ILUSTRAÇÃO: GIORGIA MASSETANI_2012
Tua sina te assina esse destino
A arqueologia diletante descobre uma segunda Ítaca, à qual Ulisses não chegará nunca enquanto houver vontade de voltar
Mario Sergio Conti | Edição 67, Abril 2012
Logo que a aurora de dedos róseos surgiu matutina na literatura ocidental, Ulisses, o saqueador de cidades, estava lá. Mas lá onde? Estava num poema épico composto há 2 700 anos, no qual o herói astucioso faz a viagem de volta à terra onde nasceu e era rei, a ilha de Ítaca.
Ele retornava de Troia, onde combatera na guerra de dez anos dos gregos para salvar a bela princesa Helena, sequestrada pelos inimigos. A viagem de Troia a Ítaca se alonga por outros dez anos, durante os quais Ulisses vive aventuras prodigiosas. Enfrenta ciclopes, canibais e monstros de muitas cabeças, ouve o canto malévolo das sereias e se safa, é ajudado pela deusa Atena e atacado por Posêidon, desce ao Inferno e conversa com almas penadas, ganha de presente um saco de ventos que o empurrarão mar adentro, seus marinheiros são transformados em porcos.
Ulisses também vive o destino comum aos humanos entre a turba indistinta: enterra o amigo numa praia, deita-se com mulheres de tranças, toma vinho e come churrasco, trespassa inimigos com lâmina de bronze, naufraga em mar horrendo, é enganado, padece de frio, solidão, fome e medo, só quer ir para casa.
Ulisses estava lá: na Odisseia. Tudo o mais é incerto. Não se sabe se o seu autor, Homero, existiu mesmo ou a epopeia é obra de um bando de bardos. Não se sabe se o poema foi primeiro escrito ou declamado por analfabetos. Não se sabe se houve um Ulisses, seu filho Telêmaco e Penélope, sua mulher. Não se sabe de onde vem a língua em que foi composto: ela só existe na Ilíada e na Odisseia. Não se sabe como os versos subsistiram até 1488, quando foi impressa a sua primeira edição, em Florença.
A Odisseia se tornou porta de entrada do cânone ocidental (há mais de cinquenta traduções diferentes só para o inglês) e um dos seus livros mais influentes (inspirou d’Os Lusíadas de Camões ao Ulisses de Joyce) sem que se saiba onde ficavam Troia e Ítaca. Desde 1870, contudo, se acredita que a lendária cidade dos troianos existiu de fato. Um arqueólogo alemão, Heinrich Schliemann, escavou ruínas perto de Anatólia, nas proximidades da costa onde hoje fica a Turquia, e chegou a um lugar que, concordam os eruditos, seria a Troia homérica.
Quanto a Ítaca, nem isso, apesar de haver uma ilha com esse nome no oeste da Grécia, no mar Jônico. Ela é descrita assim no canto 9 da Odisseia:
Ítaca de luz e sol é minha casa.
No alto dela fica nosso monumento,
o monte Nérito com sua relva viva ao vento.
Em torno há um anel de outras ilhas lado
a lado,
Samo, Dulíquio e Zacinto toda verde, mas a minha
ilha jaz mais para lá e longe, lá no mar aberto,
lá onde a sombra desce e escurece enquanto
as outras ilhas olham o salto do sol no cais da Aurora.
Minha ilha é áspera mas boa para criar os filhos,
e não sei de outro lugar tão suave sobre a Terra
quanto a terra de onde um homem veio.
Ocorre que a geografia do poema não bate com a da ilha de verdade. Na Ítaca real não há monte algum. Ela está mais próxima do continente do que do mar aberto. As outras ilhas ficam para os lados do poente, enquanto é em Ítaca que nasce o sol. Tampouco há vestígios do palácio de Ulisses, onde Penélope repelia os pretendentes e ansiava por ele, tecendo de dia o manto que desfazia à noite.
Estava-se nessa ignorância até Robert Bittlestone publicar Odysseus Unbound, livro no qual defendeu que a Ítaca de hoje não é a verdadeira, que existiu outra ilha onde Ulisses realmente reinou. O ponto de partida para a hipótese foi uma passagem de Strabo, geógrafo grego do tempo de Cristo. Strabo escreveu que em Cefalônia, a ilha maior vizinha a Ítaca, havia um corredor que era coberto pelo mar. Bittlestone especulou que, no tempo de Homero, tal canal existiu, e separava Cefalônia de outra ilha, a Ítaca autêntica, cuja geografia condiz com a da Odisseia.
Robert Bittlestone não é geógrafo, historiador ou douto helênico. Inglês, de profissão ele é um homem de negócios – escreveu um livro chamado Gerência Financeira para Negócios: Quebrando o Código Oculto, veja se é possível. Mas a sua hipótese é engenhosa. Ele observou que o arquipélago de Cefalônia fica numa intersecção tectônica, zona de terremotos sazonais onde, Zeus, o senhor do trovão, se daria bem. O último tremor de terra foi em 1953, e provocou um enorme estrago. Arqueólogo amador, ele foi a Cefalônia com toda uma traquitana tecnológica e escavou o sítio onde ficaria o tal canal. As rochas, desmoronamentos e datações que encontrou conferiram credibilidade à sua ideia: é possível, para não dizer provável, que o istmo de Paliki tenha sido ilha outrora.
O mais recente relatório das pesquisas no lugar foi divulgado há pouco, em fevereiro. Ele diz que evidências científicas comprovam que houve ali um abalo sísmico, o aterramento do estreito marítimo e a anexação da pequena ilha a Cefalônia. Imagens de satélite captaram as fundações de uma vasta construção na ex-ilha. Essas ruínas subterrâneas seriam vestígios de um amplo palácio, o de Ulisses. Com isso, cada vez mais, de Harvard a Cambridge, estudiosos se convencem de que Bittlestone tem razão: há Ítacas.
Existe quem o contradiga com um baú de argumentos técnicos: eruditos existem para divergir acerca de questões eternamente em aberto. Mas isso importa menos. O que sobressai é o engenho poético da construção de Bittlestone: imaginação, ciência e diletantismo se uniram com o fito de provar que a Odisseia estava certa. Quem estava errada era a realidade, que foi devidamente adaptada à arte pela tecnologia.
A grande literatura está sempre certa. Pouco se sabe da sociedade que deu origem à Odisseia. Mas toda ela no poema está: nos costumes e ritos que ela evidencia, nas maneiras de trabalhar, saquear, consolar, explorar e amar dos homens e mulheres que a povoam. E essa capacidade de expor não se refere só ao passado. A epopeia mostra povos de ontem e de hoje em movimento. De Aristóteles a Adorno, as interpretações que eles fizeram da Odisseia servem mais de revelação do pensamento do grego e do alemão, e do mundo no qual viveram, do que propriamente de Homero.
Atena e Zeus morreram e ninguém os pranteia com libações de hidromel. Foram trocados por outros deuses e outras fantasias, mais em consonância com as sociedades de hoje. Mas as Ítacas permanecem, e a elas Ulisses não chegará nunca porque a viagem continua e navegar é preciso. Enquanto houver entre nós aqueles que queiram retornar aonde tudo começou, os rivais matar, reaver a amada, rever o filho, ou tenham nostalgia da terra que ficou para trás, a Odisseia prosseguirá.
Foi o que escreveu no século passado outro poeta grego, Konstantinos Kaváfis, no poema Ítaca, traduzido por Haroldo de Campos:
Todo tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar tua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
e que aportes velho, finalmente, à ilha,
rico do muito que ganhares no decurso do caminho,
sem esperares de Ítaca riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.
Leia Mais