Uma hóstia, seis enchilladas, bife com batata frita ou um hambúrguer de feijão antes da morte
Última ceia
Philip Workman pediu uma pizza vegetariana na hora de morrer
| Edição 9, Junho 2007
Era 1:38 de uma madrugada de maio, em Nashville, no estado do Tennessee, quando a primeira dose de sódio-tiopental correu pelas veias de Philip Workman. O resultado foi imediato: o paciente ficou letárgico, semiconsciente e pronto para a segunda invasão química a seu organismo, o brometo de pancurônio, que paralisa o diafragma e causa falência do pulmão. Em seguida, lhe foi injetado o terceiro, e letal, componente do coquetel da morte, o cloreto de potássio, que induz o ataque cardíaco. Poucos minutos depois, o homicida de 53 anos, amarrado à cama da sala de execuções da Penitenciária de Segurança Máxima Riverbend, estava morto.
Tudo foi feito de acordo com o rigoroso Manual de Execuções da instituição – tudo menos o pedido feito horas antes por Workman. Como última refeição, à qual todo condenado tem direito, ele pedira uma pizza. Mas com delivery, e não para ele: ela deveria ser entregue ao primeiro mendigo das redondezas da penitenciária. Há vinte e cinco anos, o próprio Workman mendigava, nas ruas de Memphis, quando matou um policial, durante assalto a uma lanchonete.
Pedido feito, pedido negado, e a execução de Workman teria permanecido confinada à burocracia estatística americana – foi a 17ª do ano – não fosse o detalhe da pizza. Pela lei, toda execução conta com um número variado de testemunhas obrigatórias, e suas circunstâncias são de domínio público. A menos que o condenado peça sigilo sobre a sua última refeição ou derradeiras palavras, elas invariavelmente freqüentam o noticiário local do dia seguinte.
Não foi diferente nesse caso, e o que se seguiu foi uma dessas reações em cadeia que sociólogos passam os anos seguintes tentando explicar. A população de Nashville, que vota sistematicamente a favor da pena de morte, foi tomada por compaixão dupla. Comoveu-se com o gesto altruísta de Workman, que abriu mão do seu último repasto, e despertou para a paisagem dos sem-teto que povoam as adjacências da prisão Riverbend. Resultado: nas 24 horas seguintes à execução, ocorrida no dia 9 do mês passado, choveu pizza nas ruas de Nashville. Dezessete foram enviadas, anonimamente, para um abrigo de menores. Outras 150 foram entregues na Rescue Mission, para gáudio dos 800 mendigos adultos que ali passam as noites. Outras, ainda, vieram de estados tão distantes como Minnesota. Sobretudo, choveram doações da entidade Tratamento Ético para Animais, que se comoveu sobremaneira com a ênfase vegetariana do pedido do condenado.
O último pedido de Workman não é propriamente inédito. Há dez anos, em 28 de maio de 1997, o homicida Robert Anthony Madden, 33 anos de idade e onze de corredor da morte, tinha feito pedido semelhante, também em vão. Isso porque as normas que regem a execução da pena de morte nos Estados Unidos não contemplam exceções: a última ceia não pode ser terceirizada. Embora cada estado siga seu próprio manual, algumas regras são comuns aos 38 estados americanos que reintroduziram a pena de morte, pelo voto, em 1976. Uma delas é o porte obrigatório de fralda pelo condenado em dia de execução. Margie Velma Barfield, por exemplo, que matou a mãe, o noivo e um casal de idosos por envenenamento, teve permissão do sistema penal da Carolina do Norte para ser executada vestindo pijama cor-de-rosa. Mas com fralda por baixo. Já James Howard Snook, excêntrico matador de secretária e amante que pediu para fazer sua última refeição envergando um smoking, teve o pedido negado. Morreu eletrocutado numa Old Sparky, codinome para cadeira elétrica, devido às faíscas que dela brotam. Apenas no Alabama o dragão da morte atende pelo carinhoso apelido de Yellow Mama.
