A vida privada em casa e com os amigos era seu maior consolo, mas era também profundamente triste: ele não podia ser aquilo que ele queria ser, e era atormentado e humilhado por seu "velho" eu - que ele chamava de "o velho Tony"-, perdido para sempre ILUSTRAÇÃO: FERNANDO VICENTE_WWW.FERNANDOVICENTE.ES
Tony Judt: A vitória final
A viúva relata os momentos finais ao lado do historiador e as condições em que ele escreveu seu último livro
Jennifer A. Homans | Edição 67, Abril 2012
Fui casada com Tony Judt. Vivíamos com nossos dois filhos quando ele enfrentou o terror da ELA [Esclerose Lateral Amiotrófica], mais conhecida como doença de Lou Gehrig. Foi um calvário de dois anos, do seu diagnóstico em 2008 à morte em 2010, e ao longo dele Tony conseguiu, contra todas as adversidades, escrever três livros. O último, que se seguiu a O Mal Ronda a Terra e O Chalé da Memória, foi Pensando o Século XX, baseado em conversações com Timothy Snyder.[1] Ele começou a trabalhar no livro pouco depois de ter sido diagnosticado: em questão de meses estava tetraplégico e usando aparelho para respirar, mas seguia trabalhando assim mesmo. Ele e Tim concluíram o trabalho um mês antes de sua morte. O livro acompanhou a doença; fez parte da doença e de sua morte.
É uma história do pensamento do século XX. Começa com reflexões sobre o idealismo e o sofrimento dos judeus na Europa, e termina com um exame devastador do fracasso da política norte-americana no mundo pós-Guerra Fria. É também uma espécie de autobiografia intelectual. “Uma espécie de” porque Tony raramente escrevia em primeira pessoa, e as partes autobiográficas do livro foram inseridas, de modo quase relutante, entre as ideias, a história, a política e os dilemas éticos que eram centrais em sua vida.
Isso não significa que o livro não seja pessoal. Para Tony, as ideias eram um tipo de emoção, algo que ele sentia e de que cuidava do mesmo modo que a maioria das pessoas sente e cuida de sentimentos como a tristeza ou o amor. Isso, como o livro mostra, remonta ao início – ou antes mesmo do início – de sua vida: Tony recebeu este nome em homenagem à prima de seu pai, Toni, que morreu ainda garota em Auschwitz. À medida que ele crescia, seu pai foi lhe transmitindo sua própria paixão pela política de esquerda e pela história europeia como uma forma de amor paterno: o presente de aniversário de 13 anos de Tony, que ele devorou, foram os três volumes da biografia de Isaac Deutscher sobre Trotsky. As ideias e a necessidade de explicações históricas marcaram-no desde então, e de modo profundo, até desembocar em Pensando o Século XX.
Entre todos os escritos de Tony, este livro me parece necessitar de alguma explicação: um pano de fundo ou cenário, porque o cenário – as condições em que ele foi escrito – era demasiado escuro e porque a escuridão moldou o livro, não só na forma, mas também nas ideias. Escrevo porque tenho algumas coisas a dizer a respeito de Pensando o Século XX – coisas que, acredito, ele gostaria que seus leitores soubessem.
Quando Tony recebeu o diagnóstico de ELA, soube que iria morrer em breve. Soube disso antes que algum médico precisasse lhe dizer; e continuou sabendo mesmo enquanto buscava todas as explicações, alternativas e curas possíveis. Ele sabia porque estava acontecendo com ele dia a dia: mãos, braços, pernas, respiração saíam de seu controle numa velocidade apavorante. Era impossível manter o prumo em meio a uma rotina vertiginosa e extenuante de médicos, exames e crises diárias; de emoções grandes demais e sérias demais para suportar; de perplexidade e determinação; de raiva, dor, desespero e amor.
