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O escritor Itamar Vieira Junior: ele diz que desejaria ser como Elena Ferrante, a autora que nunca teve a identidade revelada e se mostra ao mundo somente por meio de sua obra CRÉDITO: CHRISTIAN CRAVO_2022
“Trabalhar é tá na luta”
Os caminhos do servidor público Itamar Vieira Junior até o fenômeno literário Torto Arado
Clara Rellstab e Fernanda Santana | Edição 193, Outubro 2022
Fundado em 1970, durante o regime militar, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é uma autarquia federal cujo principal objetivo é administrar as terras públicas da União. Entre suas atribuições estão a realização de projetos de colonização em áreas de conflitos, a criação de projetos de assentamentos e a titulação dos territórios quilombolas. Em 2006, um pouco depois de ser aprovado no concurso público para se tornar servidor do órgão, o escritor soteropolitano Itamar Vieira Junior teve que se mudar da Bahia – estado natal com o qual diz manter uma “relação quase umbilical” – para o Maranhão, onde foi alocado para trabalhar em um programa que incluía fomentar educação em projetos de assentamentos em áreas quilombolas. Como não tinha dinheiro para comprar uma passagem de avião até São Luís, percorreu de ônibus os mais de 1,5 mil km que separam as capitais baiana e maranhense. Foram trinta horas de viagem.
Instalado na nova moradia, passava metade do mês em trabalho de campo no interior, visitando os 28 quilombos então identificados e aqueles que poderiam se tornar terras demarcadas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Maranhão é o terceiro estado brasileiro com o maior número de localidades quilombolas no país, atrás de Minas Gerais e Bahia. “Percorri o estado inteiro, conheço o Maranhão de cabo a rabo. Foi uma experiência muito rica e assustadora.” Indagado sobre a razão do último adjetivo, Itamar lembrou de quando se perdeu na Reserva Biológica do Gurupi, conhecida como Amazônia maranhense, com outros colegas do Incra, e acabou numa estrada bloqueada por madeireiros, que só permitiram que Itamar e seus colegas prosseguissem depois do anoitecer, quando o risco de fiscalização sobre a carga ilegal de madeira que carregavam já era menor. Lembrou-se também da vez em que foi ao município de Buriticupu e se deparou com um cenário que parecia ter sido retirado de algum filme de faroeste, com poeira vermelha e gente armada até os dentes. Ao todo, ficou três anos longe da Bahia, até conseguir uma transferência e retornar a Salvador, em 2009.
Na última vez em que conversou com a piauí, num restaurante vegetariano da cidade, no dia 27 de julho, ele estava aflito. O sistema online do Incra tinha apresentado problemas e um ofício feito por ele durante a manhã poderia não ser concluído. “Espero não ter perdido tudo. Vou almoçar e quando voltar eu vejo o que aconteceu.” Apesar do imenso sucesso crítico e comercial de seu primeiro romance, Torto Arado, publicado em Portugal e no Brasil em 2019, Itamar não deixou o emprego, e tenta hoje conciliar as duas atividades numa rotina intensa.
Às 4h30, já está de pé – acorda naturalmente, por força do hábito, sem despertador. O costume vem da infância. Em casa, fosse em fins de semana ou férias, sua mãe, Teresa, achava “inadmissível” se levantar depois das 8 horas. Para o café da manhã, costuma comer uma fruta, pão e tomar café com leite. Depois, vai caminhar ou correr na vizinhança de seu condomínio em Itapuã – antiga vila de pescadores que hoje abriga um bairro que vai do popular à classe média –, onde mora desde 2019. Antes de iniciar o expediente no Incra, reserva um tempo para ler as notícias do dia e replicar nos seus stories do Instagram publicações de leitores que fazem vídeos segurando um exemplar de Torto Arado ou Doramar ou a Odisseia, seu último livro de contos. Só volta a ter contato com a escrita depois do fim do expediente como servidor, no final do dia. Até sentir sono, geralmente por volta da meia-noite, trabalha em seu novo romance, se dedica a artigos (é colunista da Folha de S.Paulo), rascunha a orelha de algum livro (o último foi A Promessa, do autor sul-africano Damon Galgut), ou então dá aulas online como professor de cursos de escrita criativa. O ciclo se repete depois de pouco mais de quatro horas de sono. “Não quero nem lembrar das coisas que tenho por fazer”, diz, ainda que seu rosto não aparente cansaço: o sulco abaixo dos olhos não tem olheiras, a pele é bem cuidada. “Tento não pensar no cansaço para não cansar de fato.”
Quando viaja, os gatos G. H., Lindinho, Bob e Mimi e as cachorras Frida e Hannah – todos resgatados da rua – ficam sob a tutela de Teresa, sua mãe (que prefere os gatos), e Alex, o irmão caçula, que dividem a casa com Itamar. A afeição aos animais é um dos motivos pelos quais o escritor prefere ficar recluso. Os fins de semana são talvez os momentos em que consegue dedicar mais tempo à literatura. Na verdade, só aos domingos, pois os sábados são tomados pela faxina e a preparação de marmitas para consumir no decorrer da semana.
Itamar Rangel Vieira Junior nasceu em 6 de agosto de 1979, numa família pobre de Salvador. O pai, Itamar, de quem herdou o nome e os olhos amendoados, pequenos e puxados, viveu os primeiros anos de vida em Coqueiros, distrito de Maragojipe, no Recôncavo Baiano, às margens do Rio Paraguaçu. A família é de origem negra e indígena. Como a mãe dele, Eurides, teve depressão pós-parto, Itamar pai foi criado pelos avós paternos, Edite e Leandro. A avó vivia da venda de objetos de cerâmica, o principal atrativo cultural e econômico da região, enquanto o avô se dedicava à agricultura – primeiro sozinho, depois com o auxílio do neto. Quando Itamar pai estava prestes a completar 16 anos, Edite, sua avó, adoeceu e, pressentindo que não conseguiria mais cuidar do neto, mandou-o para os cuidados dos pais, que já moravam em Salvador, havia alguns anos. Edite morreu pouco depois.
