Wiens disse ao médico: "Eu fiz tudo que você disse que eu nunca mais poderia fazer. Me diga o que mais eu não posso fazer, assim poderei seguir em frente e tirar isso do meu caminho." FOTO: DAN WINTERS_2012
Transfiguração
Como Dallas Wiens mudou de rosto
Raffi Khatchadourian | Edição 67, Abril 2012
Deus levou o rosto de Dallas Wiens embora em uma manhã clara de novembro, há quatro anos. Se você perguntar a Wiens, ele dirá que não foi acidente nem castigo; simplesmente tinha que acontecer. Naquele momento, ele tentava pintar o telhado da Igreja Batista de Ridglea, perto da rota 30, no Texas. Tinha 23 anos e sofria das complicações de ser jovem e ter uma vida cheia de problemas.
Wiens estava sem rumo desde a adolescência. Aos 14, um incidente traumático – algo de que ele nem ousa falar – o afetou profundamente. Prometeu a si mesmo nunca mais sorrir, se afastar de qualquer tipo de emoção. Apesar de ter crescido em uma família cristã, decidiu dar as costas a Deus. Brigava com frequência na escola. Aos 18, já havia saído de casa. Usava e traficava drogas, andava armado por aí. Alistou-se no Exército para ficar “limpo”, mas tinha problemas no joelho e não gostava de obedecer, então desistiu rápido. Tentou ficar longe do Texas, mas a pobreza o trouxe de volta e ele acabou engravidando uma garota da região. Durante o parto, o bebê quase morreu. No hospital, Wiens perguntou se podia chorar e chorou como nunca. Quando o bebê nasceu, uma menininha minúscula de vinte e sete semanas de gestação, ele ficou tomado de amor. Casou-se com a mãe da filha, achando que era o melhor a fazer, mas não deu certo. Ele queria mudar. Quis se realistar, fugir da loucura de sua história, ser um bom pai, um homem melhor. Como todo mundo, continuou tentando encontrar seu caminho.
Wiens precisava de exames médicos e psicológicos antes de voltar para o Exército. Foi justamente para pagar esses exames que ele acabou na Igreja Batista de Ridglea no dia 13 de novembro, quando seu rosto foi destruído. Daniel, seu irmão mais velho, arrumou aquele trabalho para os dois. Um tio, Tony Peterson, ia ajudá-los. Eles planejavam fazer alguns retoques na pintura da igreja usando uma plataforma articulada, capaz de alçar um homem ao céu com um braço hidráulico gigantesco. Era um trabalho simples. Eles conversaram sobre onde posicionar a máquina, a que distância da igreja ela deveria ficar, e decidiram que seria Wiens quem subiria. Daniel foi para o outro lado do prédio. Wiens montou no elevador e começou a operar a máquina. Parecia preocupado, lembrou Peterson; olhava adiante, sem se dar conta do perigo enquanto subia cada vez mais, até encostar a testa nos fios de alta voltagem. A eletricidade atingiu seu corpo, percorrendo-lhe a cabeça e o lado esquerdo do tronco. Em cerca de quinze segundos, o gás ionizado o envolveu numa névoa azul-celeste. O cheiro de queimado tomou o ar. “Tudo em volta do garoto ficou azul”, contou Peterson. “A eletricidade o iluminou, grudou nele. Pareceu durar uma eternidade. Cara, tudo que pensei foi: ‘Merda. Eu matei meu sobrinho.’”
Quando a eletricidade soltou Wiens, seu corpo fundiu-se como argila à plataforma suspensa. Peterson perdeu o controle e entrou em crise de histeria. Daniel chamou a emergência. O Departamento de Polícia de Fort Worth não guarda registros das ligações de emergência por mais de um ano, mas anotações feitas por um operador dão uma dica da gravidade do caso: “FOI FRITO PELA ELETRICIDADE… ESTÁ PENDURADO… A FONTE DE ENERGIA ESTÁ CARREGADA… ACHO QUE ELE DEVE ESTAR MORTO.”
Em minutos a polícia e os bombeiros chegaram. Eles baixaram a grua e tiraram o corpo de Wiens. Quando uma paramédica chegou, ficou chocada com o estrago. A pele logo acima da orelha esquerda de Wiens parecia ter sido queimada com cera quente. Daniel lembra: “Ele tinha uma pequena cicatriz calva e carbonizada no topo da cabeça. Quando tiraram a camiseta, havia um enorme buraco – sei que isso soa estranho, mas foi como se um sabre de luz tivesse vindo de cima e o atingido na lateral.” A paramédica colocou uma máscara de oxigênio sobre o rosto de Wiens e viu suas pálpebras se debaterem enquanto ele se esforçava para inalar. Daniel notou que os olhos do irmão estavam vermelhos. “Foi como se alguém tivesse soprado cola e areia dentro deles”, revelou.
Os lábios estavam fundidos, a mandíbula travada, Wiens não conseguia respirar direito. Preocupada com a possibilidade de ele desmaiar, a paramédica injetou-lhe uma droga paralisante e fez uma traqueostomia de emergência – procedimento comum no Exército, mas que ela nunca havia feito antes. Um helicóptero levou Wiens para o hospital Parkland, considerado nível 1 em trauma, o que significa que o centro pode fazer intervenções da mais alta complexidade em um caso grave como aquele. O presidente John F. Kennedy foi levado ao Parkland depois de ser baleado por Lee Harvey Oswald. Mais tarde, foi a vez de Oswald também ser levado para lá. O hospital recebe mais de 600 vítimas de queimaduras por ano, mas quando um médico de lá examinou Wiens, ficou chocado. Era um cirurgião com 26 anos de experiência. Pessoas com aquele tipo de trauma raramente vivem o suficiente para se tornar pacientes.
Queimaduras elétricas podem causar um impacto estranhamente irregular no corpo humano. Podem tanto destruir os tecidos instantaneamente como não afetá-los – ou podem ainda ter um efeito retardado. Esse período de limbo pode durar dias. Durante esse tempo, os médicos devem apenas aguardar até que cada célula da área afetada se declare viva ou morta. Brett Arnoldo, diretor da unidade de queimados do Parkland, me deu a seguinte explicação: “Em um ferimento causado por alta voltagem elétrica, geralmente a parte visível é a ponta do iceberg. Há muita lesão em tecidos profundos que não podemos notar apenas olhando o paciente.”
Quando Wiens foi levado ao hospital, Arnoldo era o cirurgião responsável. Ele examinou a cabeça e o dorso do rapaz e descobriu que aquela “cicatriz calva e carbonizada” que Daniel havia notado era, na verdade, o crânio exposto. Aquilo indicava que a queimadura logo se revelaria profunda. “Achamos que o ferimento tinha grande probabilidade de ser letal”, recordou Arnoldo. Quando a família de Wiens chegou, um médico recomendou que eles chamassem um padre para dar a extrema-unção. A mãe de Dallas, Lea Wiens, disse: “No momento em que entramos no hospital, nos falaram isso, e pensei: ‘Não diga isso – vamos levá-lo para casa.’” Enquanto a família aguardava notícias ansiosamente, Wiens foi mandado à Unidade de Tratamento Intensivo, onde limparam seus ferimentos. O anestesista induziu o coma com benzodiazepínicos para poupá-lo de dores infernais.
Em pouco tempo, as células do rosto de Wiens começaram, uma após a outra, a se declarar mortas, destruindo pele, músculos e ossos. Naquela tarde, metade do seu rosto já mostrava sinais de lesões. Depois de quase um dia, cada traço estava tomado pelo edema. Os lábios de Wiens estavam “negros como carvão”, lembrou sua avó, Sue Peterson. Sua pele se tornou resinosa, misturada a músculos, gordura e pelo, formando uma concha parcialmente translúcida.
Quando as células começaram a morrer, os médicos do Parkland se apressaram em removê-las, receosos de que tudo aquilo provocasse uma infecção fatal. O processo, conhecido como debridamento, consiste em retirar o tecido morto do meio de uma ferida. Muitas vezes é uma tarefa simples, que se realiza apenas com um bisturi. Em alguns casos, no entanto, é preciso furadeira e medicamentos. Para Wiens, foram necessários mais de vinte procedimentos complexos. Eles debridaram a testa, pálpebras, nariz, bochechas e lábios. A cada debridamento, Arnoldo informava à família de Wiens qual área precisaria ser removida. Na maioria das vezes, eles aceitavam as notícias. Em momentos críticos, se isso significa salvar uma vida, é possível considerar dispensáveis partes da anatomia humana que em outro contexto seriam consideradas imprescindíveis. Mesmo com o pragmatismo gerado pelo desespero, o rosto de Wiens – o símbolo vivo de quem ele era – estava sendo desmontado e às vezes era difícil suportar a notícia de que um pedaço em particular precisaria ser removido. “Eu realmente não queria que removessem seus dentes”, contou-me sua avó. “Ele era um rapaz tão bonito. Chorei sem parar.”
Cirurgiões têm prática em separar as emoções do trabalho, mas a agressividade dos debridamentos os afetou também. “Nunca me senti fisicamente mal no centro cirúrgico”, contou Arnoldo. “Mas quando removi o centro da face – o nariz, os lábios, o tecido mole ao redor dos olhos – e levei os pedaços de tecido para a mesa ao fundo, percebi que estava mal. Era muito perturbador. Eu estava removendo sua identidade.”
Outro cirurgião me contou que a quantidade de tecido debridado o impressionou. “A queimadura era tão profunda que não podíamos deixar nada inteiro”, disse. Depois que pele, gordura e músculo foram removidos, foi preciso usar uma furadeira para tirar a parte queimada do crânio. “Fomos até o osso”, revelou. Em algumas áreas, até mesmo os ossos estavam comprometidos. “Depois de muitas idas ao centro cirúrgico ele parecia literalmente um crânio em cima de um corpo. Tudo foi removido.”
Algo em Wiens estimulou uma atitude extremamente protetora na equipe do Parkland. Mesmo sob forte sedação, seu corpo parecia se exprimir com força própria. Wiens era um homem pequeno, pesava em torno de 50 quilos, mas havia resistido ao ferimento e sobrevivido à completa remoção do rosto. “Era como um filme”, disse uma enfermeira. “Era surreal.”
Enquanto estava na UTI, a cabeça de Wiens ficou enfaixada com Xeroform – uma espécie de gaze saturada com emulsão de petróleo e antisséptico –, um substituto provisório da pele. Contudo, o estado do cérebro por baixo do Xeroform e do tecido danificado era um mistério. Depois do choque elétrico, Wiens teve convulsões. Não conseguia engolir nem respirar sem ajuda. Arnoldo acreditava que ele provavelmente nunca mais voltaria a falar, comer, enxergar ou sentir cheiros novamente. Os médicos do Parkland estavam céticos: achavam que não sobraria nenhuma área do cérebro sem dano grave. Mesmo assim, a família de Wiens não perdeu a esperança. Conversavam com ele, abraçavam seu corpo. Um dia, no meio de dezembro, depois de quase um mês de debridamento, sua mãe, Lea, estava ao lado dele na cama. Ela segurou a mão do filho e teve a certeza de que ele retribuiu o aperto. Correu até a equipe do hospital e avisou que “ele estava lá”, mas lhe disseram que provavelmente se tratava apenas de um reflexo.
Passar por outra cirurgia não acrescentaria muito a um paciente que estava praticamente com morte cerebral. Então, no início de janeiro um corajoso médico-residente diminuiu a sedação de Wiens para ver se ele conseguia se comunicar. Dallas começou a se mover e balançou a cabeça de um lado para o outro. “Relaxe, amigo”, pediu o residente. Wiens se acalmou e começou a responder a comandos básicos. Naquele dia, seus pais – Lea e Mike – estavam ao lado do filho na UTI. Wiens estava imóvel, seu cérebro separado do mundo por nada além de um osso e tecido em carne viva. O aparelho respirador fora removido e Lea o ouviu sussurrar: “Estou com sede. Sinto dor. E amo você.”
