ILUSTRAÇÃO: JAGUAR
Trinta anos de bode
Enfim toda a verdade! Revelamos o verdadeiro motivo da rixa entre Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, num cinema na Cidade do México, em 1976! Você vai ficar por dentro! Reportagem exclusiva!
Ivan Lessa | Edição 5, Fevereiro 2007
A primeira notícia sobre um possível degelo nas relações dos dois consagrados mestres da moderna ficção em qualquer língua, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, foi publicada no início de janeiro no prestigioso jornal The Guardian, no Reino Unido, oriunda (possivelmente) do laptop do correspondente Giles Tremlett, em Madri. A reportagem se referia sobretudo à publicação, em 2007, de uma edição especial comemorativa do 40º aniversário de publicação do consagrado romance Cem Anos de Solidão, de autoria do colombiano García Márquez, tido como uma das obras-primas do século XX e leitura obrigatória para todos interessados em arte, cultura e o realismo mágico, do qual, conforme sabemos, o cubano Alejo Carpentier é renomado precursor.
O legítimo homme du monde peruano Mario Vargas Llosa, autor também do notável A festa do bode, publicado em 2000, outro volume seminal de nos jours, e quaisquer outros jours também, embora distante do realismo mágico, mas chegado à nossa cultura (seu livro sobre Canudos, A Guerra do Fim do Mundo, de 1981, é um clássico, embora poucos tenham sabido ler e entender, tal como se deu da mesma forma, o que muito explica, com o evento histórico), está encarregado da apresentação, apesar de trinta anos de gélida guerra entre os dois mestres do idioma de Cervantes – e de Shakespeare e de Molière e de Gil Vicente e outros tantos, já que passaram por traduções hoje tidas como exemplares, inclusive em nosso Brasil.
Argumenta-se, nos meios literários, que esta introdução nada mais é do que uma adaptação de um estudo crítico assinado pelo talentoso peruano, em 1971, e que levou o título de A História de um Deicídio. Vargas Llosa vem se recusando à republicação do tomo desde o histórico desentendimento, ou rixa e ainda rusga, se preferirem, entre os dois magníficos ficcionistas, num pequeno cinema mexicano, em 1976.
Justiça seja feita a um e outro: nunca tocaram nos detalhes daquilo que, ao que parece, começou com palavrório, tão comum naqueles que vivem da palavra escrita e falada, mas que chegou às vias – e como! – de fato. Tamanha discrição só serviu para alimentar a curiosidade natural, e malsã também, sejamos honestos por uma vez na vida, daqueles que se interessam pela literatura da América hispânica e ainda por suas querelas, num nível mais baixo, mas nem por isso menos humano, all too human conforme sentenciou o Bardo Imortal. O fato de que na política os dois aspirantes ao Parnaso assumam posições radicalmente – mas radicalmente mesmo – diferentes sempre constou da equação que os mais corajosos tentaram explicitar e resolver.
Detalhes?
García Márquez já publicou o primeiro volume de suas memórias. Consta, segundo relatos vindos daqueles que fazem parte de sua roda, igreja e catedral (onde se deve conversar, segundo Vargas Llosa), que Gabo, como é chamado na intimidade de seu lar e de outros lares também, quer a todo custo evitar entrar de novo “naquele cineminha mexicano” de 1976, e que ainda está lá para, se quisesse, contar a história, que nós aqui, mediante diversas viagens e entrevistas (trabalhamos mais que Truman Capote em A Sangue Frio, embora munidos de gravador digital mais que portátil), conseguimos reunir e deixar a última palavra com a pessoa mais importante dessa discórdia toda: você, leitor!
Agora, leia, digira os dados e chegue à sua própria conclusão, que é a única que conta. Obra mais aberta não há nem poderá haver. Depois, nos diga – e este é o teste – quem você acha que está com a razão: Gabo ou Mario?
O local
Trata-se de um pequeno cinema, de seus duzentos lugares, que já conheceu melhores dias. Hoje em dia, limita-se a passar cópias desgastadas de velhos filmes mexicanos e cubanos maltratados pelo tempo e por curadores descuidados. Presentes ídolos que não estão mais entre nós, e dos quais poucos jovens ouviram falar: Maria Antonieta Pons, Ninon Sevilla, Tito Junco. Sempre em números especiais, Pedro Vargas e Toña la Negra. Agustín Lara, o grande Agustín, também comparece! Vez por outra, quase que por distração, levam algo com Pedro Armendáriz e Maria Félix, dirigidos por Emílio Fernandez (lembram-se de The Wild Bunch, que no Brasil chamou Meu ódio será tua herança?) e fotografados pelo genial, assim o dizem, Gabriel Figueroa.
