas de A Fronteira, de Uruguaiana, com denúncias contra desmandos da família Vargas na condução da política regional. Para corroborar a tese de que o poderoso clã ao qual pertencia o chefe do Governo Provisório nunca encontrara limites na perseguição aos adversários locais, Jovelino desencavou dois casos que pareciam vivos apenas na memória dos mais antigos: a morte do estudante Carlos de Almeida Prado, assassinado pelo irmão mais velho de Getúlio, Viriato Vargas, em Ouro Preto, em 1897, e a do médico Benjamin Torres, executado por um matador de aluguel a mando do mesmo Viriato, em São Borja, no ano de 1915.
Após reeditar as denúncias com estardalhaço e publicá-las em capítulos como se fossem folhetins, Jovelino passou a sofrer ameaças de morte. Decidiu então buscar refúgio do outro lado do rio, onde se naturalizou argentino e começou a se assinar Jovelino D’Oliveira Saldaña. Ainda assim, persistiu a escrever artigos contra os Vargas, no diário santo-tomenho El Pueblo, de propriedade do jornalista J. Iturriaga. “O Bejo pretendeu fazer uma incursão em território argentino para trazer de lá, pela força, Jovelino Saldanha e um sr. Iturriaga. Levou, além dos rapazes, uma patrulha do 14º, armada de fuzis e metralhadoras”, registrou Getúlio.
Benjamin Vargas buscara repetir a façanha de apenas um mês antes, quando lançara mão de expediente idêntico para prender e levar de volta a São Borja outro desafeto dos Vargas, o coronel João Garcia Cony, militar que participara do movimento constitucionalista de 1932. Cony, que também se refugiara em Santo Tomé, fora sequestrado de dentro de um automóvel, sendo então surrado, amarrado e amordaçado por homens supostamente a mando de Bejo, depois transferido para o quartel do 14º, onde ainda se encontrava detido.
Os planos de Benjamin de apanhar Jovelino pelos mesmos métodos começaram a esbarrar nos temores do cônsul, que imaginou ser arrolado como responsável pelo estopim de um conflito internacional. Só após obter a autorização para o desembarque da lancha Dois Ases em Santo Tomé, Schiavo tomou conhecimento dos verdadeiros propósitos da excursão. Preocupado, procurou o velho general Manuel Vargas, pai de Getúlio, e o fez ver o tamanho da confusão em que o filho caçula, Bejo, podia estar envolvido. Entrevado pelo reumatismo, o general nonagenário recorreu ao primogênito Viriato. Ordenou-lhe que impedisse o irmão mais moço de cometer um desvario. Contudo, uma vez acionado, Viriato alegou ter chegado ao porto de São Borja tarde demais. A lancha acabara de partir. Nada mais pudera fazer a respeito.
A ação tramada originalmente por Benjamin Vargas previa que ele, Odon e Ary fossem ao cinema apenas para sustentar um futuro álibi. Depois do desembarque do trio, a Dois Ases seguiria mais alguns metros rio abaixo, despejando os demais passageiros em um trecho além do campo de visão do posto da guarda. Todos se reuniriam por volta da meia-noite, em lugar combinado, após terem localizado e aprisionado Jovelino Saldanha. O plano, obviamente, não tinha nenhuma espécie de sustentação legal. Caso desejasse a detenção de Jovelino, Bejo teria de obedecer aos trâmites necessários, providenciando da parte do governo brasileiro um pedido de extradição baseado em razões jurídicas objetivas e bem fundamentadas.
“O Bejo cometeu uma imprudência”, reconheceu, em carta a Getúlio, o enlutado Protásio, segundo filho de Manuel Vargas e pai de Ary, um dos rapazes mortos no episódio.