O fato de que Wiens “estava lá”, como Lea esperava, foi motivo de grande alívio, mas apresentava um novo enigma: o que viria depois? Mesmo que o cérebro estivesse totalmente intacto, não poderia permanecer envolto em osso e Xeroform para sempre. De alguma maneira, o rosto de Wien teria de ser inteiramente reconstituído. No Parkland Memorial, o médico que assumiu essa responsabilidade foi o jovem cirurgião reconstrutivo Jeffrey Janis, um homem afável e de fala mansa vindo de Ohio, onde Wiens passara parte de sua infância. Janis sabia que Wiens precisava de um rosto para ter um aspecto humano. “A pergunta era: como reconstruí-lo? Em geral, em cirurgia plástica, você substitui uma parte por outra semelhante” – tecido facial por tecido facial –, “mas nesse caso faltava tanto tecido que não tínhamos como tomá-lo emprestado de outro lugar. As pessoas não andam por aí com peças extras.”
Janis e sua equipe vasculharam a literatura médica atrás de orientação, mas a situação de Wiens era tão incomum que os casos disponíveis não foram de grande serventia. Por fim, decidiram pegar os músculos das costas e laterais do corpo de Wiens e os colocaram na frente do crânio, como um cobertor. Se o músculo se desenvolvesse após algumas semanas, eles enxertariam a pele da coxa de Wiens por cima. O processo envolveria várias cirurgias e não era possível prever os resultados. Na melhor das hipóteses, Wiens receberia uma tela de pele imóvel e sem traços definidos, uma tela humana em branco onde outrora havia seu rosto. Janis achou que um especialista, com quem ele já havia trabalhado algumas vezes, poderia construir uma máscara convincente com base em fotografias do rosto de Wiens. Após a cicatrização das cirurgias, Janis pretendia colocar pinos de metal no crânio de Wiens para que a máscara pudesse ser presa com ímãs. Basicamente, ele se tornaria um homem disfarçado de si mesmo.
O plano era arriscado. Janis se lembra de ter pensado: “Se der errado, será a morte. Não é possível alguém sair do hospital andando com um crânio descoberto sobre um corpo.”
A cirurgia moderna de reconstrução da face surgiu na Primeira Guerra Mundial para reparar lesões devastadoras resultantes da guerra mecanizada, mas ainda era limitada a enxertos do próprio paciente. O Third London General Hospital abriu um departamento, conhecido como Tin Noses Shop [Loja de narizes de estanho], para fazer máscaras para soldados cujas lesões não podiam ser disfarçadas com a reconstrução. O fundador do programa escreveu: “Meus casos geralmente são casos extremos, dos quais a cirurgia não deu conta.”
Quase um século depois, Janis tentava algo incrivelmente similar. Em janeiro de 2009, o corpo comatoso de Wiens foi levado ao centro cirúrgico para dois dias de cirurgia. Depois de transferirem músculos das costas e das laterais do corpo para o rosto, a equipe os cobriu com pele de porco. Era uma medida temporária; a pele de porco iria por fim se romper, mas daria aos músculos proteção sem desperdiçar a pele de Wiens, a maior parte da qual ainda estava cicatrizando. “Ele era um cara muito magro”, lembrou Janis.
Depois de uma semana, a equipe de Janis substituiu a pele de porco por um produto sintético chamado Integra. No início, o inchaço era tremendo. “As enfermeiras disseram: ‘O que você fez com esse cara?’”, recordou-se Janis. “Mas, conforme o inchaço diminuía, os músculos assumiram o contorno do esqueleto facial.” Três semanas depois, a equipe realizou um enxerto na cabeça de Wiens com a pele de sua coxa. O resultado não foi bem um rosto: uma pele macia e indiferenciada foi retirada de cima do contorno do couro cabeludo de Wiens e inserida em uma abertura onde havia vestígios da sua boca. Foi preciso remover um de seus olhos; o outro estava inerte, mas os médicos o haviam “enterrado” de modo a protegê-lo em tecido mole, caso um dia pudesse ser recuperado. Wiens não tinha nariz nem lábios; só conseguiria deixar a barba crescer em uma pequena área do queixo. Ele parecia o Senhor Cabeça de Batata, sem feições.
Quando Wiens voltou à UTI, os médicos permitiram que ele retomasse a consciência. Rapidamente ele começou a conversar. Era difícil compreendê-lo, então seus pais colocaram um quadro branco ao lado da cama. Apesar de cego, ele conseguia escrever frases simples. Sua transição para a consciência era comprometida por delírios.
Wiens não tinha lembrança do choque elétrico de alta tensão nem das horas que o antecederam, mas, mais tarde, revelou ter tido uma experiência religiosa. No momento em que sua cabeça tocou o cabo de alta voltagem, ele teve uma noção profunda da morte, de ser sugado para um vazio infinito, que ele julgou ser o inferno. “Vi um lampejo de cada pecado diante dos meus olhos, então senti uma dor que nunca havia sentido nem nunca mais senti”, explicou. “Não era físico nem interno. Era uma sensação de abandono, essa é a única maneira de descrever isso. Lembro de gritar e não ouvir nada. Aquilo era a escuridão completa e impenetrável. Era basicamente como se separar completamente do divino, e então voltar envolvido pelos braços de Deus. Depois disso tive uma sensação de paz arrebatadora.”
Wiens não sabe quanto tempo ficou nesse abismo, mas no fim acabou emergindo. “Acordei de um sonho sabendo que tinha sido um sonho”, explicou. “Sabia que estava muito machucado.” O sono REM não é possível sob sedação profunda, mas o coma induzido não tinha sido constante. Ao seu lado na cama, a mãe de Wiens perguntou a ele como era estar em coma. Ele contou que tinha sonhado ter perdido uma perna, que sentia muita dor no quadril, mas que o resto do corpo estava intacto. No sonho, ele estava em um pequeno barco, sozinho, perdido na imensidão do oceano.
Nos primeiros dias de seu retorno à consciência, nem a família de Wiens nem o hospital estavam preparados para informá-lo sobre a extensão de seus ferimentos. Wiens não sentia dor no rosto já que quase todo ele estava sem sensibilidade, mas perguntou à enfermeira: “O que há de errado comigo?” A enfermeira lhe contou em linhas gerais, e seu pai mais tarde descreveu os pormenores. “Ele ficou chateado, mas lidou com a situação extremamente bem”, lembrou a mãe de Wiens. A gravidade das lesões faciais raramente corresponde à dificuldade de lidar com elas psicologicamente; uma pessoa com uma desfiguração pequena pode se sentir bem mais devastada do que alguém com uma enorme mutilação. Em alguns casos, os pacientes ficam eufóricos.
Wiens me contou: “Fui bem estoico, percebi que já tinha vivido coisa pior.” Ele havia começado a beber aos 12 anos; o uso de drogas veio logo depois. “Não me importava com nada nem com ninguém. Isso valia para minha família também.” Depois do ferimento, entretanto, as coisas pareciam ter mudado. “Ele teve de aprender como ser paciente com os outros e com ele mesmo”, lembrou uma enfermeira. Depois de sua experiência religiosa, Wiens abraçou a fé que tanto rejeitara. “Nunca neguei a existência Dele”, contou-me. Anos antes, quando sua filha Scarlette estava em perigo durante o parto, ele rezou num ataque de raiva. “Lembro de gritar com um Deus que eu odiava, implorando para que não levasse minha filha”, disse. Agora, ao que parecia, ele também havia sido poupado. Um dia, a avó de Wiens o encontrou escutando música gospel. E ele admitiu: “Estou colocando algumas coisas boas na cabeça.”
Após semanas de preparação psicológica, Scarlette, agora com 2 anos, foi levada para vê-lo. Evitando olhar seu rosto, ela pegou as mãos dele e exclamou: “As mãos do papai!” Wiens chorou, grato por não ter lágrimas que ela pudesse ver. “Apenas uma vez ele lamentou por tudo o que teria que enfrentar”, revelou a enfermeira. Seu irmão, David, contou: “Ele me chamou e disse: ‘Preciso que venha aqui’, e corri ao hospital. E ele desabou: ‘Não quero mais fazer isso. Não quero continuar lutando. Isso é besteira. Minha vida tem sido tão deprimente, não tenho nenhuma razão para sair dessa.’ Fiquei chorando e falei: ‘Não desista.’ E fui vê-lo na noite seguinte. Ele arrumou o quarto e falou: ‘Aquilo foi um erro. Desculpe por tê-lo feito passar por isso. Não vou morrer. Estou bem.’”
Dallas Wiens começou a dizer para as pessoas que havia perdido o rosto, mas tinha encontrado família, religião e uma maneira de se tornar uma pessoa melhor. “Deus tomou a minha vida e me deu uma nova”, explicou. Um dia, pouco antes de ser liberado, ele fez uma pergunta a Arnoldo, cujo prognóstico inicial fora tão alarmante: “Eu fiz tudo que você disse a minha família que eu nunca mais poderia fazer. Me diga o que mais eu não posso fazer, assim eu poderei seguir em frente e tirar logo isso do meu caminho.”
Wiens se mudou para a casa dos avós em maio de 2009, e, aos poucos, começou a andar, falar e comer. Lutou para se adaptar à cegueira e estabelecer um relacionamento com a filha. O tecido reconstruído às vezes ficava retraído demais, limitando seus movimentos, mas algumas terminações nervosas pareciam se reativar. Ele conseguia sentir um pouco o sabor dos alimentos. Na maior parte do tempo, sentia-se grato por estar vivo. Até se perguntava se deveria tirar a máscara. A avó, que ajudou a criá-lo, referia-se à reconstrução como sua Cara de Melão. Ela me contou: “Amei Dallas a partir do momento em que ele nasceu. Aprendi a amar aquela Cara de Melão. Conseguia decifrá-lo.”
Quando Wiens brigava com a avó, ela se virava para ele e falava: “Não me olhe assim.” Ele me disse: “Isso sempre era engraçado, pois eu sabia que não estava fazendo nenhuma expressão facial, mas ela conseguia dizer exatamente o que eu estava pensando, fosse algo irônico ou hostil. Ela quase sempre acertava.”
Naquele mês de outubro, a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos fez uma conferência em Seattle e Janis foi convidado a se juntar a um painel chamado “Os maiores salvamentos”. Os médicos apresentam relatos de cirurgias que salvaram vidas e a plateia decide qual foi a proeza do ano. Quando Janis conduziu a audiência pela recuperação inesperada de Wiens, todos ficaram profundamente comovidos e o escolheram como vencedor. A vitória indicava os cuidados e a engenhosidade do hospital Parkland, mas também levantava uma questão desconcertante: qual era o significado de o maior feito do ano em reconstrução facial ter sido realizado em um homem que não tinha mais a aparência de um rosto?
Um dos outros indicados no painel, um cirurgião chamado Bohdan Pomahac, de Boston, argumentou que a cirurgia plástica não poderia fazer muito mais. Pomahac estava frustrado com os limites da cirurgia reconstrutiva, e explicou como tinha começado a pensar de modo diferente. Seu paciente, um veterano da Guerra do Vietnã chamado Jim Maki, havia caído no trilho eletrificado do metrô e ficado com um buraco cavernoso onde um dia existiu um nariz. Pomahac sabia que era impossível reconstruir o centro do rosto de Maki e considerava as cirurgias de implante de próteses inadequadas. Ainda assim, acreditava que havia uma alternativa: será que ele não poderia transplantar os traços que faltavam de outra pessoa?
Pomahac retirou o nariz, as bochechas e o palato duro de um paciente que havia morrido de insuficiência cardíaca e os suturou no rosto de Maki. Essa era a segunda vez que um transplante parcial de face era tentado nos Estados Unidos. Apenas meia dúzia de tentativas foram feitas em outros lugares. A apresentação foi concluída com um slide de Maki logo depois da cirurgia, parado calmamente em frente à saída do hospital, com cicatrizes e um leve inchaço, mas inteiro. Embaixo da imagem, Pomahac havia escrito: “Não é uma vida salva, mas uma vida dada.”
Após a apresentação de Pomahac, Janis correu até ele e disse: “Acho que tenho um paciente para você.”
Pomahac sorriu e respondeu: “Talvez eu possa ajudar.”
Janis, sem conseguir conter a euforia, ligou para Wiens. Ali havia uma opção médica, um procedimento que lhe daria um rosto novo e vivo. “Dallas”, avisou ele, “acho que vi uma luz no fim do túnel.”
