Quando lançou Cabra Marcado para Morrer, Coutinho já era um cinquentão. Numa geração de talentos precoces e vidas breves, ele se tornaria um caso raro de criatividade tardia e obra extensa FOTO: FOTOGRAFIA CEDIDA POR LIANA AURELIANO
Triunfo e tormento
Como Cabra Marcado para Morrer ensinou Eduardo Coutinho a interagir com seus personagens e a lidar com o particular e o concreto
Eduardo Escorel | Edição 82, Julho 2013
“Eu já desisti de Lukács!”
Dita assim, de supetão, em voz alta, no meio da noite, a frase espantou os poucos passageiros da Viação Cometa que estavam acordados. Imersos na escuridão, seguiam para São Paulo, pela Via Dutra.
As palavras exatas devem ter sido outras. Mas ditas num rompante, quase gritadas, esse foi o sentido.
Desistira mesmo?
Aos 34 anos, não dera nenhum sinal perceptível disso.
Naquela noite de maio, em 1967, a exclamação soou escandalosa ao seu jovem companheiro de viagem. Haviam recebido a incumbência de defender Terra em Transe no dia seguinte. Desde a estreia, na semana anterior, o filme vinha sendo atacado à direita e à esquerda, considerado, entre outras coisas, incompreensível – um novelo embaralhado era o mínimo que se dizia. Defensores da causa do Cinema Novo, cônscios da alta responsabilidade da missão, os dois embarcaram para a longa viagem noite adentro, sentindo-se como cruzados a caminho da Terra Santa, rumo a um debate que acabou não ocorrendo. Fora cancelado na véspera e ninguém se lembrou de avisá-los.
Querendo fazer conversa e impressionar o amigo mais velho, o jovem dissera que estava lendo a Estética, de Lukács. Na verdade, fizera apenas uma primeira tentativa, à qual outras se seguiriam nas décadas seguintes, mas nunca avançou além de algumas páginas. É difícil imaginar o efeito que a Estética poderia ter tido sobre eles. Mas, a julgar pela trajetória posterior de Eduardo Coutinho, a ele não parece ter feito a menor falta.
Àquela altura, porém, a desistência proclamada era na verdade mais da boca para fora. Em retrospecto, há sinais evidentes de que ainda havia um longo caminho a percorrer antes de ele ser capaz de romper certas amarras e se livrar das ideias diluídas, nos seus anos de formação, por divulgadores de Plekhanov, Engels e outros, lidos em volumes mal traduzidos da Editora Vitória.
“Eu já desisti de Lukács!”
Coutinho era portador do estigma de ser o autor de um filme inacabado. Com fama de caipora, ninguém imaginaria que nas décadas seguintes conseguiria se reinventar mais de uma vez, tornando-se um cineasta consagrado por seus próprios méritos. Pertencendo a uma geração liderada por talentos precoces, filmografias curtas e vidas breves, ele se tornaria um caso raro de criatividade tardia, obra extensa e vida longa.
Do pouco que fizera até então, nada conseguira cicatrizar a ferida aberta – era o diretor de um filme que não existia. Corroteirista de dois longas-metragens e diretor de um média, todos de ficção, era um cineasta sem filmografia, nem identidade autoral reconhecível. Levaria mais de dez anos para renascer pela primeira vez, processo que só concluiria quando, em 1984, já cinquentão, lançou Cabra Marcado para Morrer – o filme interrompido vinte anos antes.
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Quando a tropa do Exército ocupou o engenho Galileia, no município de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, no dia 1º de abril de 1964, Elizabeth Teixeira, viúva do líder camponês assassinado João Pedro Teixeira, alguns integrantes da equipe e Coutinho fugiram, depois de passarem uma noite escondidos no mato. Produzido pelo Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), e pelo Movimento de Cultura Popular (MCP), do Recife, com recursos do Ministério da Educação e Cultura, obtidos quando João Goulart era presidente da República, Cabra Marcado para Morrer parecia fadado a não ser concluído enquanto os militares estivessem no poder. À medida que os generais presidentes se sucediam, a possibilidade de terminar o filme ia parecendo cada vez mais remota.
De 1964 a 1979, contrariando as probabilidades, Coutinho preservou a convicção íntima de que conseguiria acabar o primeiro Cabra. O que não poderia prever é que transformaria o projeto interrompido, cuja existência ia sendo esquecida, num documentário memorável.
Obstinado, Coutinho percebeu que as condições necessárias para retomar o projeto começavam a surgir a partir da campanha pela anistia, no final da década de 70. Aprovada a chamada Lei da Anistia, em agosto de 1979, quem tinha vida clandestina pôde assumir sua identidade legal, e os exilados começaram a voltar para o Brasil – era o que faltava.
Transmitida pela televisão, em rede nacional, durante o mês de setembro, a chegada de militantes e líderes políticos fortaleceu a impressão de que chegara a hora. Depois de catorze anos de exílio, Miguel Arraes, governador de Pernambuco deposto em abril de 1964, voltava ao Brasil. Ao comício comemorativo da sua chegada, no Recife, comparecem 50 mil pessoas – Coutinho entre elas –, ao som do frevo Arrastaí, adaptado para “Arraes taí”.
O fato de Arraes estar de novo em Pernambuco simbolizava o fechamento de um ciclo. A história completava uma volta e os fios esparsos, deixados soltos em abril de 1964, agora talvez pudessem ser reatados para completar a teia que ficara inacabada.
