Borges, amante da literatura escandinava que se atribuía ascendência viking, disse não acreditar que da felicidade brotasse obra literária FOTO: FERDINANDO SCIANNA_MAGNUN
Três encontros com Borges
A coincidência deflagrada por uma carta do avô do escritor argentino, um coronel que ordenara o fuzilamento de um desertor no Paraná
Pedro Corrêa do Lago | Edição 14, Novembro 2007
Em dezembro de 1977, eu tinha 19 anos e uma imensa admiração por Jorge Luis Borges. Nos anos anteriores, havia lido todos os livros dele que pudera encontrar. Morava no Rio de Janeiro, mas parte de minha adolescência se passara na Europa. No colégio francês, eu compartilhava o culto a Borges com vários amigos, que eram também seus leitores vorazes e dariam tudo para conhecer aquele que víamos como mais que um grande escritor, quase um guru. O entusiasmo por Borges, na França, começara quase clandestinamente, na década de 40 (uma pequena confraria com ares de sociedade secreta, liderada por Roger Caillois), e somente nos anos 60 sua fama ampliou-se, para se tornar universal. Borges já era um mito em 1972, quando o li pela primeira vez. Em nossa fantasia, e na imensa curiosidade de jovens leitores, sua obra mágica e até mesmo sua cegueira o alçavam a uma posição de sábio.
Não podíamos imaginar o quão solitário Borges vivia desde a morte da mãe, em 1975, e o quanto ele se tornou, a partir de então, disponível para quem o procurasse. Eu estava de férias da universidade e pretendia passar algumas semanas em Montevidéu, onde meu pai trabalhava, na Embaixada do Brasil. O diretor de um jornal carioca, pai de uma amiga, disse-me que publicaria qualquer entrevista que eu obtivesse com Borges em Buenos Aires. Viajei na semana seguinte para o Uruguai determinado a obtê-la, mas sem esperar que fosse fácil.
Telefonei de Montevidéu ao escritor, então com 78 anos, que veio logo atender. Ouviu meu breve e tímido pedido e prontamente falou para ir à sua casa às onze da manhã de quarta-feira, 9 de janeiro de 1978. Peguei a ponte aérea na véspera e cheguei um pouco adiantado ao 6º andar do número 994, da Calle Maipú. Ansioso, esperei alguns momentos diante da porta sobre a qual uma plaqueta de bronze indicava simplesmente: “Borges”. Abriu-me sua empregada, uma mulher gorda, de meia-idade, que vivia lá com a filha adolescente. Soube depois que se chamava Fanny e serviu a família por 35 anos. Dirigiu-me logo ao sofá verde da única sala do apartamento de dois quartos, que também servia de biblioteca.
O ambiente era típico das velhas casas portenhas: cadeiras e cômodas coloniais, velhas gravuras nas paredes, poucos objetos de prata pelos móveis. O cheiro de poeira mal espanada misturava-se ao de desinfetante barato de eucalipto. As capas brancas das poltronas pareciam as mesmas há décadas, lavadas e relavadas. Enquanto Borges não chegava, levantei-me para ler as lombadas dos livros. Sua biblioteca, relativamente pequena, não me surpreendeu. Nela estavam os autores que Borges admirava e citava com freqüência: Laforgue, Stevenson, Whitman, Chesterton, Poe, Burton – nas traduções de Camões e das 1001 Noites –, Spinoza, Cervantes e poucos outros. Surpreendente foi encontrar apenas aqueles escritores previsíveis, cuja diversidade costumava, no entanto, maravilhar a mim e a meus amigos como substrato de uma leitura enciclopédica e prova inequívoca de uma erudição e sabedoria universais.
Naturalmente, Borges – apontado por Michel Foucault como “leitor por excelência” – fora, antes de ficar cego, em 1955, diretor de biblioteca pública em Buenos Aires, e freqüentara inúmeras outras estantes tão ou mais ricas. Mas não deixava de ser curioso ver sua biblioteca pessoal formada exclusivamente pelos livros que mais citava, como se mantivesse em sua posse apenas aqueles que, talvez, soubesse quase de cor. Em 1970, ele escreveu: “Acredito nunca ter saído da biblioteca de meu pai”. Após tê-la herdado, em 1938, é provável que não tivesse acrescentado muitos títulos. Suas bibliotecas imaginárias, muitas vezes multiplicadas, seriam mais importantes.
Borges chegou alguns minutos depois, muito elegante, de paletó claro, quase branco, calça bege e bengala. Por pouco, não sentou num gato branco de pêlos longos (mais tarde soube chamar-se Beppo, em homenagem a Byron) que dormia na poltrona para a qual se dirigia. Avisei-o de sua presença e sentou-se então no sofá à minha esquerda. Observei seu rosto mal barbeado e escutei pela primeira vez a voz monocórdia, quase feminina. Liguei o gravador e comecei a ouvi-lo, muito mais sobre os temas que ele mesmo decidiu privilegiar que sobre as perguntas que eu havia preparado. Foi como se, junto com o gravador, eu tivesse também apertado um botão em Borges que o ligava a uma fala pré-programada.