Muitos anos antes, em 1976, já que estamos sendo precisos com evento beirando o histórico, diante de um sol pastoso de julho, Gabo e Mario, depois de tomar umas tequillas e chupar umas goiabinhas, ambos apreciadores ferrenhos da Sétima Arte, passaram diante do Cine Cortés, ali mesmo na Calle de los Conquistadores, naquele bairro afastado de Ciudad de Mejico, onde tinham a certeza de não serem reconhecidos por seus admiradores. Sim, meus amigos, vivíamos numa época em que não só as modelos anoréxicas e os astros parrudos de Hollywood faziam sucesso nas paragens que os tolos gostam de chamar de “O Terceiro Mundo”. Gabo e Mario eram o orgulho do Continente que dera ao mundo Bolívar e O’Higgins, para citar apenas dois ídolos e heróis. A pena (o computador ainda não tinha sido inventado) também era uma espada e a espada… uma pena? Não creio. Alegres e extrovertidos, os dois amigos notaram que estavam exibindo Casablanca, produção da Warner de 1942 inexplicavelmente tornada obra-prima pelo medíocre, mas prolífero, Michael Curtiz, em condições normais um diretor rotineiro, que, não obstante, nos legou inegáveis chef-d’oeuvres, tais como The Sea Hawk, 1940, e The Adventures of Robin Hood, feito dois anos antes. Um mistério que ambos, Gabo e Mario, não sabiam – talvez ainda não saibam! – explicar. Pois entraram os dois e – atenção, muita atenção – se sentaram no meio da quinta fila.
No que passamos então a nossos depoimentos exclusivos.
Depoimento de Jesús Maria Iberrurtí, ex-lanterninha, 81 anos, cego de um olho.
“Sim, senhor. Lembro-me como se fosse hoje. Os dois cavalheiros, quarentões ambos, não paravam de fumar, e eram só charutos finos, o que é proibido, pelas regras do estabelecimento, mas fazíamos vista grossa diante de clientes mais finos. Eu já vira o tal do filme umas vinte vezes e, desculpe-me, eu o odiava. Baixo sentimentalismo, canções estrangeiras, péssima dublagem em espanhol, atuações que não poderiam beijar os pés de uma Sarita Montiel ou Luis Mariano. Entraram com o filme já começado e uns vinte minutos depois estavam aos socos e pontapés. Com o auxílio do guarda (Pablo de Tal. Foi impossível localizá-lo. Consta que teria morrido afogado, tentando atravessar a nado a fronteira com os Estados Unidos.), que fui catar no café Los Libertadores, conseguimos expulsá-los. Nunca ouvi tanto palavrão na minha vida. Nem parece que eram homens de berço. Não sei qual era o pomo da discórdia, mas um deles, o bigodudo, mais baixo e entroncado, não cessava de se referir à conduta sexual das senhoras, tanto a esposa quanto a progenitora do outro, o mais alto e de terno branco, camisa listrada azul, mas sem gravata. Essas pessoas dificultavam muito meu trabalho.”
Depoimento de Mérida Pinión, academicista, 77 anos.
“Parecia um sonho! Dois dos maiores escritores do planeta brigando na minha frente. Nem consegui prestar atenção no filme do Cary Grant. Tenho a certeza que foi por minha causa. Mario já se voltara duas vezes (só mais tarde, muito mais tarde, ficamos íntimos, e como! Qui, qui, qui!), eu estava três filas atrás dos dois, e perguntara se a fumaça estava incomodando. Fiz-me de desentendida, que não sou de falar ou ir com qualquer um, mesmo que se chame Vargas Llosa ou García Márquez. Como resposta, ouvi um palavrão. Gabor, hoje eu sei que foi Gabor, tomou-lhe satisfação e, não a tendo, deu-lhe uma – com o perdão da má palavra – porrada na cara. Daí saí correndo e mais não vi. Mais tarde, em casa de amiga, escrevi um conto a respeito. Foi incrível! Publicaram no Brasil dois meses depois.”
Depoimento de um coronel ao qual ninguém escreve, 107 anos presumíveis.
