ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Ucrânia do Oeste
Cidadezinha da Califórnia se solidariza com o país invadido
Carol Bensimon | Edição 189, Junho 2022
De Mendocino (Califórnia)
“Bem-vindos ao nosso evento beneficente em prol da Ucrânia”, disse o mestre de cerimônias Doug Nunn ao subir no palco, após o show de uma banda de bluegrass, música “de raiz” do Sul dos Estados Unidos. Era o primeiro domingo de maio e imensas bandeiras azuis e amarelas tremulavam na praça da rua principal de Mendocino, cidade de 855 habitantes na costa da Califórnia. “Claro que são os ucranianos que estão fazendo todo o trabalho duro, a 10 mil km de distância, enquanto nós estamos aqui ouvindo boa música”, continuou Nunn. “Há uma diferença nisso.” Na praça, ocupada por cerca de duzentas pessoas, algumas emitiram um riso nervoso.
Nunn manteve seu tom meio comédia stand-up, meio protesto pacifista, fazendo o público repetir, em ucraniano, as frases: “Liberdade à Ucrânia” e “Rússia, nos deixe em paz”. Minutos mais tarde, uma cantora local foi convidada a entoar o hino do país invadido.
Divulgado em cartazes que ostentavam um retrato do presidente Volodymyr Zelensky pintado pela cantora folk norte-americana Joan Baez, o evento beneficente parecia ter alcançado um sucesso considerável. Os moradores de Mendocino e cidades vizinhas compraram tíquetes de 5 dólares e os trocaram por mudas de plantas (1 tíquete), buquês de girassóis (2), colares azuis e amarelos (4) ou refeições preparadas com ingredientes orgânicos e locais (7). Todo o valor arrecadado seria revertido para a causa ucraniana.
A grande atração do dia foi o leilão silencioso. Os interessados em certo objeto leiloado deixavam sua oferta, a partir de um lance mínimo, em uma folha de papel, com seu nome e telefone. A comunidade local doou bens diversos para o leilão, como garrafas de vinho, uma prancha de stand up paddle e uma marionete que lembrava o personagem do filme Brinquedo Assassino (o boneco acabou vendido para uma certa Gaby por 70 dólares). Alguns dos melhores itens eram difíceis de serem expostos sobre a mesa: jantares em restaurantes, diárias em pousadas e uma semana de hospedagem em uma casa luxuosa no Havaí. Um caminhão de esterco entregue em casa (lance mínimo: 100 dólares) era representado por uma amostra do produto em um pote de plástico.
Quando o Exército de Putin invadiu a Ucrânia, e o Ocidente, em solidariedade, iluminou de azul e amarelo alguns de seus monumentos mais icônicos, Dave Gross se sentiu inspirado a fazer algo semelhante na pequena Mendocino. Professor aposentado de ciências e história, Gross, de 81 anos, procurou em primeiro lugar o apoio do banco local. A instituição ocupa um prédio de 1873, cuja torre sustenta uma figura alada e uma donzela esculpidas a partir de um único tronco de sequoia-vermelha. O banco disse não.
Gross então se lembrou das bandeiras que costumam ser instaladas na cidade durante os festivais de cinema e de música. E se ele fizesse algo semelhante para mostrar que aquele enclave progressista da Califórnia rural apoiava a luta dos ucranianos? Providenciou uma bandeira azul e uma amarela e pediu autorização para colocá-las na praça da cidade, propriedade do Rotary desde 2012. O Rotary disse sim. Hoje, vinte pares delas podem ser vistos em diversos pontos de Mendocino, como hotéis, a igreja presbiteriana e o Corpo de Bombeiros.
Mas Gross queria fazer mais e, durante o mês de abril, começou a organizar um evento beneficente. Para isso, contou com a ajuda do próprio Rotary e de Meredith Smith, proprietária do Mendocino Cafe, um restaurante cuja fachada já estampou murais que retratavam Michelle Obama e a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez. Smith pagou pelo seguro do evento, obrigatório em qualquer tipo de aglomeração, e providenciou a comida que seria vendida no dia.
Enquanto Gross, Smith e o Rotary organizavam o evento, um jovem casal de ucranianos, Anna e Nykolai, voava da Rússia ao México. Ambos trabalhavam como médicos em Moscou quando a guerra explodiu. Ao chegar a Tijuana com cerca de outros cinquentas refugiados, o casal encontrou a mãe de Nykolai, Maryia (os nomes são fictícios, a pedido dos três ucranianos, que preferem não se expor).
O trio cruzou a fronteira com os Estados Unidos. Por estarem acompanhados de uma portadora de green card – Maryia é casada com um cidadão norte-americano –, Anna e Nykolai puderam entrar legalmente no país sob o status de refugiados. Doze horas de estrada depois, chegaram a Fort Bragg, cidade de 7 mil habitantes vizinha a Mendocino, onde Maryia reside.
O casal de recém-chegados foi convidado a participar da programação do evento em Mendocino, mas recusou o convite. Maryia, no entanto, subiu ao palco para um breve discurso. “Tenho a grande honra de agradecer por tudo que vocês estão fazendo”, disse, segurando junto ao peito um buquê de girassóis. Discretos no meio do público, seu filho e sua nora filmavam o discurso. Mais tarde, os três ucranianos foram abordados por um homem que os presenteou com um exemplar do Novo Testamento.
O resultado da ação beneficente superou as expectativas de Dave Gross. Entre vendas, doações diretas e os lances do leilão, a arrecadação da tarde chegou a 30 mil dólares (cerca de 150 mil reais). No dia seguinte, uma doadora anônima ofereceu mais 20 mil dólares à causa.
Metade do valor arrecadado será doada à Nova Ukraine, uma ONG que oferece ajuda humanitária ao país desde dezembro de 2013. A outra metade deve chegar à Ucrânia pela rede do Rotary. “Enviaremos o montante a um rotariano na Alemanha, que comprará remédios e mantimentos a serem enviados para um rotariano de Kiev”, explica Raymond Alarcon, membro do Rotary de Mendocino.
Anna e Nykolai esperam um dia poder exercer a medicina nos Estados Unidos. O casal está temporariamente hospedado em Mendocino, na casa de uma senhora que prefere não se identificar, em um condomínio de alto padrão a poucos quarteirões da praia.
“Você é muito generosa. Tem um coração enorme”, disse Maryia à mulher que está dando abrigo a seu filho e sua nora, na primeira vez que a encontrou. “Não, não tenho”, respondeu a norte-americana. “Tenho só muita culpa.”