A certa altura – é difícil dizer exatamente quando, mas foi por volta da época em que ele começou Pensando o Século XX – entramos no que passamos a chamar de bolha. A bolha era um mundo fechado, uma realidade alternativa, um lugar dentro do qual vivíamos e do qual espiávamos o que se passava fora. Tinha paredes – transparentes, diáfanas –, mas eram como vidros espelhados: podíamos ver o lado de fora, mas ninguém conseguia ver dentro, ou pelo menos era essa a sensação que tínhamos. Sabíamos que o nosso era um mundo estranho e à parte, governado pelas leis da doença e da morte, e não pelas da vida. Eu podia de quando em quando atravessar a parede, dar uma caminhada e ver o céu. Tony não podia – e poderia cada vez menos.
À medida que a doença avançava, ele foi ficando compreensivelmente mais receoso. Havia coisas demais que ele não era capaz de controlar no mundo exterior: as tomadas elétricas para o aparelho de respiração (as baterias acabam), sua cadeira de rodas (motorizada, mas que ele não tinha como dirigir) e – não menos importante – a insuportável benevolência de pessoas que não o compreendiam. Buscava um triste refúgio em seu estúdio de trabalho, seu quarto de doente, seu casulo-prisão fechado e seguro que hospedaria seu corpo em deterioração e sua mente trancafiada.
Quanto mais ele se recolhia, mais público se tornava. Sua vida privada em casa e com os amigos era seu maior consolo, mas era também profundamente triste: ele não podia ser aquilo que queria ser, e era atormentado e humilhado por seu “velho” eu – que ele chamava de “o velho Tony” –, perdido para sempre. Havia outros lugares onde, de certa maneira, era mais fácil estar: portais para o mundo nos quais ele poderia encontrar uma passagem, ao menos momentânea, para sair da bolha, de volta a si próprio. Desencarnados, o e-mail e a rede virtual mundial eram um desses lugares. As palavras e a memória eram os outros. Com a ajuda da família e dos amigos, em especial de seu extraordinário assistente Eugene Rusyn, que tinha uma habilidade única para ficar invisível e era capaz de digitar à velocidade do pensamento e da fala, Tony podia se sentar diante do computador e nós podíamos agir como suas mãos, digitando suas palavras e abrindo eletronicamente sua visão para o mundo. E assim ele foi dando conta de cada vez mais escritos, cada vez mais e-mails e entrevistas eletrônicas, qualquer coisa que as pessoas pudessem ler ou ouvir, mas não ver. Pensando o Século XX era parte disso: um portal para o mundo.
O passado ainda era o motor de seus pensamentos. Não mais a história, mas a memória. A memória era a única certeza de Tony, e ele se agarrou a ela como a uma tábua de salvação. Era o que a doença não podia tirar dele. Era outro modo de sair da bolha e a única forma de independência que ele possuía, e a manteve até o fim. Para evocar uma lembrança, ele não precisava pedir nada a ninguém: estava simplesmente ali, e enquanto ele ainda conseguia falar, podia usar sua memória à vontade. Era toda dele. É por isso que Pensando o Século XX é uma obra de memória, não de história, ainda que o século XX seja o seu assunto. Não é como os outros livros dele, que dependiam de uma enorme quantidade de notas, referências, materiais, mapas, gráficos e informações recolhidas em centenas de fontes e diligentemente transcritas e ordenadas em longos blocos de papel.
Pensando o Século XX estava dentro dele. Ele já começara a trabalhar numa história do pensamento no século XX, mas ainda estava nos estágios iniciais quando ficou doente. Assim, quando o historiador Timothy Snyder, seu colega e amigo, o procurou com a ideia de uma série de conversações, o livro que Tony tinha planejado escrever se metamorfoseou, com Tim, em Pensando o Século XX.
A cada semana, durante vários meses, Tim vinha a nossa casa com seu gravador e sentava com Tony na sala de estar. Eles conversavam por duas horas seguidas – sem pausa. Tony entrava em cada uma das conversas sem preparação e sem anotações. Todos nos lembramos melhor daquilo em que mais acreditamos, e Tony possuía uma memória espantosa para os fatos e a história. Ouvindo-o da cozinha, como fazia com frequência, eu ficava assombrada com seu alcance e seu domínio, quando falava sobre as complicações da política na virada do século, sobre as origens intelectuais do fascismo e sobre o destino do pensamento de direita nas democracias do pós-guerra. Eu estava habituada ao brilho de Tony, mas também ao seu controle: agora ele deixava cair todas as barreiras.