Recém-chegado na capital, nos anos 1970, Itamar pai demorou a se acostumar com as modernidades da capital baiana. Não sabia como usar um vaso sanitário, já que, no interior, o sistema de esgoto ainda era o de fossas sépticas. Quando avistou a primeira latrina, teve o ímpeto de subir no objeto de louça de cócoras. Entre outros hábitos herdados do período vivido em Coqueiros, também proibia que se assobiasse em casa depois das seis da tarde, para não atrair cobras para o apartamento depois que anoitecesse.
Teresa Pessoa, a futura mãe de Itamar Junior, por sua vez, vivia desde menina no Jardim Cruzeiro, erguido sobre um aterro das águas do mar em Salvador. Estava mais habituada às facilidades da cidade grande. Nasceu em uma família negra e ibérica. Os dois, Itamar e Teresa, vizinhos de bairro, se conheceram na Praia da Ribeira, a cerca de quinze minutos de ônibus de suas casas. Demorou pouco tempo da paquera ao namoro e do namoro ao casamento. Trocaram votos e alianças na Igreja dos Mares, um templo gótico católico, colorido pelos vitrais e com torres pontiagudas. O noivo, cabelo escuro, liso e franja no meio da testa, trazia uma rosa no bolso do blazer branco. A noiva, sorridente, num vestido com mangas longas rendadas, também levou flores ao altar, num arranjo que adornava seus cabelos muito pretos.
Depois do casamento, Itamar e Teresa permaneceram na Cidade Baixa, como é chamada a área abaixo da falha geológica que separa a região da parte alta de Salvador. Foi lá que nasceu o primeiro filho do jovem casal, Itamar Vieira Junior. Desde o começo, todos o chamam de Junior. A vida do bebê como filho único durou um ano e cinco meses. Tinha começado a dar os primeiros passos quando nasceu o irmão, Fábio. Depois, vieram Leandro e, por fim, Alex, o caçula.
Com a chegada dos novos membros da família, os seis Vieira subiram à Cidade Alta e passaram a viver na Avenida Vasco da Gama, perto do Engenho Velho de Brotas, que tem esse nome por ter abrigado um dos muitos engenhos que produziam açúcar na capital. Em um reduto masculino, Teresa era impedida de trabalhar fora de casa pelo marido, que, em 1985, foi aprovado em um concurso da Petrobras. De dia, Itamar pai batia ponto como técnico de contabilidade na petroleira. À noite, saía para o boteco, hábito que se agravou com o passar do tempo e reconfigurou a vida familiar, particularmente a do primogênito Junior.
Era a ele, na condição de filho mais velho, que Teresa recorria para pequenas ajudas do dia a dia, como ninar um dos irmãos menores. “Ele conta histórias de que minha mãe pedia para que ele me colocasse para dormir. Aí ele pegava e fechava meus olhos – tipo, ‘quero ir brincar logo’”, recorda Leandro Vieira, hoje com 37 anos. “Acho que desde o início ele se tornou um cuidador e foi ocupando esse papel meio paternal.”
A pressa do mais velho para que Leandro dormisse não era somente para que lhe sobrasse mais tempo para as brincadeiras de menino, mas também para a leitura. Itamar aprendeu a ler com 5 anos de idade, antes de ir para a escola. Ao lado da residência da família, existia um armazém de secos e molhados da década de 1940, com cestos de ovos no teto e fardos de arroz e feijão. A filha do dono do armazém, a “professora Marlene”, foi quem lhe ensinou as letras.
O hábito da leitura também foi conquistado fora de casa. Entre os pais e irmãos, o menino não tinha acesso a livros. Na casa modesta, o único exemplar que ocupava as estantes era o Almanaque Abril, a enciclopédia ilustrada que tinha explicações sobre tudo sem se aprofundar em nada. Para burlar a ausência de literatura em casa, Itamar Junior recorreu ao vizinho e melhor amigo da época. Ataíde, parceiro de brincadeiras de rua, emprestava os poucos livros que tinha em casa para o colega. Quando estes se esgotavam, Ataíde, que estudava no Colégio 2 de Julho, unidade escolar tradicional de Salvador e equipada com uma biblioteca de respeito, pegava emprestado em seu nome os livros encomendados por Itamar. “Eu lia a obra num dia, devolvia e ele trazia outra coisa. Virou quase um vício naquele período”, diz Itamar.
Um desses títulos foi o livro da Coleção Vagalume Caso da Borboleta Atíria, de Lúcia Machado de Almeida, que Itamar leu aos 7 ou 8 anos. “Me despertou a vontade de escrever. Eu fiquei fascinado pela história em que borboletas, grilos e outros animais falavam. Gostava de pensar que os bichos também tivessem sentimentos, vontades e desejos”, diz. A experiência acarretou a primeira aventura de Itamar como escritor. Arrebatado pela história, fez a sua própria versão da vida dos insetos, com uma abelha como protagonista.
Não tinha muitos amigos no colégio, sofria de uma timidez excessiva. Preferia o universo privado. Em casa, quando não lia ou escrevia, jogava Banco Imobiliário ou videogame com os irmãos. “Eu, Fábio e Alex éramos muito mais das ruas. Nas minhas lembranças, ele saía muito pouco com a gente”, recorda Leandro. O pai dos meninos, torcedor do Esporte Clube Bahia, tinha o costume de levá-los ao antigo Estádio Octávio Mangabeira. Junior, ao contrário dos irmãos, não tinha qualquer interesse nas partidas: em vez de acompanhar o jogo no gramado, virava de costas e ficava examinando as nuances arquitetônicas dos edifícios que moldavam o Jardim Baiano, pedaço do bairro de Nazaré.
Quando não tinha jogo, os fins de semana de Junior e dos irmãos eram dedicados às visitas aos avós. Itamar adorava os dias sem futebol, principalmente quando o destino era a casa da avó paterna, Eurides, em Cajazeiras. O bairro, construído na década de 1970 pelo governo da Bahia, nasceu da desapropriação de três grandes fazendas com cultivos de laranja, café, mandioca e cana-de-açúcar. O plano de obras, chamado Projeto Urbanístico Integrado Cajazeira, era pautado na construção de prédios de três andares e casas com um, dois ou três quartos.
