Mural de Edy HP e Paulo Terra em SP: na voz de Marília Mendonça, versos viravam ordens CRÉDITO: FRANCISCO CEPEDA_AGNEWS_2021
Todo mundo vai sofrer
Uma carta aos admiradores de Marília Mendonça, que ensinou às mulheres que a tristeza não é exclusividade delas
Martha Batalha | Edição 183, Dezembro 2021
Queridos fãs da Marília Mendonça,
Talvez seja assim também para vocês: eu tenho dentro de mim uma estante, que se estende de uma ponta a outra do meu interior. Guardo ali os filmes, os discos, os livros, as imagens, ideias e conceitos, as pessoas que não me conhecem, mas que eu conheço, no meu íntimo, e produzem o que eu sabia e era incapaz de expressar, ou o que eu não sabia e me completa ou emociona. O que está nessa estante se transforma e interage, modifica-se e me modifica, torna-se parte do que sou e de como eu vejo o mundo. As peças são preciosas e densas como totens, mas frágeis como bibelôs, e, quando uma delas – da ala das pessoinhas – se quebra, não desaparece. É substituída pelo vazio de si mesma, o espaço é agora ocupado pela nostalgia, pela expectativa interrompida e pela tristeza do que poderia ter sido. Não há lógica, fatalismo ou religião que justifique uma prateleira vazia. É sempre errado.
Marília Mendonça, item precioso na estante de milhões de pessoas, se foi deixando entre nós camadas de dor. Pela juventude suspensa, pelo filho pequenino, pela forma como morreu, pelo que não vamos mais ouvir, pelo que o Brasil precisava ouvir. Ela se tornou um símbolo da força feminina e do que as mulheres estão aprendendo a dizer. Mas, francamente, quem quiser um símbolo que compre uma bandeira. Queríamos Marília viva, abraçando a mãe, tocando violão, engordando, emagrecendo, namorando, separando, postando nas redes e envelhecendo com a gente, o vozeirão como parte da trilha sonora das nossas vidas.
E, agora, como vai ser? Como cantar de olhos fechados e com muito sentimento Quem eu quero não me quer/quem me quer não vou querer, sem pensar em avião, acidente, filho, ausência? Por que aviões têm que cair? Tinha que ser logo depois do Paulo Gustavo? Depois de mais de 600 mil mortes? Como conciliar o riso de escárnio de Bolsonaro com a fila do osso e a imagem de Marília com violão e mala de rodinhas a caminho da morte?
Quando é que ser brasileiro vai parar de doer?
Vou contar uma história: nos anos 1990, depois de um divórcio relativamente mal negociado (meu ex-marido ficou com o carro e o apartamento, eu, com o açucareiro e minha liberdade), fui morar com meu avô. Era um apartamento na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, cheio de livros e CDs de ópera. Fim de semana era Maria Callas cantando, e meu avô soltando uma lágrima no sofá. Nos sábados de manhã, fazíamos o típico programa carioca Zona Oeste, indo passear no BarraShopping. Numa dessas meu avô comprou uma coleção de CDs remasterizados do Orlando Silva. Trocamos a diva da ópera pelo cantor da era de ouro da Rádio Nacional. Dias inteiros passei em companhia de Orlando Silva, ele dizendo, aliás, mandando uma formosa mulher abrir a janela, assim: Abre a janela, formosa mulher/E vem dizer adeus a quem te adora./Apesar de te amar como sempre amei,/na hora da orgia eu vou embora.
Eu achava graça. Dessa mulher que Orlando Silva, com voz elegante e suporte da orquestra, mandava abrir a janela para dar a ele votos de boa esbórnia.
Como a vida era difícil para as mulheres de antigamente.
Foi também nessa época que a dupla Leandro e Leonardo estourou nas paradas, me fazendo repetir: Pense em mim /chore por mim/liga para mim, não, não liga pra ele./Pra ele. Não chore por ele.
Cantei demais esse refrão, internalizando a voz de um homem dizendo a uma mulher que os dois pegariam o primeiro avião a caminho da felicidade. Dizendo a ela: a felicidade, para mim, é você. Chore por mim.
Como a vida era difícil para as mulheres de antigamente.
Qual é a moral da história? Duas. A primeira é que não há moral. Muitas vezes, a principal função de um texto ou de uma letra de música é distrair e entreter. Funcionam se fazem vocês, fãs da Marília Mendonça, pensarem no meu avô soltando uma lágrima no sofá, na minha liberdade acrescida de açucareiro, enquanto uma parte interna e que ainda dói pela morte da cantora tenta elaborar a perda e se curar, no tempo de cada um.
A segunda não faz feio a Esopo, o grego que inventava fábulas. Desde que o samba é samba e que o sertanejo é sertanejo, desde que a MPB é MPB, com todos os ritmos e letras, regionalismos e tendências que compõem a mistura musical mais extraordinária do mundo – porque não há, e isso eu assino embaixo e ofereço as mãos com que digito ao fogo, não há no mundo música mais rica que a brasileira –, enfim, desde o começo dos nossos esquindôs a mulher sofre nas letras. E Marília Mendonça ajudou a colocar ordem no palco, dizendo que agora todo mundo ia sofrer, e não apenas as mulheres. Cantando que o para sempre virou pó, que as mulheres precisavam esquecer e superar, e quem se prostituía não era vadia ou vilã.
Ela não fez isso com delicadeza, como se fosse eu a dizer para minha filha: “Vai lá, meu bem, botar um casaquinho.” Marília Mendonça não tinha uma voz. Ela tinha um estrondo na garganta. Era um ciclone, que preenchia o palco e irradiava para a plateia. Na voz de Marília, versos se tornavam ordem. Por exemplo, na canção Alô Porteiro, sobre uma mulher que manda barrar o companheiro infiel na portaria: Pegue suas coisas que estão aqui/Nesse apartamento você não entra mais […] Alô porteiro, tô ligando pra te avisar/Esse homem que está aí/Ele não pode mais subir/Tá proibido de entrar.
Na voz de trovão de Marília, esse homem desaparece, o porteiro diz “simsenhora”, e mesmo eu, que não tenho nada a ver com o bafafá, anseio ganhar meu dinheirinho para comprar um apartamento com interfone, pelo qual ordenaria ao porteiro barrar a subida de um infiel.
E agora ela não está mais aqui. Em horas assim, de dor, de raiva e revolta, eu penso numa pessoa que não tem nada a ver com o assunto: Bill Gates. No disse me disse da internet é atribuída a ele uma lista feita pelo jornalista Charles Skyes com catorze regras para a vida. A única que tenho de cor é esta: “A vida é injusta – Acostume-se com isso.”
A vida é injusta. Não deveria, mas sempre foi e ainda é injusta.
Creio que posso dizer algo mais positivo: 1) Tão importante quanto a voz de Marília Mendonça é a voz de cada mulher, e suas ações; 2) Marília não inventou o que as mulheres precisavam dizer – ela só disse. O que as mulheres devem e precisam dizer para elas, para os filhos e para o mundo, está nelas mesmas. Sempre esteve, embora há pouquíssimo tempo elas tenham começado a perceber. É um processo individual que se conecta de um modo lindo com o coletivo.
A verdade dessas mulheres – e também dos homens que aprendem a ver e sabem o que é o certo – é capaz de mudar uma sociedade. Juntos eles podem criar um mantra poderoso, como o da plateia jovem, feliz, confiante e otimista que cantava com os celulares iluminados um refrão de amor, em um show de Marília Mendonça.
Com afeto,
Martha Batalha
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