Intuindo que não poria em risco os participantes da filmagem de 1964, alguns dos quais haviam tido atuação destacada nas Ligas Camponesas, e acreditando que eles agora se sentiriam seguros para darem seu depoimento, Coutinho procura se informar onde encontrar Abraão – filho mais velho de Elizabeth e João Pedro Teixeira.
Sem contato com Elizabeth – vivendo clandestina desde 1964 –, nem com os demais camponeses que haviam atuado no primeiro Cabra, Coutinho considerava estar em dívida com eles. A maneira que imaginou de prestar contas foi começar projetando as cenas das quais eles haviam participado, entre fevereiro e março de 1964, e depois resgatar através de depoimentos a história da filmagem interrompida, assim como a trajetória de vida de cada um deles a partir do golpe de abril.
Por ironia, os recursos para a produção teriam a mesma origem do primeiro Cabra – o governo. Passados quinze anos, a parte principal do financiamento, no lugar do Ministério da Educação e Cultura do governo João Goulart, viria da Embrafilme, sociedade anônima da qual o Estado era o acionista majoritário, subordinada também ao Ministério da Educação e Cultura, mas agora da Presidência do general João Baptista Figueiredo.
O filme de ficção, filmado em 35 milímetros, preto e branco, sem gravação simultânea de som, com atores não profissionais, predomínio de planos gerais fixos e encenação hierática, seria retomado como documentário, em 16 milímetros, colorido, com som direto, câmera na mão, e estilo ágil próximo ao de uma reportagem.
Quando a equipe de quatro pessoas parte para o Nordeste, em janeiro de 1981, tratava-se de dar voz aos que atuaram no primeiro Cabra por meio de uma nova linguagem. De um lado, transformar participantes anônimos em protagonistas, trazendo a público, além da diáspora da família Teixeira, o testemunho do martírio de presos, torturados, perseguidos – sem se esquecer dos que simplesmente se acomodaram. De outro, embora inseguro, Coutinho planejava interagir com os personagens diante da câmera e conduzir a narrativa em voz off, na primeira pessoa – recursos impensáveis para ele no início da década de 60.
Teria sido trabalhando na televisão, no Globo Repórter, a partir de 1975, que Coutinho aprendeu a não ficar afastado, escondido atrás da câmera. Nas suas palavras: “Ninguém conversa a essa distância. Você tem que estar junto. Senão é como se houvesse uma barreira, a pessoa fala como se estivesse falando para a polícia ou para ‘o cinema’, quer dizer, presta um depoimento.”
Catorze anos haviam se passado desde a noite em que proclamou ter desistido de Lukács até a partida para retomar a filmagem do Cabra no Nordeste. Nesse período, Coutinho dirigira dois longas-metragens e fora corroteirista de outros quatro, todos eles filmes de ficção. Nenhum permitiu prever a reviravolta que vinha fermentando nele. Dados com hesitação e cautela, os passos iniciais rumo ao segundo, e definitivo, Cabra Marcado para Morrer mal podem ser entrevistos nos documentários que fez, nesse período, para o programa Globo Repórter.
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Coutinho continuava trabalhando no Globo Repórter, no qual cumpria horário refugiado numa mesa de canto da redação. Enquanto isso, à noite, fora do expediente, em uma mesa de montagem cedida por Paulo Gil Soares, diretor do programa, o copião começou a ser sincronizado e ordenado por Valdir Barreto, montador do Globo Repórter.
Ao longo do primeiro ano de montagem, outro filho de Elizabeth e João Pedro, que estava trabalhando como peão de obra no Rio, e mais duas filhas, uma também morando no Rio, a outra em Duque de Caxias, foram filmados, além de um dos camponeses de Galileia que participara da filmagem do primeiro Cabra e estava trabalhando como operário em uma pequena metalúrgica, no interior de São Paulo. A serviço da Globo, Coutinho aproveitou uma oportunidade que surgiu para filmá-lo com a própria equipe da emissora.
O material a ser editado chegou, dessa maneira, a cerca de treze horas de duração, incluindo o depoimento de Isaac, outro dos filhos de Elizabeth e João Pedro, filmado na faculdade de medicina de Santa Clara, em Cuba, por uma equipe cubana, a pedido de Coutinho.
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Além de desembaralhar o novelo, tornando compreensíveis as diversas tramas do Cabra, era preciso dosar na montagem a presença de Coutinho em cena, e acertar a frequência e o tom da sua narração em off que, sendo na primeira pessoa, faria contraponto à segunda voz, impessoal e informativa, a cargo de Ferreira Gullar. Lidando com grande variedade de situações e relacionamentos pessoais complexos, a eficácia da narrativa e a força do filme dependeriam da simplicidade que se conseguisse imprimir ao relato.
Entre as inúmeras decisões a serem tomadas na montagem de todo documentário, duas são cruciais – como começar e como terminar o filme. A primeira sequência sinaliza o rumo, e a última atesta se a trajetória percorrida chegou a bom termo. Jean Rouch dizia que “na montagem começamos pelo início, depois tentamos saber aonde vamos”.