Enquanto a imprensa brasileira relegou o caso ao rápido esquecimento, as investigações do lado argentino prosseguiram. O encarregado do inquérito oficial, o capitão portenho Osvaldo Repetto, secundado pelo diretor de negócios políticos do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Podestá Costa, interrogou testemunhas e procedeu a uma averiguação minuciosa. Todos os depoimentos apontaram para Benjamin Vargas como responsável pela trama. Um dos ouvidos, o comerciante santo-tomenho Rafael Sánchez, que estava em São Borja no dia fatídico, revelou que o lancheiro Georg Rosembeck se negara a transportar homens armados a Santo Tomé, mas fora obrigado a fazê-lo por Bejo, que lhe apontara um revólver contra a cabeça, prometendo atirar se o alemão insistisse na recusa. Rosembeck teria chegado a simular uma pane no motor da embarcação, mas o irmão de Getúlio lhe dera dez minutos para fazer a lancha funcionar, caso quisesse continuar vivo.
A investigação pôs também sob suspeita a origem do incêndio da Dois Ases, não se descartando a hipótese de que o fogo houvesse sido proposital, para se eliminar possíveis provas materiais da natureza criminosa da ação. Desconfiava-se que Rosembeck poderia ter sido morto pelos próprios brasileiros a bordo, a título de queima de arquivo. A suposição, embora jamais comprovada, se amparava no fato de o assistente de lancheiro, testemunha-chave da qual se sabia apenas o prenome – Cassiano –, ter desaparecido misteriosamente de São Borja, o que também levava os investigadores argentinos a acreditar que o rapaz pudesse ter sido executado para não revelar a ninguém o quanto sabia.
A perícia realizada no cenário do tiroteio constatou que não era difícil reconstituir a cena com base nas evidências deixadas no local. Os buracos de bala nas paredes no posto da guarda de Santo Tomé evidenciavam que a construção fora alvejada por armas de diferentes calibres, particularmente por disparos de metralhadora, cujas cápsulas vazias foram localizadas no ancoradouro, junto a um pente de vinte tiros, intacto, esquecido no atropelo da fuga.
Chamado a depor, Benjamim Vargas deu a sua versão para a história: o cabo Verón o agredira com palavras de baixo calão. Bejo reconhecia que a contenda tivera início porque ele e os sobrinhos haviam se negado a ser revistados pela guarda da Marinha argentina. Entretanto, Verón atirara primeiro, de forma intempestiva, para lhes impedir a passagem e convencê-los a retornar à lancha. Questionado sobre o fato de portar uma metralhadora quando desejava apenas ir ao cinema, o caçula dos Vargas negou que estivesse empunhando a arma durante o desembarque. A Hotchkiss estaria a bordo, já que a lancha ficava a serviço do patrulhamento de rotina do rio Uruguai. Depois de serem atacados pelos marinheiros argentinos, teria recorrido a ela, em legítima defesa.
O depoimento de Bejo foi desmontado com a consulta ao registro de entradas e saídas diárias da Dois Ases no porto de Santo Tomé, o que demonstrou o seu uso exclusivo como transporte de passageiros, e não como veículo militar. Além disso, se a metralhadora fora acionada de dentro da embarcação, conforme jurava Benjamin Vargas, não se justificava a presença de centenas de cartuchos vazios sobre o ancoradouro – nem a existência de um pente de recarga no local.
Com base na robustez dos indícios apontados pela investigação, o relatório final do inquérito policial-militar concluiu que existira a intenção deliberada dos brasileiros de entrar ilegalmente com armas em Santo Tomé. E, ao que tudo indicava, com o propósito de capturar Jovelino Saldanha, autor das graves denúncias sobre o sequestro internacional de Garcia Cony. O responsável pela investigação recomendava o monitoramento e o reforço imediato da guarda marítima da fronteira, pois os precedentes apontavam para a possibilidade de novas tentativas de invasão do território platino por gente de São Borja.
Os receios expressos nas conclusões do inquérito assinado pelo capitão Osvaldo Repetto coincidiram com as desconfianças de Getúlio. Ciente do sangue quente que corria nas veias da família, ele temeu que a situação pudesse se agravar ainda mais. Impetuoso como era, Bejo não se conformaria enquanto não providenciasse o devido troco. Numa terra em que a vingança era um valor quase sagrado – um atestado de macheza e de honra lavada –, a hipótese de desforra era algo mais do que previsível.