O que hoje é um dos maiores conglomerados urbanos de Salvador era, na infância de Junior, um ambiente ainda rural. No quintal de Eurides, plantava-se cana e árvores frutíferas, como pés de araçás e abacateiros, e galinhas circulavam como se numa roça. As crianças podiam brincar livremente, mas ele nem sempre queria estar sobre os ramos de mangueiras, como os irmãos. Ficava em casa ouvindo a conversa dos avós e tios-avós.
Com os da sua idade, acontecia o inverso: “Eu era muito retraído. Não tinha entrosamento com os jovens, tínhamos interesses diferentes.” Apesar de introvertido, se soltava um pouquinho nas ocasiões em que levava para a escola textos que escrevia à mão e que convidava os colegas a representar durante o recreio. “Acho que pareciam textos de teatro, porque tinham muitos diálogos e algumas entradas de cena. Mas não tinha figurino nem nada, era só imaginação mesmo.”
A brincadeira se repetiu até o dia em que Teresa encontrou uma dessas peças no armário do filho. O conteúdo, que “emulava muito o mundo dos adultos”, chocou-a. O resultado foi uma reprimenda daquelas. “Você está perdendo tempo com essas coisas! Você tem que estudar, não é ficar escrevendo bobagem”, disse. Algumas tias reforçaram o coro e, mais cruéis, falavam que se o menino continuasse lendo no ritmo que lia, terminaria como um vizinho da rua que possuía uma deficiência intelectual.
Mas estudar de menos tampouco era permitido. Seus pais exigiam dele e dos outros três filhos um boletim azul, de boas notas. Teresa estudou somente até a conclusão do antigo ginasial e o marido tinha um certificado de técnico em contabilidade. Se quisessem mudar de condição social, os filhos precisavam mostrar resultados.
O romance Torto Arado se desenrola numa comunidade fictícia da Chapada Diamantina, na Bahia. As personagens principais e narradoras do livro são duas irmãs, Bibiana e Belonísia. Ainda meninas, enquanto remexem nas coisas da avó, elas encontram uma faca, e, ao brincar de colocá-la na boca, uma das irmãs perde a língua. O corte é literal e metafórico, pois, nas idas e vindas das irmãs ao longo da trama – por um tempo uma fica na comunidade, enquanto a outra migra para a cidade – o que está quase sempre em questão é quem detém o poder de narrar uma história. Bibiana e Belonísia, criadas na fazenda de Água Negra, são filhas de Zeca Chapéu Grande, um tradicional curador de jarê – uma religião de matriz africana que existe exclusivamente em cidades do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Elas dependem literalmente uma da outra para se comunicar, e dramatizam as dificuldades de preservação da memória ancestral num mundo embrenhado pelo fluxo avassalador da modernidade e um passado e presente escravocrata.
É difícil apontar algum livro de ficção literária nacional que tenha feito tanto sucesso nas últimas décadas. Até o momento, o romance já vendeu 385 mil exemplares no Brasil, entre livros eletrônicos e impressos, além de ter tido seus direitos de tradução vendidos para Itália, México, Peru, Eslováquia, Bulgária, Croácia, França, Alemanha e Estados Unidos. Recentemente, na segunda metade de junho, aproveitando um período de férias do Incra, Itamar passou dez dias entre Viena e Barcelona, onde participou de eventos literários e do lançamento de uma peça teatral, da dramaturga Christiane Jatahy, que mesclou o livro Torto Arado com o filme Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. De volta ao Brasil, ele foi quase imediatamente a São Paulo, para participar da Bienal Internacional do Livro. Como não estava mais de férias, trabalhava no Incra de dia – o serviço é remoto desde o início da pandemia – e à noite participava de mesas e sessões de autógrafos. Torto Arado também está sendo adaptado para uma série do serviço de streaming hbo Max. As gravações, que serão dirigidas por Heitor Dhalia, devem ter início até 2023. Convidado para integrar a equipe de roteiristas, Itamar dispensou participar por achar que a tarefa deveria ficar nas mãos dos profissionais do ramo, que serão comandados por Luh Maza, considerada a primeira roteirista trans negra da televisão brasileira.
Embora não se abstenha do esforço promocional em torno do livro e seja muito ativo no Instagram – para ele, a ação nas redes sociais se tornou parte da vida do escritor –, Itamar não é uma pessoa particularmente expansiva. Quando conversa, reserva um tempo para ouvir calado, com poucas intervenções, e outro para falar, sem interromper o interlocutor. Dá a impressão de nunca ter pressa, um traço frequentemente citado pelas pessoas entrevistadas pela piauí. A exposição excessiva parece de alguma forma constrangê-lo. Diz que já abandonou a terapia mais de uma vez por não gostar nem um pouco de falar de si e, em uma de nossas entrevistas, relatou o desejo de ser como Elena Ferrante, a autora italiana que nunca teve a identidade revelada e se mostra ao mundo somente por meio de sua obra. Alex Simões, também escritor e soteropolitano, comenta que já escutou do amigo a justificativa de que não escreve sobre sua vida porque não vê nada de interessante nela. “Quem escreveu A Oração do Carrasco e Torto Arado jamais poderia ter uma vida desinteressante”, argumenta Simões. Itamar discorda. Diz que se sentar com jornalistas para falar sobre literatura e acabar tendo de responder sobre sua vida é algo que o deixa frustrado.
A vida sem pressa da poeta Emily Dickinson (1830-86) é uma lição que ele acaba de ensinar aos alunos da turma de um curso de escrita criativa encerrado em agosto. A obra da norte-americana se tornou conhecida bem depois da morte dela, e, mesmo sem reconhecimento, foi uma escritora prolífica ao longo de sua vida. Ao recorrer a Dickinson, Itamar não quer incentivar uma espera preguiçosa pelo reconhecimento literário. “Eu sempre falo dela com alunos ansiosos: Emily Dickinson tinha uma compreensão maior da literatura que não é apenas a glória, escrever era a vida. Ela é a encarnação da missão da literatura. Ela viveu reclusa, em uma família conservadora, lia muito e escrevia muito, e publicou em vida dez poemas. Quando ela morre, descobrem na obra dela uma coisa fabulosa.”