II
Um transplante facial requer equipes de vinte ou trinta médicos, especialistas em áreas tão diversas como imunologia e protética operando por até vinte horas. Assim como o lançamento de um foguete à lua, esse tipo de procedimento resulta numa demonstração pública de brilhantismo técnico. “Não é possível ser cirurgião sem acreditar na existência de heróis”, disse um médico a Joan Cassell quando ela escrevia seu livro sobre a cultura dos cirurgiões, Expected Miracles [Milagres Esperados], de 1991. Alguns anos atrás, a revista Lancet perguntou ao cirurgião que realizou o primeiro transplante de face, o médico francês Bernard Devauchelle, se ele teve um mentor. “Sou autodidata”, revelou; a figura histórica com que ele mais se identificava era sir Edmund Hillary, “porque ele foi o primeiro homem a conquistar o Everest”.
Bohdan Pomahac é o principal especialista em transplante facial nos Estados Unidos. Um homem alto e discreto, de 40 anos, cabelo bem penteado e cavanhaque, que trabalha no hospital Brigham and Women’s, em Boston. Cresceu na República Tcheca, na cidade de Ostrava, próxima à Polônia e à Eslováquia. Depois de se formar na faculdade de medicina, em 1996, foi para os Estados Unidos com o dinheiro que conseguiu economizar trabalhando em uma pequena agência de empregos temporários enquanto estudava. Uma tarde, apareceu na sala do chefe de cirurgia plástica do Brigham, Elof Eriksson, e perguntou se havia alguma pesquisa em que ele pudesse trabalhar. Pomahac não falava bem inglês, mas Eriksson achou que ele tinha os atributos de um bom cirurgião: precisão, ambição e vontade de testar os limites do possível.
Eriksson tinha dito a Pomahac que não havia emprego disponível, mas o conduziu pelo laboratório e disse que ele podia observar seu trabalho naquele dia. À noite, Pomahac voltou e disse que estava disposto a trabalhar de graça. “Não estou certo de que quero que faça isso”, falou Eriksson, e então arrumou um jeito de lhe pagar uma pequena remuneração. Em oito anos, Pomahac passou de pesquisador a diretor associado da unidade de queimados do Brigham. Outros médicos enfrentavam as doenças extirpando cânceres ou debridando músculos e ossos carbonizados. Os cirurgiões plásticos reconstruíam. “Sempre disse a meus pacientes: ‘Somos os caras legais.’ Depois que os outros médicos saem, somos nós que ajudamos o paciente a se recuperar e voltar a ter uma vida normal”, contou.
Os esforços de Pomahac o levaram à fronteira de uma área médica que se estabeleceu apenas recentemente. Os transplantes comuns hoje em dia – de rim, fígado, coração – têm sido realizados clinicamente há menos de 35 anos. Os protocolos que os orientam custaram anos de estudos clínicos e de erros graves para serem desenvolvidos. Foi preciso analisar casos de centenas de pacientes que sofriam terrivelmente e, mesmo assim, os cientistas ainda não entendem completamente como o corpo aceita enxertos de terceiros. Mais de um terço de todos os rins oriundos de pacientes mortos falha após cinco anos. Mais da metade de todos os transplantes de pulmão acaba não dando certo. Receptores de órgãos doados estão mais propensos a desenvolver problemas de saúde graves, como diabete e câncer, e vários deles apresentam muito mais risco de morrer dentro de dez anos do que seus contemporâneos.
A razão para esses problemas é clara: para que o corpo de uma pessoa aceite o tecido de outra, os médicos precisam debilitar o sistema imunológico o suficiente para permitir que o transplante dê certo, mas não a ponto de matar o paciente. Regimes de drogas imunossupressoras potentes são administrados pela vida toda para subverter o sistema de defesa interno do corpo – o impulso que distingue e defende o que é meu do que não é meu. O Santo Graal na área de transplantes é um avanço que induziria o corpo a considerar um órgão estranho como seu.
Muitos cirurgiões acreditavam que a prática do transplante deveria ficar limitada aos órgãos internos vitais, como coração e pulmões. Para outras áreas, o preço biológico seria alto demais. Transplantar massas compostas de diferentes tecidos – músculos, nervos, ossos –, especialmente se incluíssem pele, era desafiador. Muitos cirurgiões estavam convencidos de que a pele, estrutura que protege o corpo do mundo exterior, é o tecido mais antigênico, o que significa ser mais inclinado a desencadear uma resposta imunológica intensa caso o enxerto venha de um corpo estranho. Na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, médicos tentaram transplantar pele em soldados feridos, mas o corpo receptor destruía rapidamente os enxertos. Em 1964, um médico do Equador tentou um transplante de mão utilizando a imunossupressão que havia funcionado com os rins. Os resultados foram desastrosos. Depois de duas semanas, a mão teve de ser amputada.
Foi preciso descobrir a ciclosporina, droga derivada de um fungo pouco comum encontrado na Noruega, para que os cirurgiões voltassem a considerar seriamente a realização de transplantes de tecido composto. A ciclosporina age sobre as partes do sistema imunológico que atacam o tecido enxertado, deixando o resto mais ou menos intacto. Em 1981, não muito depois de sua descoberta, um professor da Universidade do Texas sugeriu no New England Journal of Medicine que logo seria possível transplantar membros. Em 1998, médicos da Universidade de Louisville demonstraram que transplantes de membros em grandes mamíferos foram possíveis com baixas doses de ciclosporina. Naquela altura, os únicos obstáculos reais que evitavam a volta da cirurgia tentada pelo médico equatoriano em 1964 eram éticos: isso violaria o juramento de Hipócrates?
Os médicos da Louisville queriam realizar um transplante de mão, mas uma equipe internacional sediada na França saiu à frente. “Eu sonhava com isso – queria ser o primeiro”, contou-me Jean-Michel Dubernard, cirurgião francês que liderou a equipe. Quando jovem, o médico havia estudado em Brigham sob a supervisão dos cirurgiões que tinham realizado o primeiro transplante de rim. Conhecido como Max pelos amigos, era um homem de hábitos refinados, com reputação de ser brilhante. Conduziu um dos primeiros transplantes de pâncreas, desenvolvendo uma técnica que mais tarde seria amplamente adotada.
A equipe optou por um paciente de meia-idade da Nova Zelândia, Clint Hallam, que havia perdido a mão em um acidente de trabalho. Um psiquiatra ligado aos médicos declarou que ele tinha “constituição forte e determinação sólida” e o recomendou como candidato. Vinte e cinco médicos estariam envolvidos na cirurgia. Ainda assim, Hallam estava diante do desconhecido: os cirurgiões não podiam prever como ele reagiria física e psicologicamente. Disseram-lhe que as chances de sucesso com a nova mão seriam como jogar cara ou coroa.
“Havia ainda a objeção ética de colocar alguém sob imunossupressores, que potencialmente apresentavam risco de morte, para realizar uma cirurgia de ‘qualidade de vida’”, escreveu mais tarde um dos cirurgiões. “Entretanto, alguém podia argumentar que tais cirurgias já eram rotina – transplantes de rim e de pâncreas são feitos para que pessoas não precisem fazer diálises e tomar injeções de insulina a vida toda, e não só para salvar vidas.” O argumento não convenceu muito. A maioria das pessoas com apenas uma das mãos pode viver de maneira independente, mas pessoas em diálise renal em geral morrem bem mais depressa que os receptores de transplantes. A cirurgia de Hallam era claramente experimental, mas a mão ao menos poderia ser removida caso tudo desse errado.
A cirurgia ocorreu em setembro de 1998 e durou catorze horas. O doador, que havia morrido em um acidente de motocicleta, era maior que Hallam; seu antebraço era mais comprido e mais largo; a pele era mais clara, mais rosada e menos peluda. Mas quando Hallam viu o resultado pela primeira vez, disse aos médicos: “Minha mão está de volta. É quase como se tivesse perdido um amigo anos atrás, e de repente ele está de volta.” Em meses, os nervos começaram a dar sinais de regeneração. A sensibilidade voltou, expandindo-se poucos milímetros por dia do antebraço até a ponta dos dedos. Por fim, Hallam conseguia escrever, segurar o telefone e comer usando garfo e faca. Contudo, antes que recebesse alta, em dezembro, descobriram que ele tinha mentido sobre seu acidente: ele havia se machucado enquanto cumpria pena por fraude. Hallam parou de tomar as drogas imunossupressoras. Contou a repórteres que os medicamentos o fizeram sentir náusea e perder peso, que teve sintomas parecidos com os da gripe e que um médico particular havia recomendado que ele parasse com os remédios para permitir que seu sistema imunológico lutasse contra a infecção. Seus médicos acreditaram que ele estava com problemas psicológicos. Dubernard disse que, depois que um de seus pacientes transplantados conheceu o papa, Hallam foi a Roma, na esperança de também conseguir uma audiência, o que lhe foi recusado. E ficou mais obcecado em remover a sua mão.
Quando Hallam interrompeu o tratamento imunossupressor, sua mão ficou inchada e vermelha e os tendões se calcificaram, tornando-a praticamente imóvel. Ele cobriu a mão, assim ninguém poderia vê-la. “Tornei-me mentalmente separado dela”, contou a um repórter. “Quando ela começou a ser rejeitada, percebi que, afinal, não era minha mão.” Ele implorou aos médicos que a amputassem; eles hesitaram, pedindo-lhe que reconsiderasse, e lhe forneceram medicação imunossupressora gratuita, mas quando os remédios terminaram ele não fez nenhum esforço para obter mais. A rejeição voltou com tudo e Hallam telefonou para um cirurgião implorando: “Ajude-me, quero que ela saia.” Seus médicos por fim concordaram – apesar de alguns deles o culparem pelo fracasso do procedimento, chamando-o de vigarista e de psicopata. Em fevereiro de 2001, removeram-lhe a mão.
Para os céticos, a cirurgia de Clint Hallam parecia confirmar uma grave suspeita: transplantes com tecidos compostos não passavam de heroísmo cirúrgico ao preço da boa medicina. Uma pequena comunidade de pesquisadores interessados em transplante de face, entretanto, assistiu à cirurgia entusiasmada. Para quem pensava que um membro nunca poderia ser transplantado porque a pele era muito antigênica, a cirurgia foi um avanço. “Clint Hallam me fez questionar esse dogma”, contou-me Peter Butler, cirurgião do hospital Royal Free, em Londres. “Isso me deu a ideia de que seria possível transpor o procedimento para o rosto.” Em 2002, já tinham sido realizados dez transplantes de mão, nenhum com as complicações de Hallam. Animados, Butler e um colega revelaram a ideia de fazer um transplante de face em um artigo no Lancet. Depois disso, médicos nos Estados Unidos, França, Espanha e China correram para ver quem alcançava o feito antes.
Houve ameaças, acusações de plágio e ressentimentos entre os cirurgiões. Jornalistas, enquanto isso, corriam para descobrir a identidade de potenciais pacientes. Quando os tabloides de Londres revelavam as histórias, elas estavam repletas de menções ao filme A Outra Face, em que John Travolta e Nicolas Cage, respectivamente assassino e agente do FBI, trocam de rosto e de identidade por meio de cirurgia. Transplantes faciais foram retratados como uma cirurgia cosmética extrema. TROQUE SEU ROSTO, anunciava o Daily Express. Um defensor da cirurgia me contou: “Todos tinham o ponto de vista de Nicolas Cage em A Outra Face, apesar de estudos indicarem que, pelo fato de a estrutura óssea desempenhar um enorme papel na aparência física, os receptores dos transplantes faciais não teriam a aparência de seus doadores.”
Em meio ao frenesi, o Royal College of Surgeons, a sociedade de cirurgiões da Inglaterra, decidiu avaliar o procedimento. Pessoas que haviam sofrido desfiguração facial já enfrentavam problemas de autoestima; algumas tinham imensos desafios psicológicos. Em que resultaria submetê-las a uma cirurgia radical que podia alterar sua identidade de modo imprevisível? Quais eram as chances de um transplante facial funcionar bem? Pacientes desesperados poderiam pesar os riscos e dar autorização de modo consciente? E se um paciente se recusasse a seguir o tratamento imunossupressor, como fez Hallam? E se o transplante desse errado – digamos, na mesma proporção que os de pulmão davam? Diferentemente da mão, um rosto não poderia ser amputado. Consultados sobre as consequências do fracasso do transplante, os médicos foram diretos. “São assustadoras”, disse um deles. Outro afirmou: “Muito terrível para se imaginar.”