No caso do Cabra não foi diferente. Os dois planos iniciais se impuseram por si mesmos, estabelecendo de imediato que há uma projeção em preparo ao anoitecer, no terreiro de uma casa isolada entre morros, sem que seja identificado onde e quando isso ocorre. Ao protelar a identificação do local e da época dessa primeira cena, os preparativos para a projeção ganharam sentido genérico, abstrato, independente da situação real em que foram filmados. Conforme Jean-Claude Bernardet viria a definir mais tarde com absoluta precisão, “o espetáculo vai começar, e será ele que, até o final, guiará todo o trabalho de resgate da história”.
Ao começar o filme com os preparativos de uma projeção abstrata, a sequência se tornou um marco firme ao qual era sempre possível voltar cada vez que uma etapa acabava de ser narrada. Admitia também a abertura de parênteses (equivalentes a flashbacks) e tornava indiferenciadas duas projeções feitas a centenas de quilômetros de distância, uma em Pernambuco, para os camponeses de Galileia, outra no Rio Grande do Norte, para Elizabeth e seus vizinhos. No fluxo do filme, passou a ser indiferente onde ou quando o copião estava sendo visto. Além do mais, liberava a montagem da cronologia das filmagens que, na verdade, não começaram no engenho Galileia, em Pernambuco, e sim, como era natural, pela ida em busca de Elizabeth Teixeira, com a expectativa frustrada de que o reencontro dela com Coutinho rendesse uma cena de interesse.
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A decepção por não ter sido possível filmar o encontro de Elizabeth e Coutinho foi mais do que compensada pela tensão que transparece durante a conversa filmada no primeiro dia, dando dimensão imprevista à sequência. Tensa, sentada entre o filho caçula, Carlos, e o mais velho, Abraão, Elizabeth está na pequena sala de sua casa, rodeada por adultos e crianças da vizinhança. E na sua primeira intervenção é constrangida por Abraão, diante da câmera, a reconhecer a “abertura política do presidente Figueiredo” e induzida, até certo ponto, a dizer que “graças a ele eu estou aqui hoje com a presença de vocês, né, que estão aqui. Por que foi o único governo que… ele merece, né, toda a dignidade nossa de ter dado este amplo direito de que todos os presos políticos que se encontravam fora do Brasil, voltar a encontrar-se com seus familiares. E hoje eu me encontro, ao lado do meu filho, me avistando com você aí, o Coutinho, hoje, que eu nunca esperava você hoje estar aqui na minha residência. E a quem nós vamos agradecer? As minhas esperanças, eu vou dizer, eu não tinha mais esperança de nunca mais encontrar, nem sequer com meus filhos. Por que eu tinha medo. Eu sofri muito. Eu sofri. Acho que vocês são testemunhas. Eu sofri demais. A perseguição era grande. Os caras tiveram muita vontade de me exterminar”.
Sendo também personagem principal de Cabra Marcado para Morrer, Coutinho marca sua presença nesse primeiro dia de filmagem, mesmo sem ser visto. Indo além da função de narrador na primeira pessoa que exerce desde o início do filme, intervém de maneira firme quando Abraão insinua uma ameaça, abandonando de vez o papel que viria a chamar de diretor-fantasma.
Não satisfeito com o agradecimento feito ao presidente Figueiredo, Abraão volta à carga, declarando que “todas as facções políticas esqueceram Elizabeth Teixeira, simplesmente porque não tinha poder. Está aqui a revolta do filho mais velho. Agora, se o filme não registrar este meu protesto, essa minha veemência, essa verdade que falta à capacidade intelectual expressiva do coração de minha mãe…”.
Sem deixar Abraão completar a frase, Coutinho interrompe e assume o compromisso de registrar “tudo o que os membros da família quiserem falar. Estão livres para fala…”, sendo interrompido, por sua vez. Abraão insiste: “Mas eu quero que o filme registre esse nosso repúdio a quaisquer sistemas de governo.” E Coutinho reitera que “estará registrado, eu te garanto”. Abraão conclui: “Nenhum presta para o pobre.” E Elizabeth concorda: “Nenhum.”
À noite, depois desse confronto no primeiro dia de filmagem, Elizabeth assiste com seus dois filhos e os vizinhos à projeção das cenas do comício de protesto pela morte de João Pedro, em 1962, e as do primeiro Cabra, feitas em março de 1964, prolongando, de certa maneira, a projeção que abriu o filme e se desdobrou, até esse momento, em três etapas.
Na manhã do dia seguinte, filmada pela segunda câmera, operada por Nonato Estrela, a equipe é vista andando pela rua – Edgar Moura com a câmera na mão, filmando Coutinho com sua bolsa a tiracolo, e Jorge Saldanha, o técnico de som. No plano seguinte, feito pela câmera de Edgar, Coutinho caminha sozinho até se virar e fazer um gesto nervoso com a mão direita, sinalizando para Saldanha se aproximar e entrar em quadro, o que só ocorre, com certo atraso, ao chegarem defronte à casa de Elizabeth.
Coutinho chama por Elizabeth pela janela. Quando ela se aproxima está sorridente. Sem a vigilância de Abraão, parece feliz com a presença da equipe e critica seu próprio depoimento dado na véspera. Devia ter começado “direitinho, a vida” como Coutinho queria, ela diz, “de início, como nós começamos o namoro, depois casemo etc.” – o que fará a seguir, depois de todos se instalarem no quintal dos fundos da casa.
