Um vendedor de pipas em Badakhshān, em imagem de 2011: o Talibã, quando chegou ao poder nos anos 1990, baniu jogos e brincadeiras
Tudo já é passado
O que ficou para trás em Cabul
Adriana Carranca | Edição 180, Setembro 2021
Quando desembarquei em Cabul pela primeira vez, em 2008, a sensação foi de ter viajado dois milênios para o passado. As cadeiras do aeroporto da capital do Afeganistão, construído pelos Estados Unidos, estavam vazias. Do lado de fora, os afegãos conversavam sentados no chão, em grandes círculos, como é o costume local. Mesmo as casas ricas mantêm a tradição de reunir família e amigos no chão da sala, sobre tapetes e almofadas feitas à mão, às vezes em velhos teares. A maioria das mulheres usava burca. Na época, fazia sete anos que as tropas norte-americanas haviam derrubado o regime do Talibã, o grupo islâmico radical que governara o país de 1996 até 2001.
Tradições milenares se misturavam a novos costumes. Nas ruas de Cabul, o tecido azul contrastava com o hijab e túnicas coloridas, a calça jeans e o rosto maquiado das jovens que cresceram nas áreas urbanas em tempos de internet e conviviam com estrangeiros – diplomatas, agentes humanitários, funcionários das agências da Organização das Nações Unidas e das ongs que chegaram a Cabul no rastro da ocupação norte-americana em outubro de 2001.
Em outra visita ao país, em 2011, entrevistei Meena Karimi, de 8 anos, aluna do Instituto Nacional de Música do Afeganistão, fundado um ano antes por Ahmad Naser Sarmast, que se refugiara na Austrália quando o Talibã tomou o poder nos anos 1990 e voltou ao seu país sob a ocupação norte-americana com o sonho de ajudar a reconstruí-lo. Conversei com Sabina, de 9 anos, que morava com mais de mil crianças num abrigo e também estudava música no instituto de Sarmast.
Nas minhas viagens, fiz as fotos que aparecem nestas páginas. Mas os sons são o que mais me lembro de Cabul. O som dos aviões militares deixando a Base Aérea de Bagram rumo a alguma zona de combate. O som do muezim chamando para a reza aos primeiros raios de sol. O som dos geradores que mantêm acesos os varais de lâmpadas coloridas na frente do comércio. O som de Titanic, hit número 1 nas paradas de sucesso e nas lojas de cds e dvds piratas da capital. O som do batuque das tablas nas festas de casamento. O som de Mozart, Beethoven, Bach, Chopin e Vivaldi, nas apresentações dos meninos e meninas da primeira Orquestra Jovem do Afeganistão.
Um ou dois dias antes da volta do Talibã ao poder, Meena Karimi, hoje uma violoncelista de 18 anos, me deu a excelente notícia de que recebera uma bolsa integral para cursar o Interlochen Center for the Arts, em Michigan, nos Estados Unidos. Dias depois, já com o Talibã no comando, chorei ao saber que ela não conseguira deixar o país a tempo. Sua família estava sitiada em Cabul, com medo de sair de casa porque os fundamentalistas voltaram a rondar as ruas. Em seu primeiro regime, os radicais islâmicos baniram a música e os populares torneios de pipa que coloriam a paisagem desértica. Proibiram as meninas de estudar e até de brincar nas ruas. O instituto de Sarmast já está fechado.
Não consegui localizar Sabina, que hoje deve ter 19 anos. Desconheço seu destino, como é desconhecido o futuro de Fauzia Kofi, a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente do Parlamento na história do Afeganistão. De Shamsia Hassani, a primeira grafiteira. Das atletas da primeira equipe de boxe feminino do país. Das skatistas de Cabul. Das estilistas, professoras, jornalistas, violoncelistas como Karimi, e tantas outras – e tantos outros – das novas gerações de afegãos.