O Royal College of Surgeons estudou o assunto por oito meses e concluiu que era “insensato continuar”. Um comitê de ética francês argumentou que era “utópico” pensar que pacientes gravemente desfigurados poderiam dar uma “autorização autêntica” e que “a terapia imunossupressora pela vida toda significava que alguém em situação de grande incapacitação iria entrar em uma condição de risco de morte”. O comitê determinou que um transplante total de face seria inaceitável. Mas admitiu que o procedimento envolvendo apenas “o triângulo” – composto por nariz, boca e queixo – oferecia risco menor de acarretar complicações psicológicas e era eticamente defensável, desde que fosse apresentado com clareza aos pacientes como um experimento de alto risco.
Um ano mais tarde, em 2005, uma mulher de meia-idade que havia sofrido uma desfiguração traumática chegou a um hospital em Amiens, uma pequena cidade a pouco mais de 100 quilômetros ao norte de Paris. Seu nome era Isabelle Dinoire. Certa noite, ela, que sofria de depressão, brigou com a filha, tomou um punhado de comprimidos para dormir e desmaiou. Quando acordou, pegou um cigarro, mas viu que era impossível fumar, pois não tinha boca nem nariz. Enquanto estava inconsciente, seu labrador havia lhe atacado o rosto. Uma poça de sangue a envolvia. “Fui me olhar no espelho, não consegui acreditar no que vi”, contou mais tarde a Noëlle Châtelet em um livro intitulado Le Baiser d’Isabelle [O Beijo de Isabelle].
O Centre Hospitalier Universitaire d’Amiens [Centro Hospitalar da Universidade de Amiens], ou CHU Amiens, não é um grande hospital, mas cuida dos casos mais complicados da região. A mordida do cachorro deixara Dinoire com aspecto cadavérico; nada cobria seus dentes ou gengivas. “Foi uma atrocidade terrível”, contou-me um dos médicos. Comer e falar eram praticamente impossível. Já frágil psicologicamente, ela se retraiu por causa do choque, perdendo a noção de tempo e até mesmo de quem era. “Chorava de desespero”, contou a Châtelet. “Não via saída.” Mais tarde, Dinoire me disse que não conseguia imaginar viver sem um rosto. “Quando não tem rosto, você não é nada”, disse. Adotou então uma vida reclusa, quase não saía de casa. Quando realmente precisava sair, se escondia atrás de uma máscara cirúrgica.
O chefe da cirurgia maxilofacial do CHUAmiens, Bernard Devauchelle, pensou que ela talvez pudesse ser candidata a um transplante facial, mas quando tentou obter a autorização o imunologista do hospital não o apoiou. “Ele ficou receoso porque era algo novo”, contou-me Devauchelle. Por fim, teve o apoio de Max Dubernard, que, além de cirurgião e especialista em transplante e imunologia, era um político influente na Assembleia Nacional e tinha experiência em conseguir aprovação para procedimentos radicais.
“Para mim, ele era político”, revelou-me Devauchelle. “Mas quando veio aqui, vi que era médico. Sua primeira pergunta foi: ‘Posso ver a paciente?’” Após avaliar Dinoire, Dubernard falou para os outros médicos. “Ali estava uma paciente cuja vida tinha sido devastada.” Ele me disse: “Como médico, penso assim: se fosse minha filha ou mulher, o que eu faria?” A equipe começou a buscar autorização, enfatizando que a situação de Dinoire era “uma emergência”: seu tecido cicatricial estava enrijecendo, tornando o ferimento mais evidente, seu rosto estava despencando.
Os médicos decidiram que Devauchelle e sua equipe fariam a cirurgia. A paciente voaria ao hospital de Dubernard, em Lyon, onde sua equipe monitoraria o tratamento imunossupressor. Já tendo experimentado o paradoxo do interesse da mídia na cirurgia de Hallam, Dubernard tentou controlá-lo no caso de Dinoire, convidando um operador de câmera para documentar o procedimento no centro cirúrgico. Os médicos tinham feito a paciente assinar a autorização duas vezes. Depois da cirurgia, em novembro de 2005, as fotos foram vendidas para o Paris Match (o lucro ficou com a paciente). Embora os olhos de Dinoire tenham saído borrados nas fotos, foi possível ver o suficiente para identificá-la; mais tarde, em uma coletiva de imprensa, ela parecia esgotada. Seus nervos não conseguiam comandar o rosto, ainda inchado. Os lábios estavam inertes. Um mês após a cirurgia, Dinoire leu que um jornal britânico havia identificado seu doador – uma mulher de meia-idade de uma cidade próxima, que aparentemente cometera suicídio ao enforcar-se. “Em algum lugar, estamos ligadas”, assumiu mais tarde para Châtelet. “É estranho saber que, como eu, ela também quis morrer. Estranho saber que foi ela quem me salvou.”
O episódio suscitou críticas intensas. A revista Plastic and Reconstructive Surgery publicou um artigo perguntando se Dinoire havia sido explorada. O procedimento havia sido manipulado eticamente, dada a sua publicidade espetacular? Ela podia lidar com isso psicologicamente? Os cirurgiões de Dinoire responderam com uma defesa rebuscada, fazendo comparações entre eles próprios e Galileu, Copérnico e Darwin, atacados por sua audácia. Criticaram repórteres por identificar a doadora e argumentaram que negar a operação a Dinoire por causa de sua fragilidade psicológica teria sido condená-la “a mais odiosa forma de ostracismo”. Três equipes de psiquiatras, afirmaram eles, haviam-na avaliado como uma boa candidata.
Dois meses depois da cirurgia de Dinoire, a equipe foi convidada para uma conferência sobre enxertos de tecidos compostos no Arizona. Devauchelle relutou em ir, mas vários de seus assistentes proeminentes foram bem recebidos. “A equipe francesa agiu de modo bastante responsável e cuidadoso”, afirmou, durante a conferência, sir Roy Calne, pioneiro na área. Joseph Murray, que recebeu o prêmio Nobel por seu trabalho na área de transplantes no Brigham, concordou. “Uma vez que o cirurgião considerou todos os aspectos cirúrgicos, éticos e morais e chegou a uma decisão, uma segunda opinião é contraproducente”, falou Murray. “Na verdade, a indecisão pode ser destrutiva.”
Fui visitar Devauchelle em Amiens. Pelo modo com que havia aparecido na imprensa, eu esperava que fosse um tipo arrogante. Fiquei surpreso quando o conheci: franzino, magro, com uma onda de cabelo arruivado, tinha o ar cansado de um boêmio envelhecido. Sua escrivaninha estava cercada de trabalhos de arte primitivista. Não havia computador. Ele não usava meias e não vestia camiseta por baixo do jaleco branco. Quando lhe perguntei a respeito do seu comentário no Lancet sobre Edmund Hillary e o Everest, sorriu como se estivesse sem graça. “Quando eu era mais jovem, escalava muito – era uma paixão minha”, explicou com a voz grave, arranhada pelo hábito do cigarro.
Devauchelle comparou a cirurgia plástica a tocar piano, e falou sobre O Pavilhão dos Cancerosos, de Soljenítsin, que o inspirara. “O que significa um rosto?”, perguntou. “Para mim, um rosto é exatamente como um órgão. Nem mais nem menos. Existe o coração, fígado, cérebro – e o rosto. Todos procuram a verdade no rosto. Para um cirurgião, é pele, tecido, músculo, sangue.”
Uma das cirurgiãs que participou do transplante, Sylvie Testelin, juntou-se a nós no escritório. Ela se tornara uma espécie de guardiã de Dinoire, que agora estava extremamente ligada ao hospital, onde ia sempre. Testelin a incitou a usar a cirurgia como uma oportunidade de retomar a vida, de crescer, embora não estivesse certa de que Dinoire realmente queria mudar. “Até o fim da vida, carregaremos essa responsabilidade”, falou ela.
“Não é fácil”, diz Devauchelle.
Testelin enfiou as mãos nos bolsos do jaleco branco, apoiou-se na parede e disse: “É o melhor e o pior.”
III
É difícil imaginar um hospital mais diferente do CHU Amiens do que o Brigham: uma unidade supermoderna, afiliada de Harvard. Uma de suas entradas se abria para um átrio de vários andares; tevês de tela plana ocupavam as paredes. A entrada principal, chamada de Pike, era decorada com uma série de retratos tirados pelo famoso fotógrafo Yousuf Karsh, intitulada Os Curadores da Nossa Era. Por duas décadas, o Brigham aparece na lista dos melhores hospitais dos Estados Unidos.
Quando jovem, o cirurgião reconstrutor Bohdan Pomahac não se especializou em transplantes, mas depois da cirurgia de Dinoire, foi visitar Elof Eriksson para explicar suas razões e tentar convencê-lo a fazer um transplante de face. Eriksson estava considerando o procedimento desde 1990, mas, ciente das questões éticas envolvidas, decidira não seguir adiante. Anos antes, sob o comando de Francis Moore, seu lendário diretor de cirurgia, o Brigham havia assumido vários riscos. Na última metade de sua carreira, no entanto, o próprio Moore adotou uma atitude mais prudente e alertou que “o cirurgião deve estar consciente do fato de que pacientes ameaçados por doenças graves demonstram uma disposição surpreendente e por vezes alarmante em aceitar a incerteza para tentar alcançar algo novo”.
As notícias do feito francês levaram Eriksson a reconsiderar as coisas. Pouco depois que a cirurgia de Dinoire foi anunciada, ele conheceu Joseph Murray, e este lhe disse que a polêmica não era diferente daquela que ele próprio havia experimentado após realizar o primeiro transplante de rim. “Aquilo me abriu os olhos”, contou-me Eriksson. Naquela época, a elite da classe médica estava mudando aos poucos sua maneira de ver o problema. Em 2006, o Royal College of Surgeons lançou um segundo relatório, atenuando sua posição.
Encorajado, Pomahac trabalhou para ganhar a aprovação do Institutional Review Board [Conselho de Revisão Institucional, um comitê que monitora pesquisas médicas e científicas envolvendo seres humanos] do Brigham, o IRB, que supervisiona as cirurgias experimentais de vários hospitais em Boston. Pomahac – que jogava xadrez quando adolescente – se aproximou do IRB com movimentos taticamente precisos. Propôs que a cirurgia fosse aprovada apenas para pacientes que já tivessem sofrido transplante de órgão e, portanto, já tomassem medicamentos imunossupressores. “Esse seria o candidato perfeito, pois poderíamos fugir dessa polêmica desnecessária a respeito da medicação”, revelou-me. Em maio de 2007, o IRB aprovou o protocolo, mas, como era de se esperar, foi difícil encontrar um paciente. Para completar, a cirurgia era cara e não estava claro se o custo do uso contínuo de medicamentos imunossupressores – em torno de 10 mil dólares por ano – seria coberto pelo seguro.
Para driblar esses percalços, Eriksson convidou Max Dubernard para dar uma palestra em um evento de que participariam administradores do hospital. “Achei que isso seria um incentivo à ideia do transplante”, contou-me. Dubernard fez uma apresentação impressionante, mostrando imagens de recebedores de transplantes de mão que conseguiam jogar varetas e enfiar uma linha na agulha, e mostrou Dinoire comprando legumes e verduras. Durante o jantar naquela noite, ele apontou para o chefe de cirurgia e falou: “Você precisa apoiar isso. Essa é a nova fronteira.”
Apesar de o IRB ter aprovado o procedimento dentro daquelas limitações, Pomahac quis aprender mais. Viajou a Bruxelas em companhia de outro cirurgião para se encontrar com Devauchelle e membros da equipe que operara Dinoire. Depois de estudar o histórico de casos de candidatos em potencial, as equipes decidiram que Jim Maki, veterano do Vietnã que perdera o nariz, era o mais adequado. Antes da cirurgia de Maki, os médicos treinaram os procedimentos num cadáver. “Estávamos todos em sintonia, com a mesma vontade”, descreveu-me Devauchelle. Uma noite, a equipe francesa convidou os médicos americanos para jantar e planejou uma surpresa: levaram Dinoire como convidada. Ela estava à vontade no meio dos cirurgiões, comeu com facilidade, até saiu para fumar com Devauchelle. “Naquele momento, levava uma vida normal havia três anos”, lembrou Pomahac.