Pensara em concentrar a entrevista em questões relativas ao Brasil, presente de forma oblíqua em sua vida e obra. Repetiu-me o que vim a ler mais tarde em muitas outras entrevistas concedidas a brasileiros: lera e admirava Os Sertões, de Euclides da Cunha, e fora em Santana do Livramento que vira pela primeira vez matar um homem. Perguntei-lhe porque em seus contos as más notícias, freqüentemente, vinham do Brasil. Não adiantou: ele só falou do que queria.
Disse-me que a felicidade não havia produzido nenhuma obra literária e que a literatura vinha do sofrimento. Evocou sua paixão, reacendida naquele momento, pela literatura escandinava antiga, dizendo-me, inclusive, descender dos vikings pelo lado materno. Recitou-me em islandês medieval um texto que, segundo ele, eu deveria poder identificar facilmente apenas pelo ritmo. Não consegui. Borges o declamou uma segunda vez. Disse-lhe que continuava na mesma. Revelou-me então tratar-se do Pai Nosso, que voltou a recitar para confirmar o quão fácil era reconhecê-lo. Foi mais simples concordar. Pediu-me que desse muita ênfase à sua opinião de que uma eventual guerra entre a Argentina e o Chile pelo Canal de Beagle – que naquele momento parecia iminente – seria “uma insensatez e uma iniqüidade”. Falou-me de seus antepassados, de sua avó inglesa e de vários assuntos que tinha engatilhado para soltá-los aos entrevistadores estrangeiros. Após uma hora e meia de conversa, como sinal de que havia dito o suficiente, levantou-se e despediu-se. Acompanhou-me até a porta, ainda insistindo na importância de publicar sua opinião sobre a possível guerra.
Deixei a sua casa sem acreditar ter realmente conhecido o autor que mais admirava. Talvez por ter encontrado somente um olhar azul vazio e um discurso automático. Talvez por minha própria dificuldade em entendê-lo em carne e osso: Borges me parecia mais concreto imaginado que real. Os aspectos prosaicos de sua vida limitada de homem velho e cego – que se dizia apenas à espera da morte – tinham acabado de desfazer em mim a ilusão do ser superior onisciente que só a inexperiência da juventude podia ter concebido. Mas era assim que eu sempre quisera ver Borges. Acabei nunca publicando a entrevista.
Para ganhar tempo, deixei de almoçar e, ansioso por satisfazer também a minha paixão de colecionador de documentos manuscritos, fui diretamente do apartamento de Borges à Casa Pardo, perto da praça San Telmo.
A tradicional casa antiquária pertencia ao mesmo dono havia cinqüenta anos, um velhinho gordo e baixo, invariavelmente vestido de terno escuro. Ele tinha sempre à disposição de certos clientes uma enorme pilha de papéis antigos – das mais diversas origens, sobretudo argentinos, pelos quais pedia preços modestos – e que me deixava remexer cada vez que o visitava, o que fazia com freqüência.
Passei várias horas lá, animado com muitas descobertas, à medida que examinava a pilha. Encontrei cartas de José Bonaparte – irmão de Napoleão – e da grande atriz italiana Eleonora Duse. Entre diversos outros papéis que o senhor Pardo me vendeu barato naquela tarde, havia uma carta assinada pelo avô de Borges, o coronel Francisco Borges. Era um ofício rotineiro, datado de 25 de janeiro de 1871, comunicando ao ministro da Guerra ter sido passado pelas armas o desertor Silvano Acosta, encontrado por suas tropas no campo inimigo. Pela manhã, Borges me falara justamente desse avô militar.
No táxi, a caminho de casa, por volta das cinco da tarde, pareceu-me óbvio que quem deveria ser agora o dono dessa carta era Borges, e não eu. Ou seja, achei um pretexto para voltar ao seu apartamento e fazer-lhe pessoalmente a entrega. Cheguei lá às 5h30. Abriu-me novamente a porta a empregada, um pouco surpresa de voltar a me ver. Levou-me para a sala, onde Borges recebia uma das tantas intelectuais argentinas de sua geração, amiga de muitas décadas. Algumas dessas senhoras proviam-lhe os olhos que Borges perdera, e passavam longas tardes lendo-lhe o que desejava ouvir. Quase todas tinham ascendentes britânicos ou foram profundamente marcadas pela cultura e os hábitos da Inglaterra. Esta era típica: alta, cabelos negros, muito magra, aristocrática, com o bronzeado profundo de uma vida toda entre a cidade e suas imensas fazendas. Era também escritora: publicara nos anos 50 uma peça em inglês, Green Wings, e um romance em espanhol.