“Hein? O quê? Fale mais alto. Minha memória já não é mais o que era. A crise de Suez, disse você? Pois não. Foi lá pelos idos de 1962 e o presidente americano, Harvey de Tal, se não me engano, quase bombardeia de forma atômica Costa Rica. Ou Honduras. Uma dessas calouras fuleiras que insistem em nos imitar. Era um tempo irado, cheio de ventos, mas eu vivia razoavelmente com os cobres de minha pensão. Dava para servir um café às visitas, coisa que hoje, como está vendo, me é difícil. Naquela época era muito perigoso falar em política, principalmente nas alfaiatarias. Não me pergunte por quê. Somos estranhos como as éguas que, por motivo algum, relincham no meio da noite. Quando sair sua revistinha, promete me mandar um exemplar?”
Depoimento de Juan ******, 68 anos, autor não-publicado.
“Prefiro o anonimato. Prefiro também a prosa de Carlos Fuentes à dos dois paspalhões que brigavam por uma guimba de charuto. Em Fuentes, uma sentença começa com a simplicidade de um ovo. Depois, bica sua existência até adquirir asas, parte meio sem jeito para o vôo, encontra sua corrente de ar, onde respira e navega, forma seu verbo como se o tivesse catado em vegetação próxima, junta-o a advérbios e adjetivos boiando em poças d’água da redondeza, esquiva-se das armas furtivas dos caçadores, passa com desdém diante das fuças dos cães que o buscam, mergulha numa lagoa, sai com um sujeito no bico e um predicado preciso numa das garras, para finalmente pousar e – surpresa – ver-se no caso acusativo. Escrever é isso. É Fuentes. Colombianos correm do pau e se aviltam diante do primeiro socialismo que lhe fizer cócegas no ego. Peruano? Só rindo. Por que acha que a expressão “não há cu de peruano que agüente” surgiu? Não há de ter sido por nada. Brigaram os beldroegas por analfabetismo e desmesurada ambição política. Vargas Llosa presidente do Peru! Só rindo, só rindo.”
Depoimento de 14 putas tristes, entre 70 e 80 anos, várias esquinas.
“Nós sempre vemos juntas Casablanca quando passam. Nesse dia a que o senhor se refere éramos 25. Todas pagamos entrada, sim senhor, apesar do gerente ter feito proposta indecorosa, ainda que interessante. Trabalho é trabalho, arte é arte. Choramos então, choramos hoje, nós que sobramos. Quando el negro Sam cantava aquela canção, o senhor sabe qual é, nesse pedaço não dublavam. Nos derretíamos feito manteiga. Hoje igualzinho. Esses dois marmanjos de que o senhor fala estavam rindo na hora que el Umfrey pede para ele tocar a música para ele. Nós reclamamos em alto e bom som. Apesar de parecerem gente fina, nos responderam com palavras cabeludas, expressões de baixo calão. Erêndira, que era da pá virada e vivia com o pito aceso – tinha uns olhos azuis que só vendo! -, partiu para cima dos dois e, se o baleiro não separasse, o mais magrinho teria se machucado, está sabendo? O mais baixinho e forte estava com o pau para fora. Parecia um taco de beisebol: grande, grosso, uma loucura! Esse comigo não teria vez, por dinheiro algum. Não quero falar mal de ninguém, que isso foi há muito tempo, mas eu gostaria de saber o que é que os dois estavam fazendo naquela hora da tarde num cinema vagabundo. Me explica isso?, o senhor que me parece pessoa de instrução. Essa vida tem cada uma. Durma-se com um barulho desses. Ou não se durma. O senhor sabe onde eu quero chegar, não sabe?”
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E aí está, leitor amigo. Agora você está de posse dos dados que conseguimos, num louvável esforço de reportagem, obter. (Sorry, o baleiro também sumiu, como se a terra o tivesse tragado.) Não foi mole, como diria uma dessas senhoras da última entrevista. Salientamos que todo esse texto é uma seleção de longos depoimentos, muitos deles sofridos, realizados nas mais precárias das condições. A Cidade do México lembra o que vai ser, mais uns aninhos, o Rio de Janeiro. Ou São Paulo. Dizem. Forme agora sua opinião. Escreva para os escribas em questão. Blogueie, se for essa a sua. Veja de novo Casablanca, se achar que vale a pena. O que não pode, mas não pode mesmo, é ficar aí feito um idiota só lendo, lendo e lendo. Vá até a esquina, dê um passeio ou ainda… convide um amigão, desses do peito, para ir com você, de tarde, a um cineminha, depois de tomar umas e outras. Veja, por exemplo… Não. O programa eu deixo com você. Digo, vocês.
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