Depois do jantar, Pomahac disse a seu colega: “É isso.” – qualquer dúvida que ele talvez ainda tivesse havia se dissipado. Em 2008, a Cleveland Clinic realizou um transplante de face parcial e o IRB do Brigham concordou em ampliar o protocolo para pacientes que não estivessem recebendo tratamento imunossupressor. Em 2009, surgiu um doador para Maki: um homem que morrera enquanto aguardava um transplante de coração. Por coincidência, o Boston Med, um reality show que ia ao ar pelo canal ABC, acompanhava sua história. Após a cirurgia bem-sucedida de Maki, um episódio mostrou a ligação entre a vida dos dois pacientes.
Pomahac recebeu cerca de 3,4 milhões de dólares do Departamento de Defesa e começou a procurar outro candidato. Quando Janis lhe contou sobre Wiens, ficou cautelosamente interessado. Wiens requereria uma cirurgia revolucionária: um transplante facial total, algo que nunca havia sido feito antes. Mas seu ferimento havia destruído muitos nervos e vasos sanguíneos essenciais: “Pensei: Meu Deus, não sobrou nada –o rosto todo foi embora. Esse provavelmente não é o paciente adequado”, contou-me Pomahac.
Quando Wiens recebeu alta do Parkland, seus avós decidiram dividir a tarefa de cuidar dele. Sue Peterson ajudaria a criar Scarlette. Del Peterson, o avô, cuidaria dos assuntos relativos aos hospitais.
No início de 2010, Wiens voou para Boston na companhia de Del para ser avaliado pela equipe de Pomahac, mas ele ainda não sabia se desejava de fato passar pelo procedimento: “Eu já havia passado pela vida e pela morte para chegar onde estava. Vou entrar na faca sabendo que poderei nunca mais acordar? Estou desafiando o destino?”, contou-me.
Não há um protocolo padrão para a realização de transplante facial. Um cirurgião em Paris, que já fez sete, diz a possíveis pacientes que eles podem morrer no centro cirúrgico. Pomahac acredita que isso seja um exagero, mas o Brigham preferiu informar o paciente sobre todos os problemas que ele poderia ter em longo prazo. Se o transplante não desse certo, em dez ou vinte anos Wiens precisaria de outras cirurgias reconstrutivas. Os riscos associados ao tratamento imunossupressor iriam de câncer a danos nos rins e seriam constantes. Como estava cego, ele teria de confiar em outras pessoas para monitorar os sinais de rejeição. O hospital enumerou os perigos com tanta ênfase que um dia Wiens falou a Pomahac: “Parece que vocês estão tentando me dissuadir.”
Após meses de reflexão, Wiens optou por submeter-se ao procedimento. “Eu tinha criado quase que uma afeição pelo meu novo rosto”, revelou-me, referindo-se à reconstrução feita por Janis. “Esse rosto era apenas parte do que eu era, mas eu sabia que no final ele ia ficar diferente. O que realmente me fez seguir em frente com o transplante foi a questão da sensibilidade. Eu não tinha sensibilidade na face. Cirurgias protéticas não mudariam isso, mudariam apenas o que as outras pessoas veriam, e para mim isso não importava. Eu não conseguia vê-las, portanto não podia julgar como elas me olhavam. O que elas viam não era eu; era apenas uma máscara que eu usava, assim como o rosto delas era uma máscara que usavam. Então pensei: faço as cirurgias protéticas, que serão mais fáceis, ou tento recuperar a sensibilidade, que será mais difícil? No final das contas, eu já havia passado por uma situação que não era só difícil, era impossível.”
Sue Peterson me disse que Wiens também pensou na filha. “Ele não queria que as crianças o evitassem”, lembra. “Uma das coisas que o aborrecia é que ele não queria, quando Scarlette e seus amigos fossem mais velhos, tornar-se o cara esquisito de que todo mundo tem medo.”
Por ter recebido muitas transfusões de sangue no Parkland Memorial, o corpo de Wiens produzira anticorpos contra mais de 60% do tecido do doador. Um transplante contendo qualquer parte desse tecido seria destruído imediatamente. “Não ia ser algo fácil”, explicou Pomahac. Ainda assim, Wiens estava convencido de que estaria no centro cirúrgico até o Natal – tanto que a família celebrou a festa antes para que ele pudesse estar com a filha. “Mas não foi assim que as coisas aconteceram”, lembrou sua avó. “E acho que ele começou a perder a esperança.” Wiens me contou que simplesmente parou de pensar no procedimento até a primavera seguinte, quando recebeu um telefonema enquanto brincava com um joguinho de computador para cegos. Era Pomahac. “Ei, Dallas. Como vai?”
“Estou indo bem”, respondeu Wiens.
“Só quero que você saiba que encontramos um doador”, contou. Silêncio do outro lado da linha. Wiens achou que fosse um sonho. “Ainda está aí?”, perguntou o médico.
“Sim”, murmurou Wiens. “Isso é maravilhoso.”
Pomahac descreveu a aparência do doador. “Isso é como ganhar na loteria”, falou. Ele não deu detalhes – a doação de órgãos geralmente é anônima –, mas avisou que o paciente era consideravelmente mais velho: tinha 40 e tantos anos. “Como se sente quanto a isso?”, perguntou. Wiens concordou com a cirurgia na hora – não queria arriscar a ter de esperar mais – e Pomahac pediu para que ele fosse até Boston o quanto antes. Seus avós correram para ajudá-lo a fazer as malas e rezaram para que ele não pegasse trânsito. Del iria com ele; Sue cuidaria de Scarlette. Os pais de Wiens também correram ao aeroporto. Pouco antes que ele passasse pela segurança, sua mãe o abraçou. “Sabe de uma coisa? Espero que meu novo filho seja assim tão bonito.” Então lhe deu um tapinha no rosto e um beijo de adeus.
“Mãe, só lembre de uma coisa”, disse ele, enquanto ela se afastava.
“O quê?”
“O velho Dallas morreu quando encostei naquele fio. Meu corpo está aqui, mas o velho Dallas morreu.” O que ele queria dizer é que não teria problema algum caso sua aparência mudasse: o ferimento já o havia transformado em alguém novo. Conduzido pelo avô, misturou-se à multidão e sumiu de vista.
O que podemos dizer sobre o doador de Wiens? Era um homem bom, dono de uma lojinha, um pilar de sua comunidade. Era um escultor misantrópico que passou a vida em uma cabana isolada. Era um bêbado que costumava viajar de carona, era um criminoso violento. Sofreu um ataque cardíaco em um banco de igreja; ou talvez tenha perdido a vida num acidente de carro; ou enquanto salvava uma criança do afogamento. Ele morreu dormindo – sozinho, mas não solitário. Ele nunca estava sozinho; mesmo em seu leito de morte, a mulher e os filhos estavam por perto.
Há muitos motivos para o segredo que cerca os doadores de órgãos, entre eles as complicações emocionais – o que a antropóloga Lesley Sharp chama de “biossentimentalidade” – que ocorrem quando o tecido de uma pessoa é costurado no de outra. Algumas famílias de doadores procuram relacionar-se com “seu” receptor. Muitos optam por privacidade. Mesmo as doações de órgãos convencionais carregam consigo questões de ansiedade e identidade pessoal. Um doador saudável pode salvar até oito pessoas e ajudar outras dúzias, mas menos da metade de nós concorda em abrir mão dos órgãos no momento da morte. Como milhares de pessoas morrem por falta de órgãos, isso pode parecer tragicamente irracional. A razão, contudo, tem limites:um coração também é o seu coração.
Em seu esforço para pôr em pé um programa de transplante facial, Pomahac já havia abordado o Banco de Órgãos de New England – a autorização de praxe dada na carteira de motorista claramente não seria suficiente. Quando apresentou seu caso aos médicos do conselho, deparou-se com expressões impassíveis. Estavam todos preocupados com a possibilidade de sua equipe atrapalhar cirurgiões que buscavam órgãos para salvar vidas. Pomahac concordou em observar como era feito o procedimento para encontrar maneiras de não atrapalhar. O conselho perguntou: e se, no processo de remoção do rosto, a condição do doador se tornar instável, arriscando a perda de um coração ou de um rim? “Nós paramos”, prometeu Pomahac. Ele me contou que, depois de uma de suas reuniões, o presidente do conselho o puxou de lado e disse: “Há algo em você que me faz querer ajudar.”
Vi essa capacidade persuasiva em ação durante uma coletiva de imprensa. Pomahac anunciava um transplante facial em uma mulher chamada Charla Nash, que fora atacada por um macaco. “Para nós ela não é ‘uma mulher que foi ferida por um chimpanzé’”, disse ele. Nash é uma moça baixinha que certa vez não teve nariz, mas que agora pode sentir cheiros; uma mulher sem o palato que agora pode comer um hambúrguer. Antes da cirurgia, explicou ele, Nash decidira não ir à formatura do ensino médio da filha. “Sabemos que isso a magoou muito”, afirmou ele, olhando para o atril, visivelmente emocionado.
Pomahac estava indo para o trabalho quando foi informado pelo Banco de Órgãos de New England de que havia um doador em potencial para Wiens esperando por ele a apenas algumas horas de avião de Boston. (Para proteger a identidade do doador, o banco de órgãos insiste que o nome e o local do hospital permaneçam em sigilo.) No início, não estava claro se o doador serviria. “Na maioria das vezes, a coisa não vai para a frente”, contou-me Pomahac. De todo modo, amostras de sangue e tecido haviam sido encaminhadas para lá e testes indicavam que havia compatibilidade. De repente, tornou-se necessário um intenso planejamento: uma equipe iria ao hospital onde o corpo do doador era mantido vivo; outra, no Brigham, começaria a preparar Wiens para o enxerto.
“No decorrer do dia, várias coisas tornaram o procedimento extremamente desgastante”, revelou-me Pomahac. Um importante membro de sua equipe – um cirurgião que trabalhara no caso de Maki – estava em Aruba, o que significava que Pomahac teria de remover o rosto do doador, a parte mais desafiadora da cirurgia, com o auxílio de alguém com pouca experiência nisso. De certo modo, Pomahac também era pouco experiente; nunca havia feito um transplante de face total. “Mesmo já tendo praticado em cadáver, era algo que eu tinha feito muito tempo atrás”, lembrou.
Pomahac conseguiu um voo noturno para ir ao outro hospital, o que lhe daria um dia inteiro para resolver os detalhes da operação. Eriksson, que havia passado por uma cirurgia no pescoço, se juntaria a ele na “recuperação”, como é chamada a remoção da face do doador. Ele convidou Janis, o cirurgião que havia operado Wiens primeiro. Janis nunca havia feito um transplante de face, mas conhecia bem a anatomia facial de Wiens.
Às 18 horas, o banco de órgãos telefonou: uma equipe de cirurgiões de outro hospital – digamos que tenha sido de Hartford – precisava do fígado do doador. Pomahac teria de começar duas horas mais cedo e teria apenas uma hora no centro cirúrgico. A matemática era complicada. Para o transplante facial parcial de Jim Maki, a remoção havia durado seis horas. Agora, Pomahac teria de remover mais tecido com muito menos tempo. Ele considerou cancelar a cirurgia de Wiens. “Eu os avisei: ‘Entendo a necessidade de um órgão vital, mas isso realmente não é possível. Não creio que uma hora ou algumas horas farão diferença. Podemos conseguir três horas?’ Eles disseram que não”, lembrou Pomahac.
Desesperado atrás de uma saída, ele ligou para o cirurgião-chefe em Hartford para implorar. “Disse-lhe que respeitaria sua opinião, mas, se ele não pudesse nos dar um pouco mais de tempo, teríamos de desistir de tudo. Ele falou: ‘Sim, nosso paciente está doente há dois dias. Podemos lhe dar duas horas.’” Pomahac voltou à sua equipe. Seria possível dissecar um rosto em apenas duas horas? “Decidimos tentar”, recordou. Naquele momento, Dallas estava a caminho.