As circunstâncias se mostravam especialmente alarmantes porque não paravam de chegar ao Catete novos informes confidenciais da embaixada brasileira em Buenos Aires. Os despachos diplomáticos informavam que o 14º de São Borja, comandado pelo coronel Benjamin Vargas, estaria mancomunado com os montoneros da União Cívica Radical, cujos líderes planejavam uma série de ataques a cidades argentinas – Paso de los Libres, Alvear e Santo Tomé – desfechados a partir de suas respectivas “irmãs fronteiriças”: Uruguaiana, Itaqui e São Borja.
O embaixador platino no Rio de Janeiro, Ramón José Cárcano, procurou Getúlio em pessoa, em audiência oficial no Catete, para adverti-lo de que o serviço de inteligência de seu país havia detectado a conivência de tropas rio-grandenses, incluindo o destacamento de São Borja, com radicais argentinos comandados por dois coronéis guerrilheiros foragidos da Justiça portenha: Roberto Bosch e Gregorio Pomar. A cumplicidade entre as partes consistiria no intercâmbio de armas e efetivos entre os batalhões provisórios gaúchos e a guerrilha argentina.
Informado da situação, Getúlio se apressou em telegrafar a Bejo, na tentativa de evitar que o irmão cometesse um desatino ainda maior. “Informações de fonte oficial me dizem que os coronéis Pomar e Bosch estão com cerca de 200 homens armados, próximos a esse município, no lugar denominado Florida, com o propósito de cooperar numa possível alteração da ordem na província de Corrientes”, escreveu Getúlio. “Desnecessário dizer-te da grave inconveniência que poderia acarretar a efetivação de qualquer tentativa [de apoio aos guerrilheiros argentinos], que logo seria atribuída a fins de vingança contra os fatos lamentáveis ocorridos em Santo Tomé.”
Getúlio recomendava a Bejo que tomasse providências urgentes para desmentir qualquer aproximação com os montoneros, que aliás deveriam ser detidos, caso realmente se encontrassem acantonados nas proximidades de São Borja. Como providência adicional, enviou carta a Protásio, que apesar de amargurado pela perda do filho sempre lhe parecera o mais ajuizado dos irmãos. “Não quero crer que o Bejo esteja metido nisso. Ele por certo avalia as dificuldades que tal conduta criaria ao meu governo.”
O telegrama de Getúlio a Benjamin Vargas foi enviado na manhã de 30 de outubro de 1933. Às três da tarde do mesmo dia, veio a resposta. “São inexatas as informações de que os coronéis Bosch e Pomar estejam no lugar denominado Florida”, comunicou Bejo. “Podeis ficar tranquilo”, garantiu. “Não seria este o momento para me deixar levar por interesses subalternos de qualquer espécie, trazendo sérias complicações ao governo.”
Apesar do desmentido, Bosch e Pomar perambulavam pela região missioneira havia mais de um ano, onde instalaram um campo de treinamento militar para adestrar mercenários arregimentados em fazendas gaúchas. Era pouco provável que Bejo não tivesse conhecimento do fato. Outro comandante radical argentino, Pedro Lucas Torres, contrabandista de armas mais conhecido pelo apelido de Don Lucas, era um velho amigo dos irmãos Vargas. Por meio dele, em 1932, o “Catorze-de-pé-no-chão” recebera oitenta carabinas Mauser antes de rumar para a guerra contra os paulistas. Depois de pouco mais de um ano, Don Lucas aguardava a devida retribuição por parte do comandante do 14º Corpo Provisório de São Borja.
“O radicalismo argentino tem uma dívida de gratidão difícil de saldar com o tenente-coronel Benjamin Dornelles Vargas”, diria Don Lucas em suas memórias. No livro Revoluciones Radicales: Misiones/Santo Tomé, o chefe guerrilheiro deixou referências meticulosas a respeito do planejamento daquilo que classificava como “a Patriada de 1933”. “Nos três pontos de ataque sobre o rio Uruguai, amigos rio-grandenses secundariam nosso esforço. […] Eu atuaria em Santo Tomé, o ponto-chave do setor norte.”