Chamava-se Susana Bombal, e estava fazendo a Borges uma visita que me pareceu habitual, na hora do chá. Expliquei-lhes o motivo de minha volta e mostrei a carta à velha senhora, que começou a lê-la para Borges. O escritor a interrompeu antes do final e nos disse que a carta era datada de janeiro de 1871, e fora escrita no Paraná. Susana não disfarçou a surpresa, confirmou o que Borges adivinhara – ou sempre soubera – e tornou a ler a carta. Borges revelou que sua avó inglesa, Frances Haslam, que enviuvara muito cedo do coronel Borges e sobrevivera a ele por mais de 50 anos, costumava lhe contar desde a infância que seu avô, pouco antes de morrer, aos 38 anos, mandara fuzilar um desertor, mas nem ela nem Borges jamais souberam o seu nome. Bastante emocionado, segurando agora a carta que não podia ler, repetiu várias vezes: “Silvano Acosta, Silvano Acosta. Siempre quise saber su nombre. Que lindo tema! Eh! Voy escribir un cuento o una milonga de Silvano Acosta”.
Também fiquei emocionado. Só pretendia fazer um gesto, nunca poderia imaginar que o conteúdo da carta, que me pareceu a princípio bastante trivial, lhe fosse familiar e o tocasse tão profundamente. Mexer involuntariamente com a lendária memória de Borges, e talvez contribuir – ainda que minimamente – em algo que viria a criar, pareceu-me de tal forma irreal que fiquei distraído por alguns momentos.
Borges trouxe-me de volta à terra ao convidar-me para sentar, enquanto Susana Bombal “consertava” as dobras da carta um pouco frágeis, ou já rasgadas, com uma fita durex que fatalmente iria estragá-la de vez dentro de alguns anos. Não disse nada: a carta era dele. Voltamos a conversar sobre os assuntos mais diversos. Lembro-me de ouvi-lo contar que levou Jules Romains aos bairros pobres de Buenos Aires. Confidenciou-me também que, nos anos 30, freqüentou prostíbulos na periferia da capital com Pierre Drieu la Rochelle, outro grande escritor francês que ainda não tivera oportunidade de tornar-se colaboracionista. “Ahora creo que lo puedo decir. Pasó tanto tiempo“, disse Borges.
Saí depois de quase uma hora de conversa, dominada pela velha escritora anglo-argentina. No meio tempo, ela aproveitara para prometer-me exemplares com dedicatória de seus dois livros, para os quais Borges havia escrito prefácios – favor que, antes e depois dela, várias outras literatas também haviam pedido ao amigo -, e que “Georgie”, como todas o chamavam desde a juventude, nunca recusava.
Deixei novamente o apartamento da Calle Maipú e voltei à casa onde me hospedava, alugada por um primo diplomata que servia em Buenos Aires. Ele convidou-me para jantar num restaurante do bairro que freqüentava habitualmente. Fomos a pé, e fui contando-lhe no caminho aquele dia totalmente sob o signo de Borges. Ao chegar ao restaurante, foi difícil acreditar, mas lá estava novamente o escritor, jantando em companhia de outra senhora. Sentamos numa mesa próxima e Borges levantou-se para ir embora enquanto comíamos. Não resisti e fui lhe falar, achando que talvez também ele achasse graça na coincidência de nosso terceiro encontro, naquele mesmo dia. Reconheceu-me pela voz e pelo sotaque, cumprimentou-me com a cabeça e disse: “Aquela carta que você me deu, aquela carta… é sua, não é mesmo?” A sua observação – à queima-roupa – desconcertou-me. Disse-lhe então: “Não, agora é sua, dei-a de presente”. Borges continuou: “No, quiero decir, es de su puño y letra. Verdad?” (Quero dizer, é de sua autoria, não?).
Fiquei perplexo. Como poderia ele imaginar que eu tivesse como forjar uma carta sobre um assunto que fazia parte de suas lembranças mais íntimas, com todos os dados fatuais coincidentes? Respondi-lhe então, após uma pequena pausa, meio balbuciante: “Pero… usted duda de su autenticidad?” (Mas… o senhor duvida de sua autenticidade?). Vejo agora que era exatamente isso o que Borges esperava ouvir. Abriu um largo sorriso, segurou-me a mão para despedir-se, e disse: “Es una broma, naturalmente” (É claro que é só uma brincadeira). E seguiu em direção à porta, levado pela amiga.
Nos anos seguintes, estive várias outras vezes com Borges, que sempre lembrava a carta. Continuava disponível, quase sempre sozinho em casa quando o procurava. Acompanhei-o em caminhadas, guiou-me por Buenos Aires, escrevi sobre seu ditado, visitei-o em seu apartamento poucos dias antes de sua partida para morrer em Genebra, em 1986. De todos os momentos que passei em sua companhia, o curto diálogo na porta do restaurante talvez tenha sido aquele em que Borges foi mais borgeano.
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