O foco no estoicismo de Dickinson talvez se relacione com a própria experiência de Itamar e o longo trabalho envolvido na gestação de Torto Arado. Embora, durante a sua infância e adolescência, a leitura excessiva e a escrita fossem consideradas “coisas de doido”, na noite de Natal de 1990, quando tinha 11 anos, o pai o presenteou com uma máquina de escrever Olivetti Lettera 82 verde, daquelas mais simples, que vêm acomodadas em uma maleta de transporte. A máquina permaneceu com ele até os 19 anos. “Eu acho que eu não pedi de presente, não sei de quem foi a ideia, se foi de meu pai ou de minha mãe. Mas eu adorei, era tudo o que eu queria.”
Foi com o tec-tec das teclas da Olivetti que Itamar esboçou, aos 16 anos, a primeira versão do que viria a ser o seu romance de estreia. Aos 10, por recomendação da sua professora de português Teresinha Accioly, leu Machado de Assis, Erico Verissimo, Eça de Queiroz, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos e Tomás Antônio Gonzaga. Este último, em Marília de Dirceu, foi quem apresentou ao escritor baiano o termo “torto arado”, que faz referência a uma ferramenta de ferro utilizada, em tempos menos automatizados, para a lida da terra.
Em sua primeira versão, Torto Arado também contava a história de duas irmãs (ainda não chamadas Bibiana e Belonísia) que viviam em uma propriedade rural com o pai (ainda não Zeca Chapéu Grande, o curador do jarê). A narrativa era dividida em quatro partes, cada qual numa estação do ano. “Era uma história muito simples, não tinha essa densidade que o livro ganhou depois. Mas o mote da história, a relação entre as irmãs, sobreviveu.” As páginas com o texto original foram “perdidas em alguma mudança” e a tal densidade a qual Itamar se refere só seria adquirida alguns anos depois.
Uma vida de troca-troca de casas se desenrolaria até a reescrita do livro. Em 1995, a família de Itamar Junior se mudou de Salvador para Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. A mudança foi motivada por uma transferência no trabalho do pai. Viviam no bairro de Candeias, onde o escritor conseguiu o primeiro emprego, no Centro Educacional Viver. A função de Junior, ainda em sua adolescência, era tirar cópias de xerox das atividades e provas de alunos do ensino primário (hoje ensino fundamental), o que o aproximou, pela primeira vez, do mundo da docência. Três anos depois da estadia dos Vieira em Pernambuco, o chefe da família foi transferido de volta para Salvador.
No retorno à Bahia, o pai aderiu a um programa de demissão voluntária da Petrobras lançado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Gastou todo o dinheiro dos direitos trabalhistas para comprar o tão sonhado imóvel próprio. A casa ficava num conjunto habitacional popular, criado em 1978, em Mussurunga, muito longe do bairro Jardim Santo Inácio, para onde a família retornara depois dos anos em Pernambuco. A nova moradia, bem mais ao Norte no mapa da cidade, representou uma mudança territorial profunda na vida da família. Pela primeira vez, os Vieira se livraram do aluguel, mas viviam uma crise financeira sem precedentes, pois os recursos para bancar as despesas do dia a dia estavam se esgotando. A escrita profissional não era uma opção para quem tinha demandas mais urgentes. “Desde criança, eu acho que se me dissessem assim: ‘Se você não precisasse se preocupar do que você vai viver, o que é que você quer fazer?’ Eu teria dito que eu queria escrever. Mas eu sabia que isso não era possível.”
O autor chegou a cogitar estudar jornalismo, pensava em ser correspondente estrangeiro de guerra. Em uma epifania mais distante, cogitou se tornar piloto de avião. Lembrou-se, enfim, de que quando os livros de literatura que pegava emprestado se esgotaram, os livros didáticos de geografia se tornaram seus grandes parceiros. “Gostava muito da maneira com a qual a geografia aplicava um olhar mais abrangente sobre o mundo. Não apenas sobre as pessoas, mas também sobre o tempo, sobre o espaço. Aí decidi o curso que eu faria.” Hesitava, já que, com exceção de uma tia-avó, ninguém da família havia cursado o ensino superior, mas foi aprovado no curso de geografia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Um exemplo da influência do escritor primogênito sobre os irmãos é a escolha acadêmica de dois deles: Fábio e Leandro também são doutores em geografia pela UFBA. O único que desgarrou foi Alex, que até chegou a dar início ao mesmo curso, mas hoje é funcionário de uma repartição pública estadual.
O novo endereço da família, em Mussurunga, estava a mais de 20 km do campus da UFBA, no bairro de Ondina. A crise financeira forçou Itamar e Fábio, os dois mais velhos da família, a procurarem um emprego. O primeiro encontrou uma vaga como empacotador de um supermercado em Portão, bairro de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador. Já o segundo teve a carteira de trabalho assinada na Insinuante, uma rede de varejo de móveis e eletrodomésticos que foi extinta em 2016.
Itamar equilibrava a rotina de trabalhador com a de estudante. Acordava às cinco da manhã para ir à faculdade de ônibus, retornava para o almoço com a mãe e chegava às 14 horas para o batente, que só terminava às 22 horas. Em casa, o ambiente não ajudava o descanso. Eram dois quartos para seis pessoas – Teresa e Itamar pai dormiam em um, enquanto Júnior e os três irmãos em outro, em duas beliches. Os conflitos eram agravados pelo ambiente contaminado de violência. Nessa época, o vício de Itamar pai no álcool se intensificou, e as discussões entre ele e Teresa eram frequentes. Os filhos se afastaram do pai e cobravam da mãe uma ruptura com ele, coisa que nunca aconteceu. Pai e filhos moravam na mesma casa, mas mal se falavam.
Itamar temia que a vida dele permanecesse nesse eterno contar moedas e, por isso, trabalhava e estudava com disciplina de monge. Para conseguir manter a rotina, relembra o irmão Leandro, “dormia em média três horas por dia, vivia com os olhos inchados de sono e tinha sempre um peso sobre si”. Mas, mesmo com a agenda apertada e as poucas horas de repouso, o aluno chamou a atenção da professora de geografia da universidade, Maria Auxiliadora da Silva, a Dora. “Essa turma de Itamar era uma turma bem inteligente. E um dos que mais se distinguiam era ele”, relembrou, em conversa com a piauí, por telefone. Não demorou muito para que a amizade entre os dois se estreitasse e para que Itamar ingressasse no grupo de pesquisa chefiado por ela.