O assalto final já contava com data e hora marcada: o último dia daquele ano, à meia-noite. A chefia da tropa que deveria sair de São Borja para tomar Santo Tomé ficaria confiada ao major guerrilheiro Domingo Aguirre. Os documentos delineando as estratégias da operação, mais tarde apreendidos pelo governo argentino, não deixavam margem a dúvidas. Homens do 14º Corpo Auxiliar, comandado por Bejo Vargas, eram citados nominalmente como envolvidos no apoio tático ao movimento. Pelo combinado, em pleno Réveillon, lanchas carregadas de armas e rebeldes soltariam suas amarras na margem brasileira do rio Uruguai, em São Borja, e deslizariam sorrateiramente para a margem oposta, na Argentina.
Terminado o desembarque, pelotões guerrilheiros marchariam sobre o posto dos guardas-marinhas de Santo Tomé, enquanto outros se esgueirariam para um ataque concentrado contra o prédio da polícia local. Uma sequência de sinais luminosos faria a comunicação entre os dois grupos. Segundo se esperava, ninguém na cidade deveria desconfiar de nada, pois os sinalizadores seriam confundidos com os fogos de artifício das comemorações pelo Ano-Novo.
Estava tudo pronto para a deflagração da ofensiva. Mas Benjamin Vargas continuava negando ao irmão qualquer sinal dos montoneros nas imediações dos domínios rurais da família Vargas em São Borja. Em questão de dias, os fatos iriam demonstrar que Bejo não estava falando a verdade.
“Vamos degolar!”
Gregório Fortunato, à frente de um grupo de cinquenta homens armados de rifles, fuzis, revólveres, espadas e granadas de mão, deu ordem para iniciar o combate, conforme descrição do são-borjense Iberê Athayde Teixeira, autor de 1933: A Invasão de Santo Tomé. O ataque fora antecipado em 24 horas, após os montoneros acantonados em Uruguaiana precipitarem a investida sobre Paso de los Libres, desfechando-a já na madrugada de 29 para 30 de dezembro. A fim de que se mantivessem os assaltos rebeldes à província argentina de Corrientes minimamente concatenados, o major guerrilheiro Domingo Aguirre decidiu não esperar mais pela noite do Ano-Novo, como antes combinado. Nos primeiros minutos do dia 31, um domingo, ordenou também a ofensiva sobre Santo Tomé. Os homens do 14º Corpo Auxiliar de São Borja, o “Catorze-de-pé-no-chão”, com os distintivos do uniforme arrancados, coadjuvaram a batalha, sob o comando de Fortunato.
Pego de surpresa, o oficial Armando López Ramírez, líder de uma patrulha avançada da guarda marítima argentina, percebeu que não conseguiria conter os invasores, em maior número e com superior poder de fogo. Sua meia dúzia de comandados seria trucidada em questão de minutos, calculou Ramírez. A única alternativa era debandar.
A correria dos argentinos foi acompanhada por um chuveiro de balas de metralhadora. O matraquear partiu de uma lancha conduzida por João Falkemback, capanga de Benjamin Vargas. Embora não tenham atingido ninguém, as rajadas se encarregaram de desestimular qualquer reagrupamento, possibilitando que as outras lanchas oriundas de São Borja despejassem mais 200 elementos em terra firme.
A primeira parte da missão estava cumprida. O desembarque, feito na embocadura do arroio Itacuá, ao norte da zona urbana de Santo Tomé, foi mais fácil do que se imaginava. Dali a 6 quilômetros, ficava o pontilhão de madeira que dava acesso às cercanias da cidade. Para atravessá-lo, Fortunato, Falkemback e seus companheiros só tiveram que enfrentar outra patrulha, também por demais diminuta para oferecer alguma resistência efetiva.
“Vamos degolar! Vamos degolar!”, continuava gritando Fortunato, como um alucinado.