O novo horário significava mais mudanças. Janis não conseguiu pegar o voo – diminuindo ainda mais a equipe que trabalharia na remoção – e, em vez de ir para lá, resolveu ir ao Brigham para observar os cirurgiões. Por volta de 21h30, Pomahac, Eriksson e dois outros médicos pegaram um jatinho para oito passageiros no aeroporto Norwood Memorial, nos arredores de Boston. Jatos particulares são usados com frequência para buscar órgãos, mas para Pomahac, um cirurgião reconstrutor, a experiência era inusitada; mais tarde ele confessou que se sentiu um investidor de banco indo a uma reunião.
Do aeroporto, uma ambulância os levou às pressas ao hospital. O corpo do doador estava aguardando numa mesa dentro de um centro cirúrgico espaçoso. A equipe ficou contente em ver que ele tinha boa aparência, mas surpreendeu-se com seu tamanho: o doador era um homem corpulento, bem maior que Wiens. Por um instante, Pomahac imaginou se a falta de harmonia seria um problema, mas disse a si mesmo: não era o fim do mundo.
Eles se paramentaram para entrar no centro cirúrgico. “O tempo exercia uma enorme pressão e isso estava realmente me matando”, lembrou Pomahac. Na maioria dos casos, os cirurgiões começam o trabalho na superfície do corpo até atingir o interior, mas quando se remove um rosto, cortam-se camadas de tecido de uma só vez, mais ou menos como quando descascamos uma banana. Durante o processo, o cirurgião precisa navegar pela delicada anatomia subcutânea – a arquitetura dos nervos e vasos que é crucial ao rosto – do avesso. “É como um mecânico que passa a carreira toda debaixo do carro consertando motores e, de repente, pela primeira vez, tem de fazer isso de cima, do teto do carro”, explicou-me Pomahac.
Pomahac e Eriksson posicionaram-se de pé, cada um de um lado da cabeça do doador. Planejavam começar a dissecção a partir das orelhas e seguir em direção ao nariz, removendo a pele do rosto radialmente enquanto se dirigiam ao centro da face. Pouco depois da primeira incisão, os cirurgiões de Hartford chegaram. “Como está indo?”, perguntou o cirurgião-chefe.
“Estamos trabalhando o mais rápido que podemos”, respondeu Pomahac.
“Então podemos nos preparar para entrar?”, quis saber o médico. “Ou vocês precisam de mais tempo? Sabem que não podemos dar muito tempo, não é?”
“Idealmente, precisaríamos de seis horas”, disse Pomahac. “Mas entendo que vocês não possam nos dar esse tempo todo. Aceitamos qualquer tempo que vocês possam nos ceder.”
O médico ligou para seu hospital e avisou aos cirurgiões do Brigham que eles podiam contar com uma hora a mais. Pomahac e Eriksson continuaram a trabalhar. Em uma hora, removeram um quarto do rosto. “Percebemos que não havia um maldito modo de conseguir terminar em três horas”, contou-me Pomahac. Eriksson estava dissecando a parótida, uma enorme glândula salivar localizada na bochecha. A equipe de transplante facial do Brigham em geral não retira a parótida do doador se a do receptor estiver funcionando bem – a redundância faz com que o rosto adquira uma aparência mais larga –, mas Pomahac e Eriksson sabiam que o lado esquerdo do rosto de Wiens estava destruído pelo ferimento e decidiram usar a glândula para preencher a reentrância.
Depois de cerca de três horas de cirurgia, os médicos do Hartford voltaram e pararam o coração do doador para começar o procedimento de remoção do fígado. Sem sangue, o tecido facial sobreviveria por no máximo quatro horas. “O relógio começou a correr”, disse Pomahac. Ele e Eriksson haviam dissecado cerca de dois terços do rosto. “Tentamos correr o máximo que pudemos para terminar.” Em vez de trabalharem em direção ao nariz, começaram de cima para baixo do rosto. A alteração permitiu-lhes enxergar com mais facilidade, especialmente a complexa anatomia do pescoço. “Em determinado ponto, pensei: ‘Estou louco?’”, contou-me Pomahac. “Isso vale a pena, me colocar nessa situação? Poderia ter sofrido um ataque cardíaco.”
Eriksson me disse que durante cirurgias complexas ele repete silenciosamente um mantra: Por favor, concentre-se aqui. Não cometa erros, pois não há espaço para eles. Como cirurgião sênior, ele orientou Pomahac a não se preocupar com os outros médicos, o prazo e as complicações imprevisíveis, e simplesmente se concentrar.
Todavia, no momento em que terminaram, tinham menos de três horas para acoplar o rosto em Wiens. “Estávamos ficando sem tempo”, disse Pomahac. O rosto foi colocado em um cooler azul cheio de gelo – do tipo que encontramos em lojas de departamentos – e a ambulância correu de volta ao aeroporto. Mais uma vez, Pomahac começou a imaginar situações possíveis. Ele e Eriksson tinham removido tudo o que podiam e isso devia ser suficiente. Contudo, como o coração do doador havia sido parado, não dava para notar se os vasos sanguíneos tinham sido cortados durante a cirurgia. “Sem o sangue circulando, não é possível ver os pequenos sangramentos”, explicou-me Pomahac.
O piloto alterou o plano de voo para aterrissar no aeroporto Logan, mais perto do Brigham. Com o rosto ao lado deles, e com o início da manhã ainda escuro, os médicos esperavam chegar até Wiens a tempo. “Foi o maior estresse de toda a minha vida”, disse Pomahac.
Wiens e o avô pousaram no Logan quase ao mesmo tempo em que Pomahac e Eriksson fizeram a primeira incisão. Uma equipe do Brigham estava lá para recebê-los. Wiens usava camiseta da marca Obey, moletom com capuz, calça jeans, boina e óculos de sol. Ostentava uma barba retorcida no queixo como um ponto de interrogação. Trazia uma bengala em uma das mãos e com a outra segurava o braço do avô. Eles foram conduzidos para o interior de um utilitário esportivo. “Naquele momento, dentro da caminhonete, pensava: Isso está realmente acontecendo? Ou eu vou acordar?”, falou Wiens. Um funcionário do hospital lhe garantiu: “Você está mesmo aqui.”
No hospital, Wiens foi levado à sala pré-operatória e colocado em uma maca. Janis estava lá. Ele e outro cirurgião plástico viraram a cabeça de Wiens da esquerda para a direita, posicionando-a, enquanto o cirurgião plástico desenhava, com um marcador roxo, os pontos que o orientariam durante a cirurgia. A pele estava retesada, como uma tela. Ele desenhou círculos grandes onde deveriam ser os olhos de Wiens. Fez um nariz triangular, tirou uma foto e saiu.
Era cerca de uma e meia da manhã. Quando Wiens estava prestes a ser levado ao centro cirúrgico, sussurrou algo a uma enfermeira, que gritou: “Ele quer ver todo mundo. Entrem.”
“Estamos aqui, Dallas”, disse Peterson.
“Onde está Janis?”, perguntou Wiens.
Janis pôs a mão em seu ombro. “Eu?”
Wiens começou a falar. “Por causa dos medicamentos que eles me deram não sei se consigo falar isso sem me atrapalhar.” Sua voz estava baixa e ele fazia pausas a cada duas palavras. “Cada um de vocês – acho que não consigo”, falou, e então parou para reunir forças, e começou de novo. “Nunca, em minha vida, conseguirei expressar a gratidão e o amor eternos que sinto por vocês, que me conduziram a uma vida totalmente nova; apenas agradecer não vale.” Wiens parou outra vez, e o barulho dos equipamentos médicos, uma confusão de sons que faziam um assobio em uníssono, preencheu o silêncio. “É a minha vida…” Sua voz começou a oscilar. Sua cabeça, cheia de cicatrizes e sem traços definidos, exceto pelas marcas de um rosto que fora desenhado nela, pareceu terrivelmente vulnerável. Os médicos iam remover o conteúdo inexpressivo de pele que Janis havia criado para acomodar a personalidade de Wiens; e ainda assim a sala estava tomada por sua emoção, confiança, gratidão e ansiedade. Sua cabeça estava imóvel. Ele sussurrou: “Vejo todos vocês do outro lado, certo?”
Um transplante facial costuma ser um processo simétrico: enquanto uma equipe de cirurgiões remove o rosto do doador, outra retira o do receptor. Mas, com o tempo de validade do rosto do doador se esgotando e o voo de Pomahac já a caminho, a simetria do procedimento teria de ser quebrada. Em vez de remover a reconstrução de Janis imediatamente, os cirurgiões decidiram se concentrar em escavar a artéria carótida de Wiens, assim o rosto novo poderia ser imediatamente conectado ao suprimento de sangue. Colar o rosto à artéria seria como ligar uma bateria descarregada a uma tomada elétrica. Uma vez conectado, poderia ser deixado de lado, enquanto os cirurgiões mapeavam os vasos e nervos e removiam a Cara de Melão.
Como outros médicos, Janis inspirou-se na coragem e na retidão de Wiens. “Ele é um guia para mim, mais do que ele pensa”, contou-me. Depois que todos deixaram a maca de Wiens, Janis ficou ao lado dele, segurando sua mão. Era chegada a hora de começar. “Lá vamos nós”, disse um anestesista. “Estamos indo para o Quarto da Sorte nº 8.” Wiens foi levado ao centro cirúrgico, o corpo enrolado em um cobertor aquecido e apoiado sobre um colchão cheio de água quente. O procedimento levaria dezoito horas.
No centro cirúrgico, E. J. Caterson, especialista em cirurgia craniofacial, trabalhou com outro cirurgião para expor a carótida. Eles terminaram rapidamente e começaram a descobrir o sétimo nervo, que se estende pelo rosto como uma árvore: o tronco fica perto da orelha e se espalha em galhos. Uma das características que torna o rosto humano algo único é seu delicado controle motor; expressões matizadas são construídas por meio da combinação de movimentos musculares mínimos, muitos deles dirigidos pelo sétimo nervo. Desde a lesão, o nervo de Wiens tinha se tornado fixo em tecido enrijecido. Os cirurgiões tiveram de dissecá-lo com cuidado para conectar os ramos às partes homólogas do doador. Etiquetaram os ramos com presilhas de plástico.
Quando Pomahac chegou, já passava das cinco da manhã, e as quatro horas cruciais durante as quais o rosto poderia sobreviver fora do corpo já haviam quase expirado. Ele entrou correndo com o cooler azul. “Êee”, gritou uma enfermeira. “Como vai?”, perguntou Caterson.
“Estressado”, respondeu Pomahac. E foi espiar a cirurgia. “Isso é fantástico”, falou. Então se ajoelhou, abriu o cooler, começou a escavar o gelo e colocá-lo em uma lata que a enfermeira havia deixado ao lado. Tirou um pote tupperware pequeno e transparente com tampa azul, envolto em um saco plástico com fecho hermético e uma etiqueta branca onde se lia “Enxerto de pele: rosto”.
Pomahac olhou ao redor, tentando encontrar um lugar onde colocar o rosto. Uma enfermeira silenciosamente lhe passou um carrinho de aço inoxidável, onde ele apoiou o tupperware. Ele pegou uma tesoura e começou a cortar o saco. “Acho que podemos deixá-lo aqui”, falou enquanto trabalhava. Dobrou as bordas do saco para que permanecesse aberto e então destampou o tupperware, olhando seu interior. Havia outro saco plástico, submerso em água gelada, e através do plástico transparente Pomahac podia ver uma massa indistinta de tecido humano. Parou para evitar contaminar o conteúdo. Lembrou-se de que havia planejado conversar com Del Peterson, que passou a noite numa sala de espera do hospital, mas perguntou a Janis se ele poderia ir em seu lugar enquanto se paramentava.
Na sala de espera, Peterson cumprimentou Janis: “Oi.”
“Prazer em vê-lo, amigo”, disse Janis. Ele se sentou e esboçou como seriam as horas seguintes de cirurgia, enquanto Peterson, inclinando-se para a frente, ouvia sem interromper. “Acho que será importante você descansar um pouco. Você precisa se cuidar antes de cuidar de outra pessoa. Dallas sabe que você está aqui. Ele sabe que você o ama. Neste momento ele está em boas mãos, e se você fosse meu pai, eu diria: ‘Pai, vá para casa e descanse um pouco.’ Vamos fazer assim – mandarei um torpedo, se você tiver celular, mantendo-o informado.”
“Não temos esse serviço”, respondeu Peterson.
“Posso ligar para você”, concluiu Janis. “O bom e velho telefone funciona, certo?” Peterson concordou com a cabeça, e Janis perguntou: “Você comeu alguma coisa?”