Assim como as duas projeções das imagens feitas em 1964 são retomadas várias vezes ao longo do filme, os depoimentos de Elizabeth nos dois primeiros dias de filmagem, além de se alternarem, também pontuam Cabra Marcado para Morrer, transformando-se numa narrativa única, apesar da atmosfera carregada do primeiro dia se contrapor à alegria e descontração de Elizabeth no segundo.
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No terceiro dia de filmagem, a despedida de Elizabeth foi cuidadosamente orquestrada para ser a cena triunfal de encerramento do filme e, talvez, para compensar o encontro que não foi filmado no primeiro dia. Coutinho começa a dirigir a sequência chamando Elizabeth para saírem da casa dela e se despedirem “porque a gente vai arrumar a mala de equipamento”.
Filmada em plano geral pela segunda câmera, a equipe sai da casa seguida de Elizabeth, e Coutinho se despede dela, pela primeira vez, com um cumprimento de mão e um tímido abraço. Em plano próximo, feito pela câmera principal, Elizabeth diz a Coutinho que “tinha um desengano que não encontrava mais com vocês, nem com outros companheiros”.
Dois dias depois de ter sido constrangida por Abraão a agradecer ao presidente Figueiredo e dizer que nenhum sistema de governo presta, mesmo sem a vigilância do filho mais velho, Elizabeth repete o agradecimento, mas aos poucos matiza sua visão, dizendo que nunca esmoreceu e “nunca esqueci a luta”. “Fiquei encostada porque esse era o único jeito, mas hoje nós agradece muito ao nosso presidente ter concedido essa honra de hoje nós estarmos conversando e palestrando, encontrarmos com nossos filhos, com nossos pais, com nossos parentes…”
Filmados pela segunda câmera, o técnico de som e Coutinho estão diante de Elizabeth, na porta da casa, quando ela diz que “há dezesseis anos Abraão nunca tinha vindo a São Rafael”.
Com novo cumprimento de mão, Coutinho volta a se despedir, e Elizabeth o surpreende. Começando a reafirmar suas antigas convicções de maneira explícita, diz que “a luta aqui não para. A mesma necessidade de 64 está plantada. Ela não fugiu um, um, 1 milímetro”.
Pela primeira vez, depois de dois dias e meio de filmagem, ressurge diante da câmera a líder política segura de si, diferente da mulher sofrida, tímida e lamurienta, vista nos dois dias anteriores.
Com um corte descontínuo, a imagem passa a ser de Coutinho sentado no lugar do carona da Kombi e Elizabeth, vista através da janela, com a voz abafada pelo barulho do motor, dizendo que “a mesma necessidade tá na fisionomia do operário, do homem do campo e do estudante”. “A luta é que não pode parar. Enquanto se diz que tem fome, e salário de miséria, o povo tem que lutar. Quem é que não luta por melhoras? Não dá. Quem tem condições, que tiver sua boa vida que fique aí, né? Eu como venho sofrendo, eu tenho que lutar, até hoje. É preciso mudar o regime, é preciso que o povo lute. Porque, enquanto estiver essa democraciazinha que está aí…”
Elizabeth faz que não com o dedo indicador.
“Democracia sem liberdade? Democracia com salário de miséria e de fome? Democracia com o filho do operário e do camponês não ter direito a estudar, sem condições de estudar. Como a minha. Agora mesmo eu tirei o menino; para fazer a matrícula lá paga não sei quanto, né? Não pode. Ninguém pode.”
A percussão da música parece interromper Elizabeth e não há mais a voz dela, nem o som ambiente, suprimidos por Coutinho na mixagem. Ela continua a falar sem que se ouça o que diz. Coutinho parece dizer alguma coisa para o motorista e dá adeus, mais uma vez. Elizabeth continua falando. Coutinho e ela se despedem, fazendo um último cumprimento de mão e ela passa em frente da Kombi indo em direção à porta da sua casa enquanto a Kombi recua.
Seria um final glorioso, em que a heroína reafirma suas convicções, mesmo sem apagar de todo o mal-estar causado, em pleno regime militar, pelo agradecimento feito ao providencial general-presidente que, do alto da sua magnanimidade, teria “dado” ou “concedido” a anistia.
Sinal, talvez, de que Coutinho começara a se livrar do caipora foi que tudo acabou dando mais ou menos certo. Para alegria dele, o filme no chassis da câmera não acabou antes de a Kombi recuar. Estava convencido de que os três dias de filmagem com Elizabeth tinham sido bons, que o filme estava assegurado e que tinha um final perfeito.
Na montagem, porém, esse final foi subvertido, tendo sido acrescentado, depois da despedida de Elizabeth, um plano de João Virgínio, pioneiro do engenho Galileia.