Dessa vez, foi o tenente Salomão Morales quem autorizou o salve-se quem puder. Na batida em retirada, dois argentinos foram alvejados pelas costas. Poucos metros à frente, um terceiro tombou morto quando tentou se voltar e apontar o cano da escopeta contra os atacantes. Uma bala dundum o acertou em cheio no rosto. Apesar da ferocidade da ação, as ameaças de degola fanfarreadas por Fortunato não se concretizaram. Era um grito de guerra, lançado mais para intimidar o inimigo do que para ser entendido como ordem literal.
À entrada de Santo Tomé, Fortunato dividiu o grupo em dois pelotões. Um marchou conduzido por Falkemback, outro por ele próprio. O primeiro contornou as ruas à direita até chegar ao hotel Paris, em cujo telhado foi aninhada uma metralhadora, com a mira voltada para o prédio da polícia. O segundo seguiu pelas ruas à esquerda, estabelecendo o movimento de pinça, cercando a chefatura pelo flanco oposto.
Os sinais luminosos pré-combinados indicavam que, àquela hora, cerca de duas da manhã, o coronel Domingo Aguirre não apenas dominara pessoalmente o posto da guarda e a subprefeitura próximos ao porto, como também já ocupara com cerca de outros 200 indivíduos as dependências da Escola Normal, no Centro da cidade, onde ficou instalado o quartel-general dos rebeldes. Ao todo, eram quase 500 invasores contra menos de duas dezenas de homens responsáveis pela guarda local, incluindo policiais e marinheiros.
Alertados pelo ruído dos primeiros tiros, os defensores esboçaram uma reação honrosa. Os reforços prometidos por Buenos Aires não haviam chegado. De acordo com Iberê Athayde Teixeira, dívidas administrativas da província de Corrientes junto à empresa de transportes Ferrocarril impossibilitaram o fretamento de um comboio para conduzir novos destacamentos a Santo Tomé. A tropa de apoio se resumiu a um capitão, três tenentes, dois sargentos e meia dúzia de praças. Encurralados, estes mantiveram posição no interior da delegacia e rebateram a abordagem, sustentando o tiroteio pelo resto da noite, até esgotar a munição. Às primeiras horas da manhã, Domingo Aguirre enviou um ultimato ao comissário Ramón Corrales, chefe da polícia local. Fariam uma rápida trégua, para que ele e seus companheiros saíssem de mãos para cima.
“Senhor comissário; vocês têm vinte minutos para se render. Caso contrário, atacarei e ordenarei seu imediato fuzilamento.”
Meia hora depois, sem nenhuma resposta, Aguirre ordenou a arremetida final. Após um movimento coordenado, o prédio foi invadido. Em vez de fuzilarem Corrales, colocaram-no na cadeia, em companhia dos subordinados. Todos os prisioneiros que se encontravam nas celas, tão logo se viram em liberdade, reuniram-se aos invasores.
“Viva los brasileños!”, saudaram os recém-libertos.
O brado ilustrava bem a singularidade do momento. Articulada pelo comando montonero, a tomada de Santo Tomé foi executada predominantemente por brasileiros. Do meio milheiro de invasores, apenas cinquenta eram de nacionalidade argentina. Os demais não tinham nenhum interesse político naquela luta. Uns, mercenários arregimentados em terras gaúchas, estavam mais preocupados em se apropriar do butim prometido pela guerrilha. Outros, integrantes do 14º, vinham movidos pelo espírito de vingança de seu comandante, Benjamin Vargas – que não participava do assalto em pessoa, mas liberara seus homens para a ação, consentindo que também se apropriassem dos rescaldos do confronto.