Era uma torrente de conhecimento. Era tudo o que ele sabia, filtrado por suas próprias experiências pessoais. E Tim tomava o cuidado de insistir para que Tony não apenas “contasse” o século XX, mas situasse a si próprio nesse cenário. O sionismo, por exemplo, foi tratado como um capítulo e um movimento do pensamento judeu, ao qual deram pleno reconhecimento histórico. Foi também o primeiro amor político frustrado de Tony, e ele retorna repetidas vezes aos caminhos pelos quais seu comprometimento total – profundamente ideológico – com a causa do sionismo na juventude (depois de ter ingressado num kibutz e servido voluntariamente como tradutor na Guerra dos Seis Dias) e seu subsequente desencanto tinham lhe permitido “identificar o mesmo fanatismo e a mesma miopia, a mesma cegueira exclusivista em outros movimentos”. Essa fase da sua vida lhe deu uma espécie de compreensão histórica das certezas ideológicas frequentemente desastrosas do século XX, que ele então passou a descrever e analisar.
A motivação de Tony para o livro era primordialmente intelectual – e ela tinha de ser poderosa para suplantar o desconforto e a depressão que o acompanhavam constantemente. Tim sabia disso, e quando o diálogo deles funcionava, como costumava acontecer, Tony se transformava. O Tony doente, o Tony frustrado e angustiado, incapaz de comer, de escrever e até de respirar adequadamente, com dores contínuas devido à inatividade, era capaz, com Tim, de encontrar algum alívio e alegria na vida do espírito. Havia algo em Tim, a seriedade e a profundidade do seu conhecimento, sua moralidade protestante do Meio-Oeste, que provocava Tony da melhor maneira possível.
Nesse tempo fora do tempo, as ideias eram tudo. Tony sempre dera mais importância às ideias do que a qualquer outra coisa – mais do que aos amigos; mais até, de alguma maneira, do que a si próprio. Acreditava – de verdade – que elas eram maiores do que ele. Ele não sobreviveria, mas elas sim. Dessa forma, à medida que a doença avançava, o livro importava – cruelmente – cada vez mais. Ele voltou a velhos temas, dedicando um tempo, por exemplo, à reflexão sobre a defesa que fizera em 2003 de uma solução de Estado único em Israel;[2] ou insistindo no vínculo das ideias de Friedrich Hayek sobre economia e planejamento estatal com o cenário histórico austríaco do período entreguerras – um cenário frequentemente ignorado ou mal compreendido pelos especialistas, com a lamentável consequência de que “a experiência austríaca […] foi alçada ao status de teoria econômica” e “veio a embasar não apenas a escola de economia de Chicago, mas todo o debate público significativo sobre escolhas de diretrizes nos Estados Unidos contemporâneos”.
Tim trazia os capítulos rascunhados, com as conversas organizadas de acordo com o esquema que haviam combinado; então Tony e seu assistente trabalhavam no texto, muitas vezes madrugada adentro. O texto nem sempre refletia exatamente o que Tony queria dizer, e o aborrecia que a escrita não tivesse sua voz nem sua elegância estilística. Ele era um escritor, e a fala transcrita – mesmo depois de horas de esmerada edição – lhe parecia estranha, fora de tom, ainda que ele fosse capaz (como gostava de dizer) de falar em forma de parágrafos.
É verdade que o livro foi realizado como um compromisso entre Tony e Tony; entre Tony e Tim; e acima de tudo entre Tony e a ELA. Mas isso faz parte de sua força, creio, e é um sinal da determinação de Tony em fixar suas próprias ideias uma última vez. Isso não torna o livro confessional, mesmo quando ele é autobiográfico: Tony deixou em segundo plano ou de fora as pessoas que lhe eram mais caras, no intuito de protegê-las, e a si próprio, da exposição pública. Ele nunca manteve um diário e nunca colocou no papel seus pensamentos ou reflexões mais íntimos a respeito de si ou das pessoas próximas.