Na tentativa de reduzir a distância entre trabalho e faculdade, Itamar topou trocar o emprego no supermercado e passar a trabalhar como balconista do turno da madrugada de uma farmácia no bairro do Chame-Chame. O estabelecimento, que fica ao lado do Shopping Barra, está a pouco mais de 1 km do Instituto de Geociências da UFBA. Um dia, exausto, deu uma cochilada e acabou dedurado por outro funcionário. Foi demitido.
Desempregado, não sabia como se manter na faculdade sem comprometer ainda mais o escasso dinheiro da família. Foi então que a professora Dora resolveu agir. Era o final do governo FHC e as bolsas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) estavam escassas. Ela então se lembrou de um pedido que o geógrafo Milton Santos, morto em 2001, havia lhe feito ainda em vida: usar a renda de uma das suas aposentadorias como professor da UFBA e da USP para criar uma bolsa em seu nome para alunos de baixa renda do curso de geografia que se destacassem academicamente.
A professora Dora, que, como aluna, se tornara íntima da família de Milton Santos, telefonou então para Marie-Hélène, viúva do professor baiano. Explicou a situação e não demorou para que fosse instituída, na UFBA, o Programa de Bolsas Milton Santos, que busca estimular estudantes a desenvolver a vida acadêmica “e incentivar o campo dos estudos sobre espaço, sociedade e cidade”. O primeiro agraciado foi Itamar Vieira Junior. Na época, a bolsa era de 350 reais. Até hoje, uma dezena de bolsistas já foi contemplada com o auxílio.
Assegurado financeiramente, o estudante resolveu se dedicar à pesquisa sobre a especulação imobiliária na Avenida Luís Viana Filho, conhecida como Avenida Paralela, a via que o próprio Itamar percorria diariamente para ir de casa à faculdade. O estudo, que acabou se tornando tema do trabalho de conclusão de curso e também do mestrado que Itamar emendou em seguida, procurava investigar a ocupação do espaço que se tornou o mais importante vetor de ampliação de Salvador.
“A tentativa do Estado de motivar a expansão urbana, com a construção de uma avenida de grande extensão – 14 km – nas terras rurais do município e a instalação de equipamentos como o Centro Administrativo do estado e a construção de nove conjuntos habitacionais, aliada ao aumento de seu ‘poder’ de circulação […], tornaram a área um espaço privilegiado em relação aos outros vetores de expansão”, escreveu à época. Interessava a Itamar demonstrar como o planejamento urbano prioriza algumas áreas em detrimento de outras, em conluio com a especulação imobiliária e grandes corporações, quando deveria, na verdade, estar comprometido em reduzir desigualdades.
Ao findar o mestrado, Itamar decidiu passar um tempo longe da academia. Prestou concurso público para professor dos estados da Bahia e Sergipe, e das cidades de Camaçari e Salvador. Passou em todos, e, na prova para lecionar na rede pública da capital baiana, ficou em primeiro lugar. O problema é que os resultados vieram acompanhados de outra aprovação: para servidor do Incra.
No final da semana seguinte ao primeiro encontro com a piauí, em julho, Itamar se preparava para participar da Terceira Festa Literária Internacional de Praia do Forte, a convite da amiga e escritora Joselia Aguiar. No restaurante de comida oriental no bairro do Rio Vermelho em que se deu a conversa, Itamar pediu um prato vegetariano. Há doze anos, não come bichos. “Não tenho nem coragem de colocá-los em um hotel, acho que eles vão achar que eu os estou abandonando”, diz, referindo-se aos seus pets.
Sobre as relações entre seu trabalho de servidor e sua escrita, Itamar diz que “é um trabalho burocrático, acho que não ajuda a criar”. Mas admite que a carreira pública o incentivou a ter mais contato com as pessoas, o que julga fundamental para produzir literatura. “Uma coisa que me atraiu no Incra foi a possibilidade de ir para campo e de conhecer lugares, pessoas e histórias. A literatura não prescinde desse contato. De alguma maneira, para recriar vidas, a gente precisa conhecê-las”, justifica. Sob o governo de Jair Bolsonaro, o trabalho do Incra como Itamar conhecia sofreu mudanças bruscas. Além de ter sido transferido da alçada da Casa Civil para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o órgão sofreu um corte orçamentário que despencou de 1,9 bilhão em 2011 para 500 milhões de reais em 2020. A incorporação de terras ao Plano Nacional de Reforma Agrária, o número de novas famílias assentadas e a titulação de terras quilombolas viraram raridade.
Em 2009, quando conseguiu uma transferência e retornou a Salvador depois de alguns anos percorrendo o Maranhão, voltou para a casa dos pais, então mais esvaziada, pois seus irmãos Fábio e Leandro tinham ido morar com suas mulheres. Nessa época, a escrita permanecia um hábito, mas em segundo plano. Ao contrário das “aventuras” validadas por um emprego que o remunerava, a literatura era uma peripécia em si. Ninguém iria pagá-lo para escrever, acreditava. A ideia de viver da escrita ainda era tão longínqua quanto fora na infância. A frase “quero ser escritor” nunca chegou a ser verbalizada por ele. Ainda assim, escrevia, e o tempo passado no Maranhão lhe deu coragem o suficiente para que tentasse ser lido por alguém além dele próprio. “Eu não tinha ansiedade de ser publicado. Eu achava que iria acontecer se o livro valesse a pena.”
Apesar de tímido, não faltava a Itamar cara de pau quando o assunto era literatura. Conta que, ainda adolescente e sem livros em casa, passou a frequentar uma biblioteca localizada no bairro do Rio Vermelho, o mesmo bairro onde almoçou com a piauí. Gostava daquela biblioteca porque, ao contrário de outras, nela podia transitar entre as estantes, ver as lombadas e folhear os exemplares. Um dia, saindo de lá, comprou uma edição de bolso barata do livro Capitães da Areia, de Jorge Amado. Como estava perto da casa do escritor, resolveu tentar a sorte e apertou a campainha da casa azul de número 33, na Rua Alagoinhas. Zélia Gattai o autorizou a entrar. O marido já não enxergava tão bem, mas conseguiu ver que a grafia da capa estava errada: no lugar de Capitães da Areia, estava escrito Capitães de Areia*. Ele ficou chateado, mas assinou o livro ainda assim. Gattai perguntou ao jovem Itamar se ele já havia lido um livro dela e, ao ouvir a negativa, tirou da estante um exemplar de Anarquistas, Graças a Deus e entregou a ele.
