ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Tudo junto e misturado
A geleia geral acontece domingo no Esquenta!
Raquel Freire Zangrandi | Edição 81, Junho 2013
O juiz federal Odilon de Oliveira, que mandou prender traficantes na fronteira da Bolívia e do Paraguai e há catorze anos não anda sem escolta, foi tirado para dançar por uma bailarina no auditório. Mais alta que ele, do alto de uma sandália plataforma, cinturinha de pilão e vestida com calça boca de sino colada ao corpo em tons de vermelho, laranja e amarelo, ela parecia uma labareda esvoaçante. Ele vestia terno e gravata. Era a primeira atração musical do dia.
Naquela tarde de maio, o juiz Oliveira dividiu um sofá com uma dupla sertaneja, o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, uma ex-presidiária, uma diretora da Unesco, dois ex-traficantes, um coronel da Polícia Militar, o coordenador de uma ONG carioca, um policial civil e o presidente de um grupo afro-baiano. O que os mantinha sob o mesmo teto era a gravação do programa Esquenta!, apresentado por Regina Casé e exibido aos domingos na Globo.
O grupo heterogêneo permaneceu reunido por quase seis horas até o fim da gravação – só escapuliram para um xixi rápido, longe das câmeras. Faziam jus ao mote “Tudo junto e misturado”, repetido pela apresentadora sempre que há uma deixa. Numa alusão à presença de Paulo Skaf, da Fiesp, ao lado do ex-traficante Tuchinha, Regina comentou com a plateia: “Aqui é um troço diferentão, é sinal de que a festa tá funcionando!”
Se Carnaval fosse o ano inteiro, o Esquenta! seria uma escola de samba desfilando um enredo por semana. Regina Casé faz as vezes de puxador do samba, carro abre-alas, porta-estandarte e presidente da escola. O carnavalesco é o antropólogo Hermano Vianna, amigo da apresentadora e idealizador do programa. Cada cenário lembra um carro alegórico. As seis horas de desfile são condensadas em pouco mais de uma hora na edição que vai ao ar. Hermano vê o programa como um “grande laboratório” e gosta quando a situação foge ao controle, a plateia vira protagonista e as celebridades servem de coadjuvantes para os anônimos.
O elenco fixo se divide em alas: quatro passistas, uma banda completa, um DJ, uma dezena de assistentes de palco, sete cantores e músicos, oito câmeras, três teleprompters, oito crianças fantasiadas saltitantes, meia dúzia de garis uniformizados e uma plateia de jovens, velhos e crianças. Entre os que não aparecem no desfile, há uma equipe de pesquisadores que rastreia o Brasil atrás de personagens curiosos e novas tendências de comportamento.
A diretora-geral, Monica Almeida, assiste a tudo em oito monitores de vídeo em uma saleta fechada e suas instruções são ouvidas em off na plateia, como a voz de Deus vinda do além. Dentro do estúdio, quem lida cara a cara com Regina Casé é a diretora Daniela Gleiser, uma jovem seriíssima de pouco mais que 1 metro e meio de altura e menos de 50 quilos. Ela desliza pelo auditório como se tivesse rodinhas e frequentemente rabisca palavras de ordem numa tabuleta só para os olhos de Regina: “Tempo” (encurtar uma entrevista) ou “Parafina” (perguntar se o cabelo da loirinha é natural).
O Esquenta! estreou em janeiro de 2011, com um programa que teve a participação do ex-presidente Lula, gravada fora do auditório. Era a semana de posse de Dilma Rousseff e ele falou de sua saída de cena, em tom de modéstia calculada: “Agora que deixei a Presidência, não sei o que vou fazer. Eu desvirei presidente.”
Fernando Henrique Cardoso também esteve no programa noutra ocasião, para defender a descriminalização das drogas. Entrou triunfante no auditório, gingando faceiro ao som da bateria, enquanto surgia numa passarela em meio ao público. O sociólogo acompanhou, sorridente, o refrão Vou apertar, mas não vou acender agora, de Bezerra da Silva. Regina Casé tascou logo de cara: “Presidente, os seus amigos não acharam que você pirou quando resolveu mexer com esse negócio de drogas?” Ele respondeu que o problema do tráfico afeta a democracia na medida em que a violência e as armas fogem ao controle do governo. E emendou: “O usuário de drogas não pode ser tratado como criminoso.” O auditório reagiu com palmas efusivas.
Regina Casé caprichou na autoesculhambação para quebrar o gelo no estúdio antes do início das filmagens. “Sou a única testa que ainda mexe, não tem botox. O cabelo também é todo meu, é tudo vintage”, disse, acariciando os cachos que caíam em cascata.
Naquela tarde, a ideia era reunir movimentos sociais, falar de violência urbana e apresentar as soluções que estão em curso. Em outras palavras, criar o que José Júnior, coordenador do AfroReggae e convidado do programa, batizou de “pontes”, estimulando o debate entre pessoas que vivem em extremos opostos na sociedade. Tudo isso embalado por um encontro musical pouco ortodoxo. Zezé di Camargo e Luciano entoaram o clássico É o Amor ao som da bateria do Olodum. Momentos antes, Paulo Skaf cantarolava, compenetrado, O Morro Não tem Vez, acompanhando a letra pelo teleprompter.
Logo no início da conversa, um alarme disparou no estúdio. Era a tornozeleira do ex-traficante Tuchinha avisando que a bateria estava acabando. Assessor de José Júnior, ele cumpre o fim da pena em regime semiaberto e é obrigado a usar o dispositivo de monitoramento. Washington Rimas, o Feijão, também ex-traficante e integrante do AfroReggae, contou que, ainda garoto, fazia pequenos favores para a esposa de um traficante, e ela o pagava com iogurtes. Ele disse que entrou para o tráfico porque sonhava em ter em casa uma geladeira cheia da iguaria. “Sonho de gordo”, reconheceu.
Pernambucano de Exu, o juiz Odilon de Oliveira se mudou com a família para Mato Grosso ainda jovem, fugindo da seca, e se alfabetizou somente aos 17 anos. Formou-se em direito aos 29 anos e, aos 38, tornou-se juiz federal. Zezé di Camargo quis saber a opinião do meritíssimo sobre a redução da maioridade penal. Sem hesitar, o juiz disse que é a favor, por considerar que um jovem de 16 anos já tem plena consciência do que faz e deve ser responsabilizado por seus atos. A plateia parou para pensar – a maioria preferiu ficar em silêncio.