Em parte, talvez, por ser tão reservado, Tony se atormentava com a ideia de sua própria ausência, não em si mesma (era um realista muito duro), mas para seus dois filhos. Queria desesperadamente ensiná-los, amá-los, estar com eles até que entrassem na idade adulta. Tinha tanto a contar a eles sobre os lugares onde esteve, as pessoas que conheceu, os livros que leu (e escreveu), e o que fez de tudo isso. Aqui ele fez uma coisa extraordinária: projetou-se além de sua própria morte e encontrou um jeito de “voltar” do abismo. Não compreendi plenamente na época, mas agora vejo que os mortos podem transpor sentimentos sobre a linha que separa os vivos do que vem depois. Mas – e é um grande mas – só podem fazê-lo se pensarem nisso antecipadamente, antes de morrer de verdade.
Tony fez isso. Ele estava perdendo rapidamente o controle sobre sua vida, mas a vida depois da morte, ironicamente, estava mais ao seu alcance. Ele não acreditava nela para si próprio, mas sim para as pessoas que estava deixando. Não se tratava de algo sobrenatural, embora falasse sobre isso também, mas de uma questão de palavra e registro – uma questão de história. Ele sabia da importância do que escreveria. Pensando o Século XX era um trabalho feito em nome de um futuro que ele sabia que não compartilharia. E, na medida em que contém uma autobiografia, o livro é em grande medida para Daniel e Nicholas.
O livro foi escrito dentro da bolha e traz as marcas dela. O futuro, os planos de Tony e nossa vida imaginada juntos foram apagados de repente. O passado também mudou, cada recordação tornou-se um lembrete melancólico de um corpo e de uma vida que o tinham abandonado. No mundo normal fora da bolha, como ele definia, as pessoas aceitavam que não podiam prever o futuro distante, mas o presente lhes parecia razoavelmente seguro. Podemos não saber onde estaremos daqui a dez anos, mas a maioria de nós sabe o que vai fazer hoje. Para Tony isso de repente se inverteu. O futuro – mesmo o futuro próximo – tornou-se uma certeza: ele ia morrer. O presente, porém, era inteiramente imprevisível. Seus braços se mexeriam hoje? Ele seria capaz de respirar?
Essa reviravolta na percepção do tempo alterou a visão política de Tony. Tudo se tornou urgente: agora era tudo com que ele podia contar. Seus escritos tornaram-se mais radicais. Nós dois víamos seu livro O Mal Ronda a Terra – a abordagem da crescente desigualdade econômica nos Estados Unidos e em outras partes e a traição generalizada dos princípios social-democráticos – como seu Dezoito Brumário. Em Pensando o Século XX, a ideia de justiça saltava com força ao primeiro plano. No entanto, havia algo mais. Justiça, desigualdade e política de boa-fé: sempre tinham sido essas as pedras de toque do pensamento de Tony, mas agora novas ideias entravam em cena, ideias que precisavam fazer sentido no âmbito privado e emotivo, mas também – porque era assim que Tony era e pensava – coletiva e intelectualmente. Humilhação, vergonha, medo, raiva não eram apenas sentimentos. Eram ideias políticas.
Humilhação era a mais importante. Tony a sentia profundamente. Este era um tema constante em sua correspondência com outros atingidos pela ELA. Muitas dessas pessoas eram mais jovens que Tony, além de pobres ou destituídas de assistência médica, com possibilidades de vida escassas ou arruinadas. Precisavam de ajuda – serviços sociais e médicos. A humilhação era um sentimento terrível, mas, conforme ele percebia intensamente, era também – e devia ser tratada como tal – um terrível fato social. “Noite”, seu ensaio descrevendo seu “encarceramento sem liberdade condicional”,[3] era destinado parcialmente a esses amigos, assim como, em outra chave, o final de Pensando o Século XX, no qual Tony defendia – e sentia – com o mesmo ímpeto de sempre a nossa necessidade de “pensar socialmente”: ter o ganho humano, e não o monetário, como meta da política social. Não se referia à política voltada para os deficientes ou para interesses específicos; pensava na responsabilidade coletiva e nos deveres de todos nós uns com os outros.