Depois de destruírem as instalações da polícia, os agressores partiram para tomar o prédio dos correios, a central telefônica e a estação ferroviária, dominando as comunicações da cidade com o restante do país. A caixa-forte da agência local do Banco de La Nación Argentina, alvo prioritário, permaneceu intacta. O tesoureiro, portador de uma das três chaves necessárias para abrir o cofre, conseguiu fugir da cidade antes de ser localizado pelos salteadores. Nem mesmo dois serralheiros mandados buscar nas redondezas, munidos de maçarico e pé de cabra, conseguiram arrombar a sólida fechadura de segurança. Como havia o compromisso de remunerar os bandoleiros brasileiros pelos “serviços prestados” à liderança guerrilheira, decidiu-se promover uma arrecadação compulsória entre os aterrorizados moradores de Santo Tomé. Domingo Aguirre ordenou que o gerente e o contador do banco saíssem batendo de porta em porta, arrecadando “donativos” junto à população, até conseguirem reunir um valor suficientemente elevado para ser pago a título de “imposto de guerra”.
Nem precisariam ter se dado a semelhante trabalho. Excitados pela vitória e pelos litros de álcool confiscados nos empórios da cidade, os invasores já haviam iniciado um saque generalizado aos lares e comércios. Durante o dia inteiro, Santo Tomé foi alvo da mais escancarada pilhagem. As prateleiras dos armazéns, lojas, bares e mercearias restaram vazias. Residências eram invadidas com violência. Anéis, joias, carteiras e relógios foram arrancados das mãos dos respectivos donos. No meio da tarde, podiam ser vistas sobre as calçadas montanhas de sacas de mantimentos, móveis, máquinas de costura, caixotes com porcelana e prataria, além de feixes de roupas, colchões, cortinas e lençóis – tudo aguardando a vez de ser transportado em barcaças para a margem brasileira. Automóveis e caminhões não escaparam à rapina. Abarrotados de víveres e objetos roubados, também foram conduzidos em balsas com destino a São Borja.
O roubo desenfreado só teve fim quando, já à noite, chegou pelo telégrafo a informação de que as arremetidas previstas pelos montoneros nos demais alvos da fronteira haviam fracassado. Segundo os informes, as cidades de Paso de los Libres e Alvear, assaltadas por contingentes rebeldes a partir de Uruguaiana e Itaqui, tinham resistido ao cerco e conseguido repelir os agressores. No resto do país, os quartéis não haviam se levantado, diferentemente do planejado pelos organizadores da “patriada”. Em Buenos Aires, a população não saíra às ruas em protestos diante da Casa Rosada, como esperavam os líderes do movimento. Ao contrário, o presidente Agustín Justo ordenara o deslocamento urgente de efetivos rumo à província de Corrientes, incluindo uma esquadrilha de aviões de guerra, com o objetivo de retomar Santo Tomé dos usurpadores.
A confirmação da notícia acelerou as providências para a travessia do material pilhado rumo ao Brasil. Na pressa, até mesmo armas e munições do 14º foram abandonadas, o que serviria como evidência material da participação de tropas brasileiras no episódio. Na hora da fuga, os saqueadores deram preferência aos bens de maior valor. Embriagados, encontraram tempo, porém, de deixar uma “lembrança” aos vizinhos santo-tomenhos. Na plaza San Martín, a mais importante da cidade, o pedestal da estátua equestre do herói nacional argentino virou peça de tiro ao alvo. Ficou inteiramente crivado de balas.
“A Argentina apresentou uma nota de protesto ao governo sobre as atividades de elementos militares brasileiros do 14º Corpo Auxiliar na invasão de território argentino”, escreveu um preocupado Getúlio Vargas em seu diário, em 10 de janeiro de 1934. Nos meses seguintes, o caso seria objeto de debates acalorados entre as representações dos dois países. O Itamaraty, por meio do ministro interino das Relações Exteriores, Félix de Barros Cavalcanti de Lacerda, tentou contornar as implicações diplomáticas do episódio. Em correspondência à embaixada platina, afirmou que o Brasil estaria “vivamente empenhado em esclarecer os fatos”. Como prova disso, o Catete ordenara a abertura imediata de “um rigoroso inquérito policial-militar”.
