Fiquei impregnado até os ossos pelo estilo cortazariano. De tanto ler e reler os fragmentos de O Jogo da Amarelinha acabei me sentindo coautor da bagaça e enfiando na cabeça que, de algum jeito, em algum dia, eu ia virar escritor FOTO: SARA FACIO
Último telefonema para o cronópio
Como Julio Cortázar mudou minha vida
Reinaldo Moraes | Edição 95, Agosto 2014
É o seguinte: o Cortázar faria 100 anos por esses dias, não fosse a suprema gafe de ter morrido. Isso não é coisa que se faça, sobretudo se o cara é um cronópio certificado por despeitabilíssimos institutos interplanetários de Patafísica Aplicada, Surrealismo Off-Road, Transumância à la Mode e Línguas Glíglicas, Esperânticas e Transgalácticas. E sendo que o Cortázar, inda por cima, foi egrégio diretor-presidente-em-exercício-moderado de todas essas entidades da mais ilibada e desequilibrada inexistência.
Fico imaginando as deliciosas autoironias com que Julio Cortázar haveria de brindar seus 100 anos, iniciados cartorialmente no dia 26 de agosto de 1914, mas com toda certeza tramado nove meses antes, como é praxe na espécie humana, cronópios, famas e esperanças incluídos. Pra começar, aos milhares de jornalistas do mundo todo ávidos por uma declaração sua, ele anunciaria ter baixado a categórica proibição de bolo com 100 velinhas na sua festa, em vista da alarmante quantidade de perdigotos que um ancião centenário é capaz de borrifar em cima de um bolo ao tentar soprar 100 velinhas, junto com alguma eventual prótese dentária que lhe possa escapar da boca. Sem falar no risco de um AVC por excesso de esforço expiratório lá pela sexagésima velinha, com o pobre macróbio emborcando de cara no alvo e cremoso chantilly, que lástima, tão cobiçado pelos convivas. Um trespasse do aniversariante, nessas condições, seria um duro golpe pros seus amigos, em especial suas amigas e fanzocas de época, já bem velhinhas elas também, que teriam ido à festa com alguma dificuldade locomotora para vê-lo apagar as velinhas e pra comer o bolo e se refestelar com o chantilly da cobertura, visto que depois de um certo número de décadas vividas já não há muitos prazeres na vida maiores do que bolo com cobertura de chantilly, e de graça.
Isto posto, e mesmo correndo o risco de parecer um deslumbrado querendo tirar uma lasquinha da fama do grande escritor argentino, devo dizer que conheci o Cortázar em 1979, falei com o Cortázar, me despedi do Cortázar e nunca mais vi o Cortázar. Esse encontro com o Cortázar se deu por um desses acasos tramados por caprichosas entidades transumanas que habitam as acomodações de mármore e suspiro dos mitos e dos sonhos, ou poronga que o valha. Podia já ir contando de cara como se deu esse encontro, mas vejo que tenho aqui um precioso gancho narrativo e não pretendo desperdiçá-lo. Então, digo apenas que eu vou contar, prometo que vou, só que daqui a pouco. Me deu na santa veneta de contar outras coisas antes à sombra desse gancho em flor. Ganchos, em geral, ficam na ponta de um fio ou cabo, menos o do Capitão Gancho, que está na ponta de um braço. E, claro, há ganchos de pendurar rede, presos em paredes ou colunas, e outros, presos ao teto, de pendurar coisas, como vasos de planta, mas o gancho que me interessa aqui é mesmo o atado na ponta de um fio. Te convido, pois, a percorrer esse fio desde o começo até o famoso gancho.
Era 1972. Tinha uma ditadura escrota lá fora, num lugar chamado Ame-o ou Deixe-o, pelo que se lia nos stickers em carros e vidraças, além das propagandas oficiais na imprensa. Mas dentro do meu quarto havia a 2ª edição em português de O Jogo da Amarelinha (Rayuela, que se pronuncia rajuêla, em argentinês), o livro individual mais maçudo que eu tinha enfrentado até então, com 635 páginas. Meu recorde anterior era o Grande Sertão: Veredas, e suas 568 páginas. Os sete volumes de O Tempo e o Vento, lidos ainda na adolescência, também passavam, cada um, de 400, mas ali era o Verissimo, a prosa fluida dando corpo ágil à vigorosa narrativa realista com forte base histórica, que te fazia esquecer de que aquilo era um livro e de que havia um tempo universal, cronológico, burocrático, só esperando você largar a leitura pra te atacar a golpes de relógios e compromissos.