No período em que ele terminava o livro, a doença estava tomando conta e o espaço para pensar com clareza era limitado e imprevisível, interrompido por crises respiratórias e injeções de morfina. Mas o próprio sofrimento físico de Tony e sua percepção da fragilidade da dignidade humana só fizeram aumentar sua preocupação pelo mundo que ele estava prestes a deixar.
Tomemos sua discussão da nossa era – “a era do medo” –, que encerra o livro. Medo do desemprego, medo de pensões perdidas e declínio financeiro, medo de forasteiros e
de estranhos desconhecidos que poderiam vir jogar bombas. É medo de que nosso governo já não possa mais controlar as circunstâncias de nossas vidas. Ele não pode fazer de nós uma comunidade cercada contra o mundo. Ele perdeu o controle. Esse medo paralisante que, segundo penso, os norte-americanos experimentam muito profundamente foi intensificado pela compreensão de que a segurança [segurança física contra o terrorismo] que eles julgavam ter, agora não têm mais.
A manipulação política do medo deixava Tony enfurecido. Não incomodado, desapontado ou frustrado, como acontecia antes, mas verdadeiramente enfurecido. O medo é a emoção suprema e ele vivia no seu limiar: o medo confrangedor do desamparo, de cair estatelado de costas no cimento duro sem mãos que possam segurá-lo; o medo-pânico de um aparelho de respiração que falha (e o medo, dali em diante, de que aconteça novamente); o medo de estranhos que enfiam tubos no seu nariz e na sua garganta (de modo irracional, mas compreensível, ele queria que eu fizesse isso, embora eu não tivesse ideia de como proceder); e o medo vazio, pasmado, da morte em si. Explorar o medo com fins políticos, como tinha acontecido depois do 11 de Setembro, por exemplo, era para ele um abuso ético de primeira ordem.
Tony sempre fora um crítico sem rodeios da injustiça social: agora sua tolerância era zero. Não tolerância zero a soluções parciais – mesmo uma solução parcial é uma solução –, mas tolerância zero ao engodo político e à desonestidade intelectual. Ele adquiriu, num certo sentido, a sabedoria de uma criança: por que as pessoas não ficam mais furiosas? Algumas ficavam, claro, mas Tony não viveu para ver a Primavera Árabe ou o Occupy Wall Street. Ele certamente teria um interesse intelectual e ativo por ambas.
Nada disso fazia dele, pelo menos em sua própria cabeça, um “intelectual público”. Ele não gostava da expressão, que lhe parecia uma evidência do fracasso dos intelectuais em construir laços entre a academia e a vida pública. Essa divisão era nossa própria trahison des clercs e Tony passou a segunda metade de sua carreira tentando remediá-la: lecionando, pensando e escrevendo do modo mais claro que podia. E ficando sozinho. A ideia de Tony do que significava ser um intelectual estava enraizada em seu senso de solidão, de permanecer à parte do burburinho intelectual, seguindo suas próprias convicções sem pertencer a nenhum grupo ou clube –, mas também capaz de avaliar sozinho um evento ou problema, em suas especificidades, não de acordo com alguma fórmula fixa (ele era a favor da intervenção na Bósnia, mas contra ela no Iraque).
De fato, o maior tormento trazido pela doença era que Tony não podia jamais – nem por um instante – ficar sozinho. Na época em que ele estava “narrando” Pensando o Século XX, tinha perdido seus alunos, suas salas de aula, sua escrivaninha, seus livros; não podia viajar nem fazer uma caminhada. Tinha perdido, em outras palavras, os lugares que o tinham ajudado a engendrar suas ideias. Talvez o mais grave de tudo é que ele perdera o seu lugar: tinha uma percepção rapidamente declinante de si mesmo e uma visão despedaçada de seu próprio ser físico – de seu próprio “estar aí”. Escrever envolve o eu físico – canetas, papel, teclados –, o toque conectando a mente à página: há um ritmo, uma sensação, uma postura e um andamento, uma pulsação através do corpo. Isso, para Tony, havia se perdido. A desorientação que ele sentia era primitiva e profunda. Como poderia deixar de ser? Escrever sem esse sentido de lugar e de si mesmo me parece quase uma impossibilidade.