Entretanto, o desenrolar dos acontecimentos mostrou que tal investigação, na prática, resultou apenas em um tímido pedido formal de desculpas ao país vizinho pelo fato de “alguns brasileiros, sem função oficial, felizmente em número muito limitado, se houverem deixado envolver por espírito aventureiro em um ataque levado a efeito por argentinos a uma cidade de sua própria pátria”. De acordo com a correspondência oficial enviada pelo ministro Cavalcanti de Lacerda ao embaixador Ramón Cárcano, o governo do Brasil teria tomado todas as providências para a devida punição dos culpados; entretanto, “o inquérito policial-militar não pôde apurar responsabilidades individualizadas”.
Os termos da carta do Itamaraty irritaram Cárcano, que a respondeu em tom áspero, dizendo-se “profundamente decepcionado” com a atitude oficial brasileira. O embaixador indagava como fora possível aos montoneros reunir, organizar, armar e municiar tão grande número de celerados, em pleno território do Rio Grande do Sul, sem que as autoridades locais tivessem conhecimento. “As armas e munições encontradas em poder dos revolucionários, bem como as lanchas de transporte por eles utilizadas, saíram dos arsenais e quartéis brasileiros”, censurou Cárcano. “Foram identificados, com seus respectivos nomes, os cidadãos do Brasil que assaltaram a cidade argentina, assim como vários soldados do 14º, muito conhecidos em uma e outra margem.”
Em maio de 1935, Getúlio Vargas retribuiu a visita de Agustín Justo ao Rio de Janeiro e viajou para Buenos Aires. Nos largos espaços editoriais dedicados à permanência de Getúlio no país, a imprensa portenha não tratou, em uma única linha que fosse, da polêmica sobre a invasão de Santo Tomé, ocorrida cerca de dois anos e meio antes. A propósito, no retorno ao Brasil, Getúlio trouxe quatro acordos de cooperação assinados com o país vizinho. Um deles versava sobre a colaboração mútua no caso de conflitos e guerras civis ocorridas em qualquer um dos lados da fronteira.
Ambas as nações se comprometiam, a partir daquela data, a estreitar a relação entre suas polícias políticas e notificar um ao outro a respeito de futuras alterações na ordem interna, provocadas por conspiradores e guerrilheiros em suas respectivas zonas limítrofes. “O governo requerido usará de todos os meios disponíveis para impedir que, em sua jurisdição, se equipe, se arme ou se adapte qualquer embarcação para uso bélico, quando por motivos fundamentados se acredite destinada a operar em favor dos eventuais rebeldes”, rezava um dos artigos.
Estava claro que os termos previstos no documento remetiam à política em curso de repressão aos movimentos comunistas no continente, mas era também uma forma indireta de aludir ao rumoroso episódio no qual homens do 14º Corpo Provisório de São Borja coadjuvaram, com lanchas, efetivos e armas, os montoneros argentinos no ataque a Santo Tomé. Segundo consta, nas conversas preliminares para a assinatura do acordo, o governo brasileiro aceitara pagar uma indenização à Argentina de 130 contos de réis, por meio de verbas orçamentárias oriundas do Departamento Nacional do Café, a título de ressarcimento pelos estragos causados por Gregório Fortunato e seu bando do outro lado do rio Uruguai. O valor era superior à receita anual de 100 contos de réis provenientes de todas as caixas de aposentadorias e pensões gerenciadas pelo Conselho Nacional do Trabalho, uma das vitrines da política trabalhista de Getúlio.
Os papéis das negociações diplomáticas finais relativas ao caso da invasão de Santo Tomé, porém, desapareceram para sempre. No Departamento de Comunicações e Documentação (DCD) do Ministério das Relações Exteriores, não restou uma única lauda a respeito. Há um intrigante vácuo cronológico nos arquivos referentes a 1935. A própria direção do órgão presume que os documentos tenham sido sumariamente destruídos.
[1] Apesar de o chamado movimento Montonero ter surgido, com esse nome, apenas na segunda metade do século XX, os rebeldes argentinos da década de 30 já eram mencionados, pela imprensa e pelos documentos do período, genericamente, como montoneros, denominação comum às milícias rurais do país desde o século XIX.
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