Com esse espírito obstinado, inscreveu-se e foi um dos vencedores do prêmio da Câmara Brasileira de Jovens Escritores de 2008. O livro submetido – e que ele não mostra para ninguém – se chamava Paraíso e era um romance que, assim como Torto Arado, se passava num lugar indefinido. “Era um tanto existencialista”, resume. Impressionado pela literatura de Clarice Lispector, na qual estava imerso nos seus 20 e poucos anos, tentou emular a escrita da “bruxa” e não gostou muito do resultado.
A segunda empreitada como escritor veio quatro anos depois, em 2012, quando avistou um outdoor nas ruas de Salvador ao se deslocar de casa até o escritório do Incra, no bairro de Sussuarana, na Cidade Baixa. O Prêmio Banco Capital de Literatura fazia o chamamento para que novos autores enviassem originais. Enviou o livro de contos Dias, que saiu vencedor e foi publicado pela editora soteropolitana Caramurê. A obra chegou a ter até uma noite de autógrafos na extinta Livraria Cultura do Salvador Shopping. Foi a primeira vez que Itamar, o servidor público, aparecia publicamente como escritor. Estava nervoso, na companhia de amigos, colegas de trabalho e da família. O pai não compareceu, ficou em casa para fazer companhia à cadela que eles tinham à época.
Da tiragem original de Dias, restam dez exemplares na editora. Caso opte por comprá-la na Amazon, o leitor pode adquirir uma edição usada. Pagará 1 290 reais. Entre os contos do livro, há um no qual um escritor moribundo se encontra com Clarice Lispector, provando que a obsessão de Itamar pela autora até pode ter diminuído, mas não desapareceu. Na mesma época, ele adotou uma gatinha de rua e chamou-a de G. H., em homenagem ao livro A Paixão Segundo G. H. O romance, que marcou Itamar profundamente, traz à tona uma protagonista da classe alta carioca que, ao visitar o quarto de uma empregada recém-demitida, se depara com uma barata e é arrebatada por uma espécie de epifania que faz com que desmorone tudo aquilo ao qual ela sempre estivera habituada. “Provação significa que a vida está me provando. Mas a provação significa também que estou provando. E provar pode se transformar numa sede cada vez mais insaciável”, escreveu Clarice. Itamar Vieira Junior se preparava para provar a vida como nunca antes. O primeiro passo era voltar à universidade que o formou.
A professora Dora ainda lecionava no Instituto de Geociências em 2013, mas sua pesquisa era muito mais voltada para a área urbana. Itamar, que agora tinha colocado as botas na lama, não queria saber de outra coisa que não o setor agrário. Além disso, enquanto ainda era aluno de mestrado, se desentendeu com parte do corpo docente que era contra as cotas e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Apesar de querido por muitos, os poucos com quem se atritou eram justamente aqueles aptos a orientá-lo no doutorado. “Olha, Itamar, eu, se fosse você, ia pra outro lugar”, sacramentou Dora. Itamar foi buscar refúgio no Centro de Estudos Afro-Orientais, órgão suplementar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Especificamente, no Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos.
Pouco antes de entrar nesse programa de doutorado, o Incra da Bahia fazia uma força-tarefa para visitar as localidades que já haviam requerido a regularização fundiária, mas que ainda não haviam sido analisadas. O objetivo do órgão na nova década era identificar, dentre essas comunidades, aquelas que já estavam aptas para serem regularizadas. Uma equipe de dez servidores foi alocada em diversas regiões do estado, e a Itamar coube a Chapada Diamantina. “Naquele momento eu nem sabia que o nosso contato iria prosseguir, mas o objeto de estudo do doutorado estava escolhido: iria documentar o processo de regularização do território da Comunidade Quilombola de Iúna.”
Para continuar servidor público e ter direito a estudar, era preciso que a pesquisa fosse desenvolvida no âmbito da sua atividade profissional. Foi-lhe oferecida a possibilidade de passar os quatro anos de curso em licença remunerada – ou seja, ficar afastado do serviço, mas recebendo o salário –, coisa que ele recusou por julgar que o trabalho era complementar à rotina acadêmica. A opção foi endossada por Maria Rosário Gonçalves de Carvalho, etnógrafa e orientadora de sua pesquisa. “Ele nunca confundiu as condições de servidor público com a de um doutorando universitário, mas, de certo modo, ele conhecia as pessoas, né? E ali mesmo eu acho que ele já foi recolhendo matéria-prima que serviu para a sua tese. Acho que essa alternância, sem dúvida nenhuma, contribuiu para que ele ouvisse muitas boas histórias”, disse.
Os moradores mais antigos contam que a Iúna se formou a partir de um fluxo de trabalhadores que peregrinavam por terras da Chapada em busca de trabalho, alguns em diferentes ciclos de estiagem e eventos, outros expulsos de suas antigas moradas. Aquela era mais uma comunidade formada por trabalhadores rurais negros, mais um território propositalmente esquecido pelo Estado, mais uma região destituída de direitos, seguindo o roteiro da disputa agrária no Brasil. Mas as viagens até lá redesenharam a rota profissional de Itamar.
Para chegar até o local, uma parte do trajeto é asfaltada, outra, de terra batida. Segundo relatos de moradores, ele aparecia quase sempre acompanhado de um motorista, vestindo roupas amarronzadas ou bege. Quando Jovita Sacramento era avisada por uma das filhas, Iracema ou Rose, de que o servidor iria aparecer por lá, a senhora tomava banho e, ansiosa, esperava pelo visitante. Ele chegava, sentava-se em algum canto – muitas vezes, no chão – e ela falava. Era uma conversa que durava horas.