E no entanto ele escrevia. E é aqui que entra o público – o seu público. Seu público se tornou, com efeito, seu lugar, o único lugar, paradoxalmente, de que ele dispunha para pensar e estar sozinho. E ele realmente pensava alto, em público, ouvindo suas próprias palavras ecoarem eletronicamente de volta para ele em e-mails, entrevistas, blogs, e avaliando criticamente o seu efeito. Naquele espaço estavam as pessoas a quem ele podia ensinar e atrair. “Eles” se tornaram seus alunos e seus colegas. E eles – todos estranhos – ajudaram-no, não com louvores, mas com discussões.
Isso importava porque seu público era seu lugar, mas era também crucial para o seu desafio: era seu adversário supremo. Ao inferno com a doença, com o destino, com o corpo, com o futuro e o passado. Ele iria manter o curso da conversa e aumentar as apostas: seu público iria revidar – e quando a pessoa luta, sente-se viva. Engagé. Ele precisava disso para seguir em frente. Eis por que foi adiante com Pensando o Século XX: dos seus comentários desmoralizadores sobre os intelectuais que apoiaram a Guerra do Iraque até sua sempre clarividente defesa do papel do Estado na vida pública – tudo fazia parte da luta. Ele tinha uma disciplina de soldado e, mesmo em condições deploráveis, seguia lutando, dizendo o que tinha a dizer, afiando e polindo cada palavra. Era essa a única espécie de intelectual público que ele sabia ser.
Dessa forma, Pensando o Século XX verte décadas de reflexão e conhecimento e dias de enfermidade no idealismo de toda uma vida. É um idealismo que, nas circunstâncias, só podia ser sustentado por uma mente ferozmente disciplinada, e a um grande custo pessoal. Não estou dizendo que Tony acreditava numa sociedade ideal. A única coisa a respeito da qual ele era idealista era o debate público sério. Era só isso, além do amor, que restava de pé, não importava o quanto a doença devastasse tudo o mais, e não era pouco o que ela devastava. Tony chamava isso de cerne. Para mim era um estreito feixe de luz na escuridão que estava separando Tony de todos nós. E se Pensando o Século XX, tal como o vejo, situa-se na terra de ninguém entre o que é e o que deveria ser, isso ocorre em parte porque foi movido pela escuridão, mas também em parte pela luz. O livro estava sitiado, como ele próprio.
Imagine, se for possível, como era estar no lugar dele, diante de sua escrivaninha, em sua sala, enquanto se esforçava para concluir o manuscrito e o ambiente ao seu redor escurecia: ar espesso e camadas de poeira impossíveis de limpar, odores que pareciam quase visíveis, de antissépticos, flores, morfina, o cheiro de queimado e o zumbido da eletricidade do amplificador que projetava sua voz cada vez mais débil; janelas abertas de par em par para a entrada de ar e luz, e em seguida fechadas apressadamente para barrar o frio desnaturado que invadia seus ossos estáticos.
Foi aqui, neste estúdio, que Tony completou Pensando o Século XX. Numa terrível ironia final, sua última tarefa pública – e era assim que ele a via – foi editorial: editar suas próprias palavras, no momento mesmo em que ele estava perdendo a capacidade física de formá-las. Pensando o Século XX não ficou perfeito, dizia ele, mas ficou “bom o suficiente”. Bom o suficiente para quê? Bom o suficiente para quem? Para Daniel e Nicholas um dia, evidentemente. Mas também, e talvez acima de tudo, para seu público; para o mundo “lá fora” que tinha feito tanto para ampará-lo. A doença tinha mudado tudo – e absolutamente nada.
O texto de Tony tem data de 5 de julho de 2010. Ele morreu em 6 de agosto.
[1] Thinking the Twentieth Century, recém-publicado pela Penguin, ainda inédito no Brasil.
[2] Ver “Israel: The Alternative”, The New York Review of Books, 23 de outubro de 2003, e sua resposta aos críticos em 4 de dezembro de 2003.
[3] Publicado em The New York Review of Books em 10 de fevereiro de 2010.