Mas tanto no Guimarães Rosa quanto no Erico Verissimo, o leitor se vê engolfado pelo universo humano tramado pela linguagem, seja a exuberantemente garimpada e recriada, pelo Rosa, quanto a eficiente, musculosa, e nada autorreflexiva do Verissimo, que tá ali pra servir à história, e faz isso com a maior competência.
Rayuela, que depois daquela tradução em português eu reli umas 200 vezes em espanhol, donde eu me permitir doravante nomear o romance apenas em argentinês, Rayuela, também te jogava pra dentro de um denso universo humano, es lórrico, mas a narrativa te convidava a toda hora a sair fora dela e olhar pros andaimes, pra oficina, pra carpintaria do livro, forçando seu intelecto a afrouxar os suspensórios do descrédito e tomar consciência de que estás diante de uma obra de arte, e não dessa dama tangível e tangedora chamada realidade. E também a se interessar por outras coisas que não apenas a grande história de amor ali tramada, em pura prosa ludopoética, entre Oliveira e Maga.
A cada página uma porta se abria pra algum tipo de transcendência artística, existencial, erótica. Só religiosa é que não, graças a Deus. E era bastante previsível que um garoto universitário de classe média como eu, filho único incurável, meio perdido em si mesmo na solidão do Butantã, bairro que ficava nas pré-cucuias da cidade, às margens do rio Pinheiros, esgoto a céu aberto que atravessa o sudoeste de São Paulo, tivesse, em geral, grande fome de transcendências. E de otras cositas más, tão ou mais peludas que transcendências, por supuesto, mas esse é outro assunto.
Rayuela já começava causando, pois entre o frontispício e as três epígrafes o autor avisava que “este livro é muitos livros, mas sobretudo é dois livros. O leitor está convidado a escolher uma das duas possibilidades seguintes…”.
As duas possibilidades eram: 1) ler os capítulos, um a um, em ordem direta, até o capítulo 56, desprezando “sem remorsos” os demais 99 capítulos, que apesar de mais numerosos eram, no geral, mais curtos, e ocupavam cerca de um terço do livro; ou 2) ler o cartapácio aos saltos, como no jogo da amarelinha, com avanços e recuos entre os capítulos, seguindo uma ordem indicada ao pé de cada capítulo. Qual dessas opções você escolheria aos 22 anos, sendo um universitário barbudo, leitor voraz de literatura, da canônica a qualquer birutice que lhe caísse nas mãos, fiel devoto de São Guevara, São Lennon, São Caetano (o do Nordeste, não o do Sul), Santo Gil, Santo Chico e São Jagger, cheio de desprezo pela tríade tradição, família & propriedade (exceto o fusca 0 km que eu havia ganho do papai, minha vitrola, meus livros, meus discos e minha máquina fotográfica), e repleto de ódio pelas autoridades usurpadoras e torcionárias da nação? – é o que eu pergunto.
A resposta a essa pergunta retórica é arquióbvia, e lá fui eu saltitando pelo livro-jogo afora e adentro, feliz de me sentir do time dos raros & loucos que não se negavam à aventura lúdica proposta pelo autor. Esse esquema labiríntico dava margem a uma vertiginosa labirintite intelectual, rompendo com a linearidade da leitura, apesar do fio de Ariadne que o autor fornecia ao leitor pra se guiar por aquele mar de fragmentos de narrativa, de personagens românticos, boêmios, burlescos, trágicos, e de inúmeras citações de outros autores, de transcrições de notícias de jornal, e sei lá mais o quê.
A certa altura do capítulo 155 você se via, com certo espanto, na gloriosa última página do livro físico, aquela que tanto alívio traz ao leitor disciplinado – o “leitor-fêmea”, como o chamava Cortázar –, só para se dar conta de que ainda estava longe do fim do “material”, digamos assim, pois o numerinho no pé do capítulo te remetia ao capítulo 123, que, por sua vez, te chutava pro 100, que também te direcionava pra outro capítulo, até você se dar conta de que já estava relendo o bagulho, como aconteceu comigo da primeira investida.