Jovita Sacramento lembrava de quando era parteira, das noites de jarê, da luta, do trabalho e da vida que se desenrolava ali. Àquela altura da prosa, a cunhada de Jovita já havia chegado para compor a roda e também falava de si. Os mais velhos e mais velhas de Iúna falavam e Itamar ouvia, como fazia na infância. Só interrompia se tivesse alguma dúvida. Às vezes, anotava algo num caderninho. E só. Ninguém se lembra de tê-lo visto tomar notas pelo celular ou de tê-lo visto distraído. “Eu nunca o achei com pressa. Ele chega, senta, fica, não tem pressa. Minha mãe ficava encantada”, lembra Rose, filha de Jovita.
Itamar entende a pesquisa que fez em Iúna como um estudo etnográfico. “Considero a etnografia o registro de uma experiência sobre o mundo, onde a sensibilidade de quem o escreve é fundamental para a profundidade do que se apresenta”, escreveu na tese. A escrita dessa pesquisa se diferenciava dos tratados que havia realizado como geógrafo. Aqui, o seu lado escritor começou a saltar às páginas – e de maneira consciente. Em um dos trechos da introdução, ele escreve: “Tenho uma relação particularmente profícua com a literatura. Pensando nesta tese, imaginei que ela seria vigorosa e profunda se, antes de ser um trabalho científico, pudesse ser também arte, […] que se assemelhe mais aos contornos da vida.”
Itamar defendeu a tese “Trabalhar É Tá na Luta”: Vida, Morada e Movimento entre o Povo da Iúna, Chapada Diamantina, em 2017. A frase que dá título ao trabalho, “Trabalhar é tá na luta”, ele ouviu de Quena, uma moradora de Iúna, durante uma das muitas reuniões que realizou ao longo da elaboração do relatório técnico do Incra. Luta é um dos conceitos que ele mais encontrou nas narrativas dos moradores da comunidade quilombola.
“O trabalho pode ser apenas trabalho, dotado de movimento, mas sua rotina extenuante e o contexto adverso que costuma caracterizá-lo são sinônimos de luta. […] Essa dimensão do trabalho mais amplamente ligada à vida e às condições de reprodução está adstrita a uma temporalidade maior que o dia, o mês e o ano: é a temporalidade da própria vida”, escreveu. A banca foi convencida. A orientadora, Maria Rosário Gonçalves de Carvalho, conta que a pesquisa foi aprovada por unanimidade, sem qualquer pedido de reformulação.
Com a tese entregue, bateu um vazio. A última coisa que havia escrito fora da academia tinha sido o livro de contos Oração do Carrasco, que viria a ser republicado em 2021 sob o nome de Doramar ou a Odisseia. Assim como suas produções anteriores, o livro fora publicado por meio de um edital – nesse caso, o edital setorial de literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb) de 2016.
Inspirado pela escrita da própria tese e de tudo aquilo que tinha experimentado na Chapada Diamantina, decidiu recuperar a história das duas irmãs que escreveu e não terminou quando era adolescente. A diferença é que, agora, ele sabia onde a história se passava. “Eu precisava ocupar meu tempo com alguma coisa e fui escrever. E foi assim que essa versão que veio a público surgiu – ou ressurgiu, como convier.” Escreveu Torto Arado ressaltando as resistências ancestrais dos povos quilombolas, suas lutas e ligações com a terra. A essa altura, com a confiança que adquirira nos concursos literários que venceu, decidiu apostar mais alto.
O Prêmio LeYa foi criado em 2008 pelo grupo editorial LeYa, em Portugal, para estimular a produção de obras de autores de língua portuguesa. No ano de estreia do prêmio, o mineiro Murilo Antônio Carvalho levou a melhor com seu O Rastro do Jaguar e, desde então, nenhum brasileiro havia repetido o feito. A premiação recebe somente romances inéditos e que devem ser submetidos sob pseudônimo. Coube a Maria do Rosário Pedreira a primeira leitura do manuscrito de um tal Torto Arado, enviado por “A. Terra” (alcunha que, segundo Itamar, não foi inspirada na protagonista de Erico Verissimo).
Pedreira, de 63 anos, é conhecida em Portugal por descobrir e editar talentos como Valter Hugo Mãe, José Luís Peixoto e João Tordo. “Foi um livro imediatamente apaixonante”, contou em videoconferência com a piauí. A editora teve a impressão de estar diante de um livro de Jorge Amado ou João Ubaldo Ribeiro. Sentiu também pitadas das telenovelas brasileiras que chegaram a ser exibidas em Portugal: “Era uma espécie de um regresso a um tipo de história que nós tínhamos estimado.” De férias em Cruz das Almas, na Bahia, o irmão Leandro leu o livro extasiado e chamou a esposa: “Acho que Itamar encontrou a literatura dele.”
Concluída a leitura, Pedreira apresentou Torto Arado ao júri do Prêmio LeYa, com as melhores recomendações. O livro saiu vencedor por unanimidade. “Pela solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, na sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado pela sociedade patriarcal”, diz a justificativa. O martelo havia sido batido e só faltava informar o autor vencedor.
Em fevereiro de 2018, Itamar pai foi diagnosticado com doença renal crônica. Durante três dias na semana, precisava ser submetido à hemodiálise, tratamento que remove as substâncias tóxicas do sangue que um rim adoecido é incapaz de excretar. Itamar, Fábio, Leandro e Alex se revezavam para acompanhar o pai nas sessões, que duravam entre três e quatro horas. A debilidade do pai o reaproximou dos filhos.
Enquanto dirigia pela Avenida Paralela para um dos seus plantões como acompanhante do pai, Itamar recebeu uma ligação de Portugal. Era 17 de outubro daquele ano e, havia vinte dias, o estado de Itamar pai piorara, exigindo hospitalização. Ele atendeu à ligação, mas custou a acreditar no que ouvia. O próprio poeta e escritor Manuel Alegre, presidente do júri do LeYa, lhe deu a notícia de que era o vencedor. Pediram-lhe que enviasse urgentemente uma foto e um breve currículo, coisa que ele fez ainda do celular. Já no hospital, as ligações de jornalistas começaram a pipocar.
“Eu me lembro quando contei para minha mãe. Ela achou normal. Mas aí quando eu disse o valor do prêmio, ela falou: ‘Menino, isso é mentira, é trote!’”, diverte-se. O valor que chocou Teresa foram os 100 mil euros de adiantamento pelo livro. Em valores de hoje, cerca de meio milhão de reais. O pai mal conseguiu almoçar naquele dia. Os dois ficaram fazendo planos do que fariam quando recebessem o dinheiro. Ele morreu algumas semanas depois, quando o livro já estava sendo editado por Pedreira. Na dedicatória, lê-se “Ao meu pai”.
