Três poemas
Paulo Henriques Britto | Edição 3, Dezembro 2006
UMA DOENÇA
Há doenças piores que as doenças.
– Fernando Pessoa
I
Há doenças que são mais que doenças,
que não apenas são à vida infensas
como oferecem algumas recompensas
que tornam mais urgente e mais difícil
o já por vezes inviável ofício
de habitar o íngreme edifício
do não-se-estar-conforme-se-devia
e administrar a frágil fantasia
de que se é o que ninguém seria
se não tivesse (insistentemente)
de convencer-se a si (e a toda gente)
que não se está (mesmo estando) doente.
II
O mundo está fora de esquadro.
Na tênue moldura da mente
as coisas não cabem direito.
A consciência oscila um pouco,
como uma cristaleira em falso.
Em torno de tudo há uma aura
que é claramente postiça.
O mundo precisa de um calço,
fina fatia de cortiça.
III
Nenhuma posição é natural.
Qualquer ordenação de pé e mão
e tronco é tão-somente parcial
e momentânea, uma constelação
tão arbitrária e pouco funcional
quanto a Ursa Maior ou o Escorpião.
Nenhuma é estritamente indispensável.
Nenhuma é realmente lenitiva.
Nenhuma é propriamente confortável.
Apenas uma é definitiva.
GAZEL
Também a verdade nos cansa,
não liberta nem salva: cansa.
É o cansaço dos que cansaram
da obrigação da esperança.
Em casos assim, a razão –
essa almanjarra de faiança
numa beira de aparador
à mercê de mão de criança –
precisa ser bem resguardada
lá onde a vista não alcança.
E coloque-se em seu lugar
coisa mais dura, de sustança,
capaz de melhor resistir
à vida e sua intemperança.
NOTURNO COM AR CONDICIONADO
O tédio infinito dos hotéis
de três estrelas, tardes que se estendem
em direção a noites povoadas
por dois ou três garçons indevassáveis
num bar onde nenhum turista húngaro
cochila diante da tevê autista
em que uma locutora silenciosa
exibe a três poltronas de pelúcia
duas fileiras de dentes de carnívora.