João Virgínio sobrevivera a prisão e tortura, em abril de 1964, conforme conta no depoimento mais contundente do filme:
“O Exército pegou, tirou eu aqui, meteu na cadeia, cegou-me um olho, deu-me uma pancada, eu perdi o ouvido, outra pancada, eu perdi o coração, passei seis anos na grade da cadeia. O que foi que eu construí na grade da cadeia pra nação? Tomaram um relógio, um cinturão, 50 conto em dinheiro, um jipe o Exército tomou, a carcaça tá lá detrás da prefeitura de Vitória [de Santo Antão], lá na delegacia, um jipe, meu. Não me entregou mais. Isso é tipo de revolução? Pegar dum homem lascado que nem eu, fiquei meus filhos tudinho morrendo de fome aí, e o Exército tomar um carrinho que eu tinha. Tomar os documentos, tomar tudo. Acabar, ficou com ele. Que vantagem tem o Exército fazer uma desgraça dessa comigo? Era melhor mandar me fuzilar, não era?, do que fazer uma miséria dessa. Eu fiquei mais revoltado do que era. Deixar meus filhos tudinho morrendo de fome aqui. E olha, lascado lá na cadeia, no cacete, no pau. Passei 24 horas dentro de um tanque de merda, com água aqui no umbigo, cada rolo de merda dessa grossura, aquele caldo, aquela manipueira, um quarto apertado, e eu passava assim uma hora, outra hora assim, outra hora assim, outra hora ficava assim, passei 24 horas em pé. Só o diabo aguenta, rapaz: um homem passar dentro de um tanque de merda 24 horas em pé. Só Satanás. Eu não acredito que tô vivo, não, porque nunca vi um espírito da minha qualidade aguentar mais choque elétrico do que eu aguentei, não. Mas não tem melhor do que um dia atrás do outro, e uma noite no meio. E a ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo é quem vai proteger a gente. As graças de Deus tá caindo aí, de hora em hora. Confio em Deus porque essa infelicidade… Um dia, o povo tem de pensar quem são eles. Não é possível a gente viver a vida todinha debaixo desse pé de boi, não.”
Terminar o filme com um plano de João Virgínio, filmado no terreiro da casa dele, no domingo de Carnaval de 1981, dando através da narração do próprio Coutinho a informação de que ele morrera dez meses depois, de ataque cardíaco, foi outra decorrência lógica, em respeito à cronologia, uma vez que João Virgínio morreu, de fato, depois de a filmagem ter terminado.
A decisão, tomada sem controvérsia na montagem, evitou a necessidade de informar a morte dele no meio do filme, após o relato da tortura. Opção que implicaria, pela única vez, avançar no tempo e recuar logo em seguida, antecipando informação que Coutinho, naturalmente, não possuía quando estava filmando. Em uma estrutura narrativa complexa como a de Cabra Marcado para Morrer, esse flash-forward poderia ameaçar a coerência interna, além de provocar um embaralhamento prejudicial. Para o espectador, estabeleceria ademais duvidosa relação de causa e efeito entre a tortura, sofrida em 1964, e a morte de João Virgínio, dezessete anos depois. E tudo que viesse após esse momento do filme seria afetado pelo conhecimento desse fato, sem que os participantes da filmagem tivessem a mesma informação quando estavam filmando ou sendo filmados. Dessa maneira, portanto, haveria uma discrepância entre, de um lado, o que era de conhecimento da equipe e dos participantes no momento em que a filmagem estava sendo feita e, de outro, o que seria de conhecimento de quem estivesse vendo o filme. Alternativa incongruente com o princípio geral da montagem – clareza, simplicidade e tratamento equânime –, parecendo mais correto, então, deixar para o encerramento do filme a informação sobre algo ocorrido depois do fim da filmagem.
Na montagem, salvo lapso de memória, não foi considerado que poderia ser melhor terminar em anticlímax – a morte de João Virgínio –, em vez de fazer da fala final triunfalista de Elizabeth o clímax de encerramento. Foi só depois, quando Jean-Claude Bernardet publicou o artigo “Vitória sobre a lata de lixo da história”, em 1985, contrapondo o “final perfeito” (a despedida de Elizabeth) ao final verdadeiro (a morte de João Virgínio), que foi consagrada a ideia de que o filme deveria, em termos corriqueiros, terminar para baixo e não para cima; ou ainda, na sequência fraca, e não na forte.
Com o passar dos anos, a leitura de Jean-Claude se impôs. “Terminando dessa forma”, ele escreveu, “o filme reafirma sua concepção de trabalho histórico.” Não há, porém, na verdade, incompatibilidade entre a decisão da montagem e a interpretação posterior de Jean-Claude. Uma não invalida a outra. São apenas momentos e processos diferentes. No primeiro, prevalecem impressões instintivas, debatidas em termos simples. Com o filme pronto, fica franqueado o campo para comentários sofisticados e mais ou menos pertinentes. E assim, versões muitas vezes acabam se sobrepondo ao fato.
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Quando Cabra Marcado para Morrer ficou pronto, no final de 1983, estava em vigor a legislação que obrigava todo filme a ser submetido à Divisão de Censura de Diversões Públicas, do Departamento de Polícia Federal, órgão do Ministério da Justiça, que poderia ou não liberá-lo para exibição no Brasil e no exterior, além de efetuar cortes, havendo também opção de classificação etária no Brasil.
O parecer da Divisão de Censura, datado de 27 de fevereiro de 1984, ao qual Coutinho só teve acesso mais de vinte anos depois, assinado pelo censor Coriolano de L. C. Fagundes, nº de matrícula 2 095 823, e uma censora de assinatura ilegível e nº de matrícula 2 324 380, resume o “conteúdo” do filme no condicional: “João Pedro Teixeira […] teria sido assassinado”; “membros das equipes técnica e artística teriam sido alvo de repressão”. Afirma, ainda, que o trabalho no filme foi retomado “graças ao processo de abertura política em curso no Brasil”.