Faltava agora ser lido pelos seus no Brasil. Pensou de imediato na editora Todavia. “Como sou tímido, mas também sou ousado, escrevi um longo e-mail para o editor, Leandro Sarmatz.” Anexou todas as resenhas e reportagens que haviam saído em Portugal e enviou também uma edição do livro. Aí a coisa andou: “Ele me disse que recebeu o livro e que leria naquele final de semana, mas nem esperou o fim de semana acabar e já me escreveu: ‘Tô gostando muito. Vamos fazer uma oferta.’” À piauí, Sarmatz contou que Torto Arado o deixou “sem fôlego” e que ele enxergou no livro um diálogo com as obras de Jorge Amado, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. “Ali havia uma carpintaria romanesca muito precisa, rara entre nós, uma construção sólida dos personagens e uma visão inconformada do Brasil”, diz. Esse conjunto de predicados tornaram o livro algo singular e, na visão de Sarmatz, “um clássico desde o nascimento”.
A primeira pessoa em Iúna que soube da publicação de Torto Arado foi Iracema, uma das filhas de Jovita Sacramento. Ainda em 2018, pouco tempo após ter recebido a ligação do comitê de Portugal, o escritor ligou para a professora da comunidade quilombola. “Iracema, tenho uma surpresa para te contar.” Na ligação, disse que tinha ganhado um prêmio por escrever o romance e queria enviar um valor em dinheiro para ajudar as senhoras com quem tinha conversado ao longo de anos. Seis delas receberam 1 mil reais e gastaram na compra de móveis e eletrodomésticos para a casa.
Foi Iracema quem avisou à irmã Rose. “Eu conheço outras pessoas que escreveram livros, então não imaginei que teria essa repercussão”, disse Rose. A primeira leitura a fez mudar de ideia, tamanha a emoção que lhe tomou. “Eu chorei muito, muito. Me lembrei de coisas que aconteceram. São coisas reais, já vi gente chegando na minha casa amarrada, isso é uma realidade, era a nossa realidade.”
Uma história semelhante a essa que Rose narra está na primeira parte de Torto Arado e na tese de doutorado de Itamar. É Bibiana que narra a chegada de uma adoentada à casa do curador Zeca Chapéu Grande. Há também em Iúna uma “Chapéu Grande”, a Ana Chapéu Grande, mãe de Rosalvo, um dos pioneiros da ocupação. Rosalvo Ferreira dos Santos foi uma espécie de líder espiritual e político das famílias que habitam Iúna e ganhou reconhecimento principalmente por ser curador. Nasceu numa propriedade chamada Encantada, em 20 de janeiro de 1917, Dia de São Sebastião – assim como Zeca Chapéu Grande na ficção. “Eu tinha medo de que as pessoas confundissem o livro com a vida dessas pessoas. Fico até hoje me perguntando se deveria ter feito uma dedicatória para eles no livro, como eu fiz na tese. Mas eu tinha medo de que isso de alguma maneira mudasse a vida deles para pior. Uma coisa que a gente aprende como etnógrafo é que a gente deve preservar a vida dessas comunidades”, justifica Itamar.
O sentimento de identificação ultrapassou os limites de Iúna. Depois de ler Torto Arado, um guia de turismo de Lençóis enviou uma mensagem para Itamar no Instagram. “Você escreveu a história do meu avô, o Manezinho!” O avô do guia também tinha sido curador do jarê. “Aí eu falei: ‘Eu conheci a história de seu avô, mas eu conheci a história de outros moradores também. Mas se você acha que a história é de seu avô, então é”, conta, aos risos.
No texto que escreveu a Sarmatz, da Todavia, antes de Torto Arado sair no Brasil, Itamar avisou-o de que o romance era o começo de um projeto maior, uma trilogia na qual a terra é protagonista. O segundo desses três romances está previsto para ser lançado no primeiro semestre de 2023. O enredo do livro, cujo nome ainda está sob segredo, se passa no Recôncavo da Bahia, às margens do Rio Paraguaçu – que, não coincidentemente, nasce na Chapada Diamantina. Numa cidade fictícia, um convento construído no século XVII é o pano de fundo da história. Essa construção e as forças que a regem são os grandes “administradores” da vida daquele lugar.
A história, que Itamar define como um “épico familiar”, será centrada em três irmãos: o caçula, único da família que teve educação formal; uma irmã do meio, que foi criada longe de casa e retorna após a família sofrer um grande trauma; e a irmã mais velha, que criou os outros dois quando todos eles ficaram órfãos. Esta última é uma mulher muito religiosa, que trabalha como lavadeira da igreja e tem uma deficiência física. Ela é inspirada numa tia de Itamar, que também era deficiente e lavava as roupas da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador. A Todavia queria que o novo livro tivesse sido publicado no início do ano, mas Itamar prefere trabalhar de uma maneira mais lenta e cuidadosa. “Eu escrevo, avanço, volto, reescrevo, avanço, volto e reescrevo… Foi assim com Torto Arado, foi assim com os contos, é meu método de trabalho. Por isso demora um tanto.”
Sobre a possibilidade de deixar o emprego de servidor, no qual recebe 11,3 mil reais mensais, e se dedicar exclusivamente à literatura, Itamar mostra ceticismo. “Assim como hoje falam do livro, têm interesse em mim – até pra escrever um perfil, como vocês estão fazendo –, eu não sei o que vai ser disso daqui a dois anos, três anos. Tenho medo de passar pelas dificuldades financeiras que eu passei. Imagine se daqui a pouco ninguém tem mais interesse no que eu escrevo, eu vou trabalhar de novo como empacotador ou trabalhar de madrugada?”, questiona. E, como se transformado num personagem do seu próprio realismo fantástico, Itamar deixa de ser Itamar e volta a ser Junior.
(*) Na versão anterior, a reportagem informava erroneamente que o título do livro de Jorge Amado era Capitães DE Areia, quando o correto é Capitães DA Areia.
Jornalista, escreve roteiro para podcasts na Rádio Novelo
É jornalista em Salvador