“Bem, comi de manhã. Mas não preciso comer muito durante o dia. Honestamente, não preciso.”
“Deixa eu te mostrar tudo”, disse Caterson a Pomahac, que havia se aproximado da mesa de cirurgia. Os dois examinaram as artérias de Wiens, e Pomahac ficou surpreso ao ver que eram muito menores do que as do doador. A carótida do doador tinha o diâmetro de uma caneta marca-texto; a de Wiens, o de uma caneta Bic. “Tem pelo menos o dobro do tamanho”, concluiu Pomahac, ajeitando a lâmpada acima de sua cabeça para conseguir enxergar melhor.
Em geral, acredita-se que são necessárias quatro artérias para sustentar um rosto, mas Pomahac me disse: “Sem nenhuma condição de testar isso, achei que duas seriam suficientes e que isso simplificaria a recuperação. Tínhamos um plano B caso não desse certo.” A equipe poderia manter a testa que Janis reconstruíra no lugar, já que essa era a parte com mais chance de dar errado.
Os médicos decidiram atar o rosto à carótida esquerda de Wiens primeiro. Caterson virou-se para os dois médicos que mapeavam os nervos e disse: “Abortem isso.” Pomahac voltou ao tupperware e, cuidadosamente, tirou o transplante. Seus movimentos eram frios e calculados, como se estivesse segurando uma delicada obra de arte. O rosto tinha a mesma cor de suas luvas cirúrgicas: um bege quase do tom do látex, claro, e que reluzia na água gelada. Estava com a barba levemente por fazer, como se tivesse crescido no caminho. A pele, com aparência de borracha, sustentava quase 2 centímetros e meio de cartilagem, vasos, gordura e nervos – uma massa de tecido vermelha – por baixo dela. Esparramado nas mãos de Pomahac, o rosto era enorme: tinha quase a circunferência de uma calota.
Pomahac virou-se do carrinho para a mesa de cirurgia com cuidado, colocando o rosto do doador onde antes ficava o rosto do próprio Wiens. “Vai dar duas vezes o dele”, falou, objetivamente. Durante a dissecção, Pomahac havia cortado a pele bem além da risca do cabelo para poder transplantar também a parte do couro cabeludo. O cabelo do doador era um pouco mais claro que o de Wiens – e o doador tinha alguns fios brancos. No momento em que o novo rosto foi colocado, alguns cabelos de Wiens escaparam por baixo do transplante, como se ele usasse uma máscara meio grande, que não lhe servisse bem.
Quando os cirurgiões limparam o rosto, a pele do centro ficou franzida. “Pode nos arrumar um grampeador, por favor?”, gritou Pomahac. Era mais prudente deixar o transplante por cima da Cara de Melão por um tempo do que arriscar que o novo rosto escorregasse, o que impediria que a artéria fosse emendada no comprimento certo. Parte do tecido debaixo do rosto esparramou-se para o lado, mas os médicos o empurraram de volta para debaixo da pele.
“Vou grampear”, anunciou o médico.
Quando tudo estava no lugar, os cirurgiões prepararam-se para unir as duas artérias. Depois de horas sem receber sangue, a artéria facial do doador estava mole e esbranquiçada. Pomahac cortou o excesso de pele dela. Outros médicos cauterizaram vasos menores no pescoço de Wiens com um instrumento que parecia um ferro de solda. Ao tocar na pele, o instrumento fez um estalido, lançando fumaça e flashes de luz branco-azulada. Uma seringa plástica contendo uma solução salina era periodicamente usada para lavar o campo cirúrgico. “Esse é um rosto bonito”, disse um dos médicos enquanto trabalhavam.
Apesar de a carótida ser um vaso sanguíneo grande, é necessária uma microcirurgia delicada para suturá-la. Enfermeiras vieram com um potente microscópio cirúrgico da marca Zeiss – uma máquina grande com oculares suficientes para dois médicos e um braço articulado que sustentava as lentes. Com ele, os médicos podem costurar vasos do tamanho de uma dessas letrinhas estampadas em moedas de cinco centavos.
Olhando pelo microscópio, Pomahac puxou a artéria facial outra vez. Ela se esticou e se retraiu como uma faixa de borracha. Referindo-se à grossura do fio de sutura – 1/25 de milímetro –, ele pediu: “Náilon 8-0, por favor.” Uma enfermeira forneceu o fio, atado a uma agulha com formato de cílio. Pomahac segurou a agulha com a micropinça enquanto dois médicos aguardavam ao lado, prontos para ajudar.
“Vamos lá”, falou.
Pomahac passou a agulha entre as artérias e ao redor delas. Depois de alguns minutos, disse: “Quatro para dar sorte”, e fez algumas curvas finais. Ele não comia nada havia horas. “Estou ficando um pouco hipoglicêmico”, disse, e então sussurrou: “Bem, vamos ver. Torçamos pelo melhor.” Ele checou a sutura outra vez. “Qual a temperatura dele?”, indagou. “Porque a minha está em torno dos 40 graus.” Uma enfermeira riu.
O rosto assumiu diferentes expressões enquanto era empurrado para um lado e para o outro. A pele estava pálida, coberta de manchas de sangue seco. Curto e molhado, o cabelo parecia com o de alguém que acabara de sair da academia. Uma pálpebra estava aberta enquanto a outra permanecia dobrada sobre si mesma – era apenas uma abertura com os cílios virados para dentro. Não estava claro se um dia iriam funcionar. Pálpebras estão entre as partes do rosto mais delicadas de restaurar, mas como Wiens estava cego, isso não importaria muito. A boca caiu em uma expressão franzida.
Pomahac soltou um grampo, permitindo que o sangue fluísse para o tecido facial. Imediatamente, o sangue pingou dos cortes que ele e Eriksson haviam feito. “Ele está mantendo a pressão?”, quis saber Pomahac. A pressão sanguínea de Wiens subiu e desceu até atingir um nível quase letal. Olhando pelo microscópio, Pomahac clampeou a artéria e procurou os cortes. “Bem à nossa frente”, avisou. Era possível ouvir o eletrocauterizador queimar os pequenos ferimentos. Pá – um flash de luz. “Tudo bem”, disse ele. O grampo fora removido novamente. Ainda havia um pequeno sangramento, mas ele conseguiu controlá-lo. “Mais sucção”, pediu.
Enquanto os médicos trabalhavam, o rosto transplantado se deslocou, retorcendo os lábios sem cor em uma curva em forma de “s”, dando ao rosto uma expressão irônica, confusa. Os cirurgiões trabalhavam com rapidez, movendo-se para estancar o sangramento, e um leve toque de rubor começava a aparecer na pele do doador.
“Seus lábios meio que ficaram rosados”, disse Pomahac.
O rosto parecia oscilar entre o sono e a morte. Pomahac limpou-o enquanto observava outras áreas rosadas. “Mas não é rápido”, afirmou. “Bem, ele estava gelado por quatro horas, talvez seja assim mesmo. Vamos dar um tempo.” A animação crescia conforme áreas da pele começavam a ficar avermelhadas. “Isso é definitivamente rosado”, gritou um médico. Pomahac começou a separar os nervos e então parou. “Preciso mesmo ir ao banheiro”, avisou a Caterson. “Tudo bem?” Caterson concordou com a cabeça e o microscópio cirúrgico foi posto de lado.
“Eu ficaria preocupado se você tivesse dito não”, falou um médico, e as pessoas riram. O rosto, virado para os lados, parecia totalmente vivo. A testa se franziu de um jeito que jamais aconteceria em um rosto normal, mas o efeito não causou surpresa, talvez porque os filmes tenham tornado as fisionomias impossíveis algo familiar: o soco em câmera lenta, o rosto se distorcendo em ondulações exageradas, criadas por computador. Depois de serem limpos com pano úmido, os lábios pareciam ter sido lambidos, embora ainda não houvesse uma boca atada a eles. Um lado do rosto estava apoiado na mesa de cirurgia, formando na bochecha uma prega que lembrava uma covinha. Sem ninguém no comando, o rosto adquiria uma estranha feição de sonolência.
Horas de cirurgia ainda estavam por vir. Uma vez que o rosto estava conectado às duas carótidas comuns, os médicos tiraram os grampos da cabeça de Wiens, retiraram o novo rosto de cima da Cara de Melão e o colocaram sobre seu peito. O rosto permaneceu ali enquanto os médicos voltavam à tarefa de remover o enxerto de pele de Janis. “É como uma reconstrução ao contrário”, falou Janis, e outro médico brincou: “Sou um cirurgião desconstrutor.” Quando começaram a emparelhar os nervos, os médicos viraram o rosto para a frente e para trás: tiveram que colocá-lo sobre o alto da cabeça de Wiens, depois sobre seu peito, depois viraram o rosto do avesso, tudo isso para ver onde as conexões se alinhavam. “Tenho uma pergunta”, disse um médico. “O nervo mentoniano do outro lado está intacto?” Pomahac mal tinha tido tempo suficiente para pegá-lo. “Precisamos correr”, avisou. A cirurgia durou até a noite. Depois, Pomahac e Janis foram a um restaurante mexicano. Aliviados, exaustos, cheios de esperança quanto ao sucesso da cirurgia, pediram burritos e cerveja.
IV
Wiens sentiu o peso de seu novo rosto. Não havia sensibilidade nem dor – seus nervos ainda não funcionavam –, mas ele podia sentir o peso. Uma enfermeira o ajudou a colocar luvas estéreis para que ele pudesse tocar o rosto sem infectá-lo. O transplante estava excessivamente inchado: parecia que alguém o havia enchido de ar. Mesmo assim, os contornos causavam emoção. O rosto tinha lábios. Tinha um nariz – que Wiens notou ser menor que o dele. “Era incrível”, falou.
Mais tarde, ele explorou o rosto com a ponta dos dedos. “Conseguia sentir cílios, sobrancelhas e já tinha uma barba rala”, contou-me. Os cílios em particular o deixaram comovido. Havia uma delicadeza neles que parecia humana, impossível de simular. Ainda no hospital, dias depois da cirurgia, trouxeram-lhe uma bandeja com lasanha e ele percebeu que conseguia sentir o cheiro da comida. O sabor assumiu um aspecto tridimensional que havia desaparecido desde que ele perdera o nariz, mais de dois anos atrás. A rapidez da sensação o surpreendeu. “Sentir cheiro é maravilhoso”, disse a mim.
Naqueles primeiros dias, seu rosto estava inerte. A metade inferior balançava bobamente junto com a mandíbula e ele não conseguia mexer nenhum músculo nem sentir nada. Wiens telefonou para Natalie Chrzanowski, enfermeira do Parkland que havia se tornado sua grande amiga. “Mal dava para entendê-lo”, lembrou ela. “Dava para ouvir o quão inchado ele estava.” Um fisioterapeuta designado a cuidar de Wiens me disse que, por causa da cegueira, do discurso truncado e da falta de expressão “não era possível saber como ele estava emocionalmente”. Para ser compreendido, Wiens afastava os lábios inchados com os dedos quando falava.
O Brigham organizou uma conferência com Del Peterson para anunciar a cirurgia bem-sucedida. Wiens sabia que logo estaria diante das câmeras. Antes de viajar a Boston, ele havia concedido entrevistas. Não buscava holofotes, embora também não os rejeitasse. Para ele, contar a história era parte de sua responsabilidade como paciente. “Foi difícil”, revelou. Um veículo britânico agiu de forma agressiva, ligando para o celular de Wiens enquanto ele ainda estava no período pós-operatório, insistindo para ter acesso exclusivo. O programa Good Morning, America, da rede de televisão americana ABC, pediu para filmar o primeiro encontro de Wiens com a filha, e ele concordou.
Em maio, o inchaço havia diminuído e o rosto caíra, o que já era esperado e seria corrigido. Pedaços de pele formigavam conforme os nervos se regeneravam. No programa da ABC, Wiens usava óculos escuros, uma jaqueta de couro e sua boina. Havia deixado crescer uma barbicha. Câmeras o cercaram enquanto ele segurava a filha nos braços. À época, seu rosto conseguia registrar apenas sensações brutas, como um dedo fazendo pressão, mas, mesmo assim, ele disse: “É maravilhoso ser capaz de sentir um beijo depois de dois anos e meio sem sentir nada.”