Passando ao tópico “Linguagem, mensagens, destinatário”, o parecer se permite considerações sobre a ação do tempo “que tudo consome” e julga que “a obra é tendenciosa e saudosista, politicamente, tendo contudo perdido muito da potencialidade politizante, que foi deteriorada pelo tempo, que tudo consome, até mesmo a memória da nação. A linguagem é documental, clara e direta, tendo como alvo o grande público”.
No último segmento, dedicado a “Persuasão, perspectiva e parecer”, o filme é considerado como “talvez estimulante de revanchismo, especialmente no modo da juventude, via de regra deformada e facilmente influenciável”, e a película seria “possivelmente interditada pelo signatário, que opta pela classificação etária máxima, à vista da orientação superior recebida por intermédio da censora matrícula nº 2 324 380”.
Cabra Marcado para Morrer é, então, liberado para maiores de 18 anos e considerado “livre para exportação”, sem cortes.
Tudo indica que a censora anônima que teria transmitido a “orientação superior” foi a infame Solange Hernandes, conhecida como dona Solange, cujo verdadeiro nome é Solange Maria Chaves Teixeira, considerada a mais autoritária da Divisão de Censura, chefiada por ela entre 1981 e 1984. Na conclusão do parecer, provavelmente assinado por ela, é reiterado que “de acordo com orientação superior e tendo em vista que um público adulto possuirá capacidade suficiente para encarar a filmagem como relato de fatos históricos acontecidos há vários anos atrás”, sugere “S. M. J. que o presente documentário seja liberado para maiores de 18 (dezoito) anos”.
Não se sabe de quem teria partido essa “orientação superior”, graças à qual Cabra Marcado para Morrer escapou de sofrer cortes ou ser interditado. No auge do movimento Diretas Já!, o filme não precisou sequer ser submetido ao Conselho Superior de Censura, como tantos outros.
Os termos do parecer indicam que houve intervenção pessoal de alguém com poder suficiente para tanto. Mas não se sabe quem terá sido. O fato é que Cabra Marcado para Morrer passou incólume pela censura, depois de Pra Frente, Brasil ter sido inicialmente proibido em 1982, e cinco meses antes de Em Nome da Segurança Nacional ter sido interditado.
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Segundo o próprio Coutinho, depois de o jornalista Peter Schumann, membro do comitê de seleção, ter visto o filme no Rio, a cópia seguiu para Berlim, onde foi projetada para Ulrich Gregor, diretor do Fórum, com tradução simultânea. Não se sabe ao certo quem foi o tradutor. O resultado foi um telefonema no qual Schumann teria dito, segundo Coutinho, que “a hora final do filme é insuportável e deveria sofrer cortes”. Ou perguntado, pelo que lembra o crítico de cinema José Carlos Avellar, se Coutinho concordaria em “reduzir o tempo de projeção, cortando cenas da parte final” – versões que não diferem no essencial, ambas sendo de insolência exemplar, embora a segunda seja mais polida.
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Na manhã de sábado, 24 de novembro, estava marcada a primeira sessão de Cabra Marcado para Morrer no 1º Festival Internacional do Rio de Janeiro, realizado no antigo Hotel Nacional, em São Conrado. Pouco antes da hora marcada para o início da sessão, a cópia legendada em inglês chegou espalhada no chão de um táxi Fusca. Na época, ainda era preciso juntar as seis partes do filme num rolo único para que a projeção pudesse ser feita sem troca de projetor a cada vinte minutos, e esse trabalho levava um bom tempo. Apesar da correria, a sessão teve início com um atraso tolerável.
Passados os primeiros vinte minutos do filme, ouviram-se gritos no saguão do cinema, vindos da sala de projeção, e Coutinho emergiu transtornado, fora de si, xingando o projecionista aos berros com os mais pesados impropérios. Projeção interrompida, luzes acesas, conseguiu explicar que o filme estava sendo projetado fora de ordem. De fato, na pressa, o projecionista foi emendando os rolos guiando-se pela numeração que constava das latas, sem se certificar que, de fato, correspondia aos rolos contidos em cada uma delas. Com isso, os rolos haviam sido invertidos, e depois do primeiro começara a ser projetado o terceiro, pulando o segundo. À beira de um ataque de nervos, Coutinho retirou-se enquanto os rolos eram separados e remontados na ordem correta, operação trabalhosa, especialmente naquelas circunstâncias. Depois de quase uma hora a projeção recomeçou do início, com os rolos remontados na ordem certa, e foi até o fim sem novos incidentes.
Três dias depois, no encerramento do Festival, Cabra Marcado para Morrer recebeu o troféu Tucano de Ouro, dado ao melhor filme, além do Prêmio da Crítica, e o Prêmio Ocic (Ofício Católico Internacional de Cinema). E Ulrich Gregor, diretor do Fórum do Cinema Jovem, de Berlim, procurou Coutinho para dizer que devido à falta de legendas tinha se enganado quando viu o filme pela primeira vez, e que tendo visto Cabra Marcado para Morrer agora, em condições adequadas, gostaria de apresentá-lo no Fórum de 1985. Coutinho duvidou do convite feito a um filme recusado no início do ano, mas não só o convite foi feito para valer como Cabra Marcado para Morrer acabou ganhando o principal prêmio ex aequo com Secret Honor, de Robert Altman, além de outros dois – o da Federação Internacional de Críticos de Cinema e o do Júri Ecumênico, esse com direito a um cheque.