Desde que a pena capital foi reintroduzida nos Estados Unidos, há mais de três décadas, depois de quatro anos de debates ferozes, apenas doze dos 50 estados mantiveram seu voto contrário à prática. A maioria absoluta (33 estados) adotou a injeção letal como forma de execução. Em pelo menos cinco deles a câmara de gás ainda existe como modalidade opcional. No Arizona, o condenado que preferir morrer por injeção precisa entregar requerimento cinco dias antes de ser executado. Quanto à cadeira elétrica, que funcionou a todo vapor até meados dos anos 60, ela ainda é usada em sete estados. Restam dois estados excêntricos no seu conservadorismo: o Oklahoma ainda não aposentou o pelotão de fuzilamento, e o Delaware ainda dispõe da forca, aplicada nos condenados à pena capital antes de 1986.
Os rituais das últimas horas são também tão variados quanto as formas de matar. Coube a um interno da penitenciária de Huntsville, no Texas – célebre por ser a campeã numérica de execuções – fazer um minucioso levantamento das refeições servidas naquela unidade. O autor da compilação de 503 páginas, Brian D. Price, não poderia ser mais bem talhado para a tarefa: ao longo de dez anos, enquanto preso, ele foi o cozinheiro-chefe encarregado de preparar a última ceia dos ocupantes do pavilhão Walls, o corredor da morte do presídio. A obra, intitulada Meals to Die For (algo como “Refeições de Morrer“) chegou às livrarias em 2004, um ano depois de o autor ter obtido liberdade condicional. Ele disseca 211 pedidos de despedida gastronômica. Como adendo, Price oferece as 43 receitas mais populares entre os condenados à morte – entre elas, a Sopa Post-Mortem, Gulash Guilhotina, Frango à Câmara de Gás ou Batata Frita Obituário.
Além da obra do texano, já existe toda uma literatura em torno do tema. Last Suppers: Famous Final Meals from Death Row, de Ty Treadwell e Michael Vernon, avalia a culinária oferecida aos condenados à morte nos Estados Unidos e, de quebra, elabora um criterioso ranking da cuisine du dernier plat. A penitenciária de Indiana é a única que mereceu quatro estrelas, por permitir que o condenado escolha qualquer prato, sem limitação de preço, em qualquer restaurante das redondezas. Além disso, é a única que dá direito a acompanhante na última ceia, e chuveiro e troca de roupa após o banquete. A Carolina do Norte ocupa o segundo lugar (três estrelas), por estender o benefício de um menu especial aos demais ocupantes do corredor da morte. Assim, em noite de execução, todos comem bem, não apenas aquele que vai morrer. Já no Texas, o sistema prisional só permite oferecer ao condenado o que puder ser preparado na cozinha da própria instituição. Assim, um pedido de lagosta se transmuta em filé de peixe, e camarões fora de época podem se materializar sob a forma de sardinhas. O estado de Utah oferece menu regular para vegetarianos, com hambúrgueres de feijão tidos como excelentes.
Forçosamente, a última ceia de um condenado à morte é um tema cheio de esquisitices pitorescas. Usando de seu direito a uma última declaração, o matador Thomas Grasso, executado em Oklahoma, em 1995, ditou: “Quero que a imprensa registre que pedi macarrão Spaguetti-O’s, e só me deram espaguete comum”. Já David Allen Castello, depois de passar quinze anos no corredor da morte em Iowa, comeu com gosto a sua ceia à mexicana: quatro tacos, seis enchilladas, seis tostadas, duas cebolas inteiras, cinco jalapenos e um milkshake de chocolate. Só ficou faltando o maço de Marlboro, devido à política antitabagista do sistema carcerário americano. Houve quem pedisse apenas uma hóstia. Outro só aceitou ingerir um hambúrguer preparado pela mãe. Vários abrem mão do privilégio e optam por comer a mesma refeição de sempre, em solidariedade aos que ainda vão ser executados.
Por trás do folclore das curiosidades da última ceia, o seu fulcro é o elo primal do alimento, fonte de vida e prazer, no momento mesmo da morte. Por um instante, o degolador que matou quatro pessoas e pede um bife com batata frita se torna mais compreensível. Dentre todos os citados, só um permaneceu impenetrável até a derradeira refeição: Patrick F. Rogers, garçom negro que se despediu do mundo sem comer e pediu apenas uma coca-cola.
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