Uma semana mais tarde, Wiens voltou para casa. Como lhe haviam avisado, o tratamento imunossupressor causava efeitos colaterais graves, incluindo enxaqueca e cansaço. “O cabelo estava caindo – seu próprio cabelo, não o do doador”, explicou-me Chrzanowski. “Ele ficou triste, teve alterações de humor – não ficava mal-humorado com alguém ou algo específico, mas simplesmente oscilava da felicidade à tristeza, da raiva ao ressentimento.”
De volta a Fort Worth, a avó de Wiens notou que ele estava menos animado. Sua voz também parecia mais baixa. “Ainda assim acho que ele lidou muito bem com o transplante do ponto de vista emocional”, ela falou. “Ele imediatamente reivindicou o rosto como seu. Perguntei se podia tocá-lo, e ele disse: ‘Sou eu, é parte de mim.’ Ele estava indo bem, mas fico imaginando se colocar o rosto físico de outra pessoa altera a sua personalidade. Não sei como era a outra pessoa. Poderia ser a pessoa mais alegre de New England. Mas Dallas é mais sóbrio hoje. Talvez parte disso se deva aos remédios. Antes, ele estava sem nenhuma medicação. Não sei o que é.”
Os receptores de transplante facial parecem se adaptar com rapidez. Isabelle Dinoire teve dificuldade no início, conforme revelou a Noëlle Châtelet: “Ter o interior da boca de outra pessoa é estranho – isso não pertencia a mim. Era terrível.” Mas é difícil saber se o rosto parecia estranho porque inicialmente não tinha sensibilidade – aquela estranheza que sentimos ao tocar a mão adormecida – ou porque o tecido não era dela. Quando conheci Dinoire, ela estava tão adaptada ao rosto que se perguntou se tinha mesmo feito essa afirmação a Châtelet. O transplante parecia ter envelhecido, talvez precipitadamente por causa do cigarro, mas era como uma parte expressiva de seu corpo.
Os médicos de Dinoire ficaram especialmente animados com a plasticidade de seu cérebro. Logo após chegar a Amiens, eles realizaram exames de ressonância magnética funcional. “A área do cérebro de Isabelle que controlava as funções motoras do seu rosto estava progressivamente sendo usada para o funcionamento das mãos”, revelou-me Benoît Lengelé, um cirurgião belga que trabalha com a equipe francesa. “Mas vimos que esse dano cerebral estava sendo revertido progressivamente depois do transplante facial e seu funcionamento cerebral normal foi sendo restaurado.”
Parece que ganhar um novo rosto é menos estressante do ponto de vista psicológico do que receber uma nova mão – e que transplantar as duas mãos é menos estressante do que transplantar uma só. Talvez isso aconteça porque o rosto recupera a sensibilidade mais rapidamente que as mãos. Demorou apenas seis meses para que Dinoire sentisse a temperatura e menos de um ano para conseguir fechar os lábios. Max Dubernard suspeita que o fato de passarmos muito tempo olhando para nossas mãos também prejudica a aceitação. A menos que o receptor de um transplante facial passe o tempo todo diante do espelho, o tecido doado fica a maior parte do tempo fora de vista. E, diferentemente de um transplante bilateral, o unilateral traz questões de simetria, de comparação entre os dois apêndices. De todo modo, essa é a teoria de Dubernard. “Posso estar errado”, assumiu, mas agora ele se recusa a fazer transplantes unilaterais de mão.
No final do verão, visitei Wiens na casa de seus avós, em Fort Worth: uma casa modesta, de tijolos, pintada de creme. Quando cheguei, um fotógrafo de uma publicação cristã estava lá para fotografar Wiens e Scarlette tomando chá no jardim dos fundos. Wiens parecia cansado, mas havia se barbeado com um barbeador elétrico e estava sentado à mesa enquanto a filha brincava em volta dele. Depois que o fotógrafo saiu, Wiens apontou para a região abaixo do olho direito e disse: “Tenho sensibilidade aqui em volta.” Então apontou o lado esquerdo do rosto. “O fato de eu sentir algo nesta área é incrível.” Havia sol, e ele me contou que podia senti-lo. Com o apoio de uma bengala, entrou em casa; o tratamento imunossupressor aumenta o risco de melanoma. “Não tenho mais nenhuma reação aos medicamentos”, disse. “Não tenho mais enxaquecas.” Andou até uma mesa próxima à cama, ligou o computador, pegou um refrigerante na geladeira e se sentou.
Sentei-me na cama e conversamos. Quando lhe perguntei sobre o episódio que o tornou uma pessoa fria aos 14 anos, ele respondeu: “Só há duas pessoas que sabem disso, e provavelmente vai continuar assim – só dois dos meus melhores amigos. Não é o tipo de coisa que a gente goste de falar. Tenho visto muita morte, matança e dor.” Ele me contou que morou em uma região do Texas chamada Four Corners. “Só há gangues e mestiços, e o melhor que você tem a fazer é trancar sua porta e torcer para não levar um tiro”, contou. “Eu carregava duas nove” – armas de 9 milímetros – “comigo o tempo todo.”
Scarlette entrou correndo para presenteá-lo com um desenho feito na escolinha. Depois que ela saiu, Wiens se voltou para o computador. Ele usa um programa de leitura de texto para navegar na internet e me mostrou seu jogo favorito, desenvolvido para deficientes visuais. Está estabelecendo relação com outros jogadores; às vezes, quando se sente deprimido, retira-se para a realidade virtual. Mas ele também vê o computador como uma oportunidade. Está tentando desenvolver seu próprio jogo; revelou-me que está quase começando a codificá-lo.
Quando Wiens está de bom humor, vai atrás de novos interesses: meditação, língua japonesa, braile. Dá palestras em igrejas. Espera relacionar-se com a família do doador, que decidiu permanecer anônima. Um membro do Lions Club levantou dinheiro para um cão-guia, e recentemente ele fez sua primeira viagem sozinho. Foi até Michigan assistir a um workshop sobre o uso de bengala para deficientes visuais. “Não tive infância”, explicou-me, mas o transplante lhe deu uma chance de passar novamente pelas primeiras experiências da infância: o primeiro espirro, o primeiro beijo, as primeiras lágrimas.
Ainda assim, quanto mais Wiens se aprimora, mais tem como desafio conquistar sua própria independência. O tratamento imunossupressor é pago pelo seguro – o Brigham conseguiu obter cobertura para todos os receptores de transplante facial –, mas será difícil conseguir emprego. “Dallas não vem de uma família abastada, de magnatas do Texas”, disse-me seu irmão David. “Ele passou por um divórcio terrível. Mora com avós aposentados que quase faliram cuidando dele, e depois que eles morrerem, Wiens não tem nenhuma alternativa em vista para cuidar de si mesmo ou para sustentar a filha. Charla Nash resiste para não receber nenhum dinheiro pelo que passou. Jim Maki mora em um abrigo. Sim, todos eles têm uma enorme rede de pessoas que os amam e cuidam deles. Entretanto, todos têm dificuldades financeiras.” Wiens fez um site pessoal com uma página para doações, mas se sente mal em pedir ajuda e as contribuições têm sido escassas.
No meio de setembro, ele voltou ao Brigham para fazer um check-up e descobriu que vai conseguir olhos protéticos. Até então, suas órbitas oculares estavam preenchidas com conchas de plástico chamadas de espaçador e suas pálpebras permaneciam fechadas. Um especialista, Matthew Jackson, chegou com as próteses. Os olhos de Wiens eram castanhos, mas ele decidiu trocá-los por azuis.
Jackson fez os olhos pessoalmente. Eram objetos pequenos e lindos: as íris pintadas à mão pareciam naturais, com veios amarelos e verdes, e eram laminados com acrílico transparente. As pálpebras de Wiens não eram funcionais, então Jackson criou uma ponte sobre as íris para mantê-las abertas. O resultado é um olhar fixo. Quando Jackson colocou um dos olhos, sentiu um leve espasmo perto da sobrancelha. “Aperte o rosto”, pediu. Wiens esticou os lábios em um largo sorriso – algo que não conseguia fazer antes. “Olhe para isso”, falou Jackson. “Agora ele consegue mexer parte do sétimo nervo.”
No final do outono, houve outras melhoras. Wiens falava com mais clareza. “Posso pronunciar letras que não conseguia antes, como B e P”, contou-me. “Tenho feito menos terapia do que deveria, mas ontem tinha saído com minha avó e Scarlette e tomei um chá gelado sem açúcar em um fast-food. Estava bebendo da maneira que costumo fazer, segurando o canudo na boca com a ajuda da língua. Sentado no carro, sem querer, suguei o canudinho só com os lábios. Nem percebi da primeira vez, então, na segunda, pensei: Nossa, fiz mesmo isso?”
Ninguém sabe quanto tempo o enxerto facial pode durar; o mais velho tem apenas seis anos. Já houve dezenove transplantes de vários tipos e dois dos receptores morreram: um por ter abandonado o tratamento imunossupressor e o outro, de complicações causadas por uma infecção. Quase um ano após a cirurgia, Wiens é o único receptor que não teve um episódio de rejeição grave. Neste inverno, sua avó percebeu uma vermelhidão em sua testa e correu com ele ao hospital. Logo depois, ele foi a Boston. O enxerto estava bem – o problema era acne –, mas quando ele estava no Brigham, os cirurgiões removeram um excesso de pele embaixo do queixo, para que o transplante se ajustasse melhor. “Dallas recebeu um pequeno lifting facial”, falou Pomahac.
Pouco antes dessa cirurgia, E. J. Caterson passou para visitá-lo. Ele havia conhecido o residente do Parkland que havia tirado Wiens do coma e provado que ele não estava em morte cerebral. Como surpresa, ligou para o jovem médico e passou o telefone para Wiens.
“Dallas começou a falar sobre como estava feliz por falar com ele. Disse: ‘Quero agradecer-lhe por ter salvado minha vida’”, recordou-se Caterson. “Ele falava devagar ao telefone, e vi uma expressão em seu rosto que era profunda e cheia de significado. No dia seguinte, corri até o avô de Dallas e ele falou: ‘Sabe, falar com aquele médico realmente o fez ter vontade de chorar.’ Então, de repente, me ocorreu: eu havia testemunhado uma expressão involuntária de emoção – o tipo que temos o tempo todo. Foi de fato uma demonstração de integração cortical com algo que não é dele. Apenas conceitualmente, isso é impressionante. É como constatar: ‘O fluxo sanguíneo está ótimo’ e ‘Colocamos os ossos no lugar certo’. Mas agora estamos falando sobre um cara que usa o rosto como veículo emocional.”
Pomahac imagina se Wiens algum dia terá mais de 70% da funcionalidade no lado esquerdo do rosto. Mas Wiens está mais otimista. Está convencido de que um dia seu olho que sobrou, aquele que os cirurgiões do Parkland preservaram, será restaurado. Enquanto isso, ele aguarda o implante dentário. A reconstrução pode ser contínua. Ele trabalha em um romance de ficção inspirado em sua experiência, a que deu o título de Neverending [Sem Fim]. Para se inspirar, tem ouvido livros de ficção no computador. Em momentos de insônia, é assim que ele se ocupa.
Wiens sonha com o ferimento de vez em quando, em ser sugado pelo abismo infernal. “Vejo a mim mesmo naquela escuridão, gritando”, contou-me. “Eu ainda poderia estar lá, mas não estou.” Em novembro, liguei para ele, e ele me disse que na noite anterior havia tido um sonho incomum: viu-se como estava antes da reconstrução de Janis, a pele lisa, sem traços em lugar do rosto. A experiência foi nostálgica, como se ele tivesse olhado a infância ou um passado que deixara para trás há muito tempo.
O rosto que ele geralmente encontra nos sonhos é uma versão do transplante. Wiens não sabe como é sua aparência, mas seu inconsciente vem lutando para visualizá-la. “Nunca vi o rosto claramente, o que vejo é mais como um perfil”, revelou-me com a voz baixa e suave ao telefone. “É meio nebuloso, é difícil dizer, e mesmo que o veja claramente, não me lembro com nitidez quando acordo. Mas é prazeroso.” Ele fez uma pausa e acrescentou: “Principalmente porque estou de bem com a vida.”
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