Outros prêmios se sucederam, incluindo o do Festival do Novo Cinema Latino-Americano, em Havana, em dezembro de 1984, e, no ano seguinte, o Grande Prêmio do Festival de Cinema Real, em Paris.
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Segundo Canby, Cabra Marcado para Morrer não se parece com nenhum outro filme. Para ele, Coutinho fez um filme “provocante, um documento único que é ao mesmo tempo um ensaio sobre os últimos vinte anos de política brasileira e também um ensaio sobre o cinema verdade, assim como – e isso é uma espécie de dividendo irônico – uma demonstração das maneiras que a vida de pessoas comuns pode ser virada de cabeça para baixo pelos mais bem-intencionados cineastas”. “Cabra Marcado para Morrer não tem nada de idílico. No entanto, o compromisso do sr. Coutinho com seus personagens é tanto mais efetivo por ser tranquilo, controlado e sem sentimentalismo.”
Graças a essa crítica, Cabra Marcado para Morrer é lançado no Film Forum. E, quando Coutinho chega à cidade, o New York Times publica uma pequena notícia, citando declarações dele nas quais formula com desembaraço e clareza, e aparente segurança, princípios que seguira no filme e aos quais não apenas permaneceria fiel como transformaria em dogma quando finalmente conseguiu, depois de quinze anos de angústia, livrar-se de Cabra Marcado para Morrer e dar início à segunda reinvenção de si mesmo com Santo Forte, em 1999. “Muitas vezes filmes documentários são feitos por fantasmas. Eles fazem perguntas, e depois não estão lá. Eu não gosto disso”, declara Coutinho na reportagem do New York Times, na qual ele é considerado “uma presença importante no seu filme muito incomum. Longe de ser um diretor ausente, ele tem um papel ativo no documentário”. Na citação seguinte, Coutinho diz que foi importante “não desprezar as pessoas, nem tratá-las com condescendência. Elas têm algo a dizer. Eu tenho algo a ouvir”.
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No depoimento de João Mariano, dado em frente à sua bodega em Vitória de Santo Antão, Coutinho parece à beira de um ataque de nervos. Filmado de surpresa, no dia seguinte ao da projeção em Galileia, em 1981, João Mariano está sério, ao contrário da véspera, quando sorria, parecendo alegre ao ver as cenas em que atuou, em 1964, fazendo o papel de João Pedro Teixeira.
Virado de lado, João Mariano começa sem olhar para Coutinho, nem para a câmera, e fala com cautela. Diz, inicialmente, ser “muito afastado de certos movimentos”, enquanto Coutinho balança a cabeça, parecendo querer demonstrar que está de acordo com o que João Mariano está dizendo e incentivá-lo a ir adiante. No exato momento em que ele parece ter ganhado confiança e vai se abrir, ouve-se o primeiro ruído de estática quando faz referência ao “movimento revolucionário” e imediatamente em seguida o antebraço esquerdo de Coutinho entra em quadro fazendo um gesto marcial para interromper a filmagem. “Um momentinho só. Tá com vento? Tá com vento não vale”, Coutinho diz em off.
A desastrosa interrupção, ainda mais da maneira abrupta e incompreensível em que é feita, aos olhos de João Mariano, parece ter acabado com todo o elã dele. Quando a filmagem é retomada, aparentemente pouco depois, Coutinho é obrigado a tentar induzi-lo a prosseguir: “O senhor pode falar o que estava falando, que é perfeito.” Segue-se um silêncio de oito segundos, até Coutinho insistir: “Tá? Pode falar seu Mariano, sem problema, sem medo. O senhor diz como é que o senhor viu e pronto.” Um movimento de zoom out revela uma caixa de microfone, esquecida durante o intervalo da filmagem sobre a mesa à qual João Mariano e Coutinho estão sentados. Coutinho faz nova tentativa: “Hein, senhor Mariano?” Espera, respira fundo, olha para o lado e, só então, percebe que a caixa do microfone está em cena. Fazendo nova tentativa – “Hein, senhor Mariano?” –, Coutinho fecha a caixa. Depois de ficar 37 segundos em silêncio – uma eternidade para Coutinho no momento da filmagem –, João Mariano volta a falar:
“Quando eu cheguei à cidade, que os senhores me procuraram, que eu ingressei dentro dessa carreira, mas sem saber o que estava fazendo. Mas quando entendi que era, assim, para viver, assim, pelas propriedades, vamos dizer, agindo por terra, essas coisas… Eu não preciso de terra, que o pouco que Deus me deu…eu vivo sem isso, entendeu? Eu vivo sem precisar de tá agindo com A ou com B. Depois que os senhores chegaram aqui, me procurou, pela sua simpatia, pela bondade do senhor, então, peguei a travar o conhecimento, mas não pra ter ingressado nesse negócio de revolução. Meu negócio é esse.”
Curiosamente, só o que Coutinho encontra para dizer, ainda em off, é: “Mas não tinha nada disso, não. Agora, me diga uma coisa. O senhor vive como, agora?”
E João Mariano continua: “Eu vivo do meu pro meu. Eu não sou sujeito a senhor de engenho, nem tampouco quero me entender com nada de senhor de engenho, entendeu? Minha vida é essa.”
E mais adiante, completa:
“Porque dizem que na primeira todos caem, na segunda cai quem quer. Eu já fui decepcionado pela minha Igreja, pra ser novamente, o quê que eu tô fazendo? […] Decepcionado porque a Igreja não quer esse movimento. Esse é um movimento revolucionário, e eu não quero revolução comigo, entendeu? Meu negócio é calma. É o senhor com o seu e eu com o meu. Cada um vive a sua vida, que eu vivo a minha vida. Entendeu? Meu negócio é esse.”
Depois de ter se identificado com João Pedro Teixeira ao longo da filmagem, em 1964, passados dezessete anos, tendo sido expulso da Igreja Batista, João Mariano renega qualquer ímpeto de luta por terra. O tempo e a vida abriram um fosso entre o personagem e seu intérprete. No seu depoimento, que encerra a primeira metade do filme, há um jogo de cena em que o intérprete do herói revela seu anti-heroísmo, preparando de certa maneira o final para baixo do filme.
Coutinho, por sua vez, expõe sua própria fragilidade na sequência, além da sua tática indutora ao conduzir o depoimento. Não é um diretor etéreo. Revela sua insegurança, explicita sua interação, e torna transparente seu nervosismo no momento da filmagem.
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De fato, Cabra Marcado para Morrer é um marco. Mas o processo de emancipação de Coutinho ainda não estava concluído. Depois do temerário pedido de demissão do Globo Repórter, e de sobreviver por alguns meses do seu Fundo de Garantia, ele ficou desnorteado ao ser convidado, em 1987, por Aspásia Camargo, então diretora da Funarj, para fazer um documentário a propósito do centenário da Abolição, para o qual ela carreou recursos generosos, aos quais se somaram investimentos expressivos, em forma de coprodução, de três televisões europeias – Televisión Española (TVE), La Sept e Channel 4 –, além do apoio do Hubert Bals Fund. Sendo talvez dos seus filmes o produzido com maiores recursos, apesar de realizado com total liberdade, ou justamente por causa disso, O Fio da Memória decepcionou os envolvidos, inclusive o próprio Coutinho.
Embora já tivesse a convicção arraigada de que é impossível fazer documentários sobre “assuntos gerais” – no caso, a abolição da escravatura –, ele não conseguiu se livrar do compromisso de dar conta da história da escravidão, desde a introdução pelos portugueses da mão de obra africana para trabalhar na lavoura da cana-de-açúcar até a situação social da população negra 100 anos depois – escopo que viria a ser a antítese do cinema documentário através do qual se tornaria reconhecido.
Nem o personagem principal de O Fio da Memória – Gabriel Joaquim dos Santos (1892–1985), filho de escravos aposentado que trabalhara nas salinas de São Pedro da Aldeia –, nem a narração feita a partir dos assentamentos que deixou nos seus cadernos, nem as gravações de áudio de depoimentos dele feitas por Amélia Zaluar – nenhum desses elementos foi capaz de evitar a ambivalência de Coutinho entre o que acreditava ser sua obrigação e o que o interessava. De um lado, a tentativa de atender à suposta expectativa por um documentário sobre a abolição da escravatura; de outro, o caso particular de Gabriel, seus escritos e a obra à qual dedicou sua vida – a Casa da Flor. O cunho histórico e sociológico minou O Fio da Memória, filme contra o qual todas as vozes se voltaram, e que caiu no esquecimento, fechando as portas para novas oportunidades de financiamento no exterior.
Na verdade, até mesmo o interesse por Gabriel Joaquim dos Santos acabou se revelando uma armadilha. Já falecido na época da filmagem, não era um personagem com quem Coutinho pudesse se relacionar, impedindo que o dom revelado tardiamente por ele em Cabra Marcado para Morrer pudesse florescer – dar ouvidos a quem tem o que contar.
Sofrendo uma recaída no que o jornalismo televisivo tem de pior, Coutinho ataca seus entrevistados com perguntas em voz off: “Como foi a abolição?”; “Os escravos eram o quê, de onde que vinham?”; “Quem foi Zumbi?”; “Como é que libertou? Quando é que libertou? Que história é essa? Abolição. Que negócio é esse?”; “A senhora podia falar da relação do candomblé com a natureza?” etc. – gênero de pergunta que viria a abolir do seu repertório. Assim também como deixou de abordar pessoas de surpresa, como faz com moradoras de rua, perguntando a uma senhora que acaba de ser acordada: “Como é que a senhora ganha um dinheirinho?” e “Tem amigos aqui na praça?”
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Exercitou a mão em vários filmes, até concluir Santo Forte, em 1999. Mais de trinta anos haviam se passado desde a viagem noite adentro, em 1967, rumo ao debate que não houve. Ao assistir a versões preliminares de Santo Forte, o companheiro mais jovem daquela incursão noturna achou que ninguém se interessaria por aqueles longos depoimentos e disse isso a ele. Tempos depois, quando o filme foi premiado como o melhor do Festival de Gramado, recebeu um recado mandado por Coutinho: “Diga que ele perdeu o direito de opinar sobre meus filmes” – interdição de vida breve, suspensa no seu filme seguinte.
A segunda reinvenção de si mesmo feita por Coutinho, iniciada com Santo Forte, foi completada com Edifício Master, em 2002. E em 2007, aos 74 anos, fazendo Jogo de Cena deu início a sua terceira transfiguração, que prosseguiu com As Canções, em 2011, e continua em curso.