Ainda me lembro do coquetel de emoções desencontradas que senti ao me ver preso na circularidade de uma narrativa assombrosa de louca, de radical, na suicidária disposição de botar a linguagem numa sinuca de bico, pondo em risco a todo momento o efeito-romance, e de lúdica, dramática, absurda, erudita até o cu fazer bico, lírica até as lágrimas e ao gozo, e de novo, louca, radical, lúdica etc., etc., etc. Era um jogo, aquilo, no qual entrei de cabeça, percebendo que aceitar suas regras me dava acesso a um mundo de ideias e sensações – e, por que não dizer, de emoções – que nenhuma literatura “normal” me franqueara até então. Me considero um cara avisado o bastante pra não incorrer no pegajoso clichê de afirmar que O Jogo da Amarelinha mudou minha vida, mas, quando não tem ninguém olhando, é isso mesmo que digo pra mim mesmo cada vez que penso no livro e em Julio Cortázar: mudou minha vida.
Fora do livro, como disse, era o meu quarto de sobrado geminado, e fora dele era o Brasil dos generais torturadores, o Brasil da minha família católica, apostólica e careta no úrtimo, cheia dos interditos que tinham de ser burlados com astúcia, nos melhores dos casos, e gritarias biliosas, nos piores, o Brasil da Faculdade de Ciências Sociais na USP, que também podia se chamar de ciências melancólicas (vários dos melhores professores tinham sido aposentados compulsoriamente ou seguido pro exílio), naquele deserto meio esquálido que era a Cidade Universitária de então, locação ideal pruma ficção científica distópica de baixo orçamento, inda mais à noite, período em que eu a frequentava, e também o Brasil da “Gê-Vê”, o hiper-mega-super-coxinha curso de administração de empresas que eu tocava em paralelo, numa tentativa canhestra de mostrar aos velhos e ao mundo que eu ainda haveria de ser um cidadão prestante e integrado, e não o comunistinha hippie chegado em garotas, copos, bares com amigos tagarelas, cigarrinhos fedorentos e as mesas de snooker da avenida São João que eu frequentava de madrugada com o saudoso Beto, meu colega da USP.
Foi então que eu conheci um amigo com nome de partícula atômica, durante um workshop de fotografia no MASP, ministrado pela Claudia Andujar e seu então marido, George Love, que tinham se notabilizado pelas fotorreportagens em revistas, como a excepcional Realidade de 1968, e livros, como os muitos e impactantes volumes publicados por Claudia com fotos dos índios do Brasil. Esse amigo fazia filosofia na PUC, tinha uma namorada de uma lindeza estranha (era manequim de família lituana) e uma câmera japonesa reflex Olympus, o fino da bossa em matéria de câmeras de 35 milímetros, bem melhor que a porquera da minha Praktica alemã-oriental, que custava metade do preço da Olympus e cuja mera posse já tornava seu dono um aspirante à condição de cronópio honorário, de qualquer lado da ideológica Cortina de Ferro (de concreto, na real) que dividia as duas Alemanhas.
Cronópio, se você não sabe, é o principal grupo da antropotaxonomia patafísica inventada pelo Cortázar, ao lado dos famas e das esperanças. Considerando que um cronópio jamais te daria uma definição minimamente racional do termo que o define (até poderia tentar, mas acabaria se lembrando de que está na hora de passar o Chaves na tevê e se esquecendo do assunto), valho-me das pistas que o próprio Cortázar deu sobre a matéria em seu Histórias de Cronópios e de Famas (de 1962, um ano antes da aparição de Rayuela no mundo hispanofônico), livro que lançou aquela taxonomia com enorme sucesso entre cronópios do mundo todo e que um fama por certo classificaria de “inclassificável”. Dá uma olhada:
“Não sem trabalho, um cronópio chegou a estabelecer um termômetro de vidas. Algo entre termômetro e topômetro, entre arquivo e curriculum vitae. Por exemplo, o cronópio recebia em sua casa um fama, uma esperança e um professor de línguas. Aplicando seus descobrimentos, estabeleceu que o fama era infravida, a esperança paravida e o professor de línguas intervida. Quanto ao cronópio mesmo, considerava-se ligeiramente supervida, mais por poesia do que por verdade.”
Deu pra entender? Se não, aí vai mais um pitaco:
“Quando os cronópios cantam suas canções preferidas, se entusiasmam de tal maneira que com frequência se deixam atropelar por caminhões e ciclistas, caem da janela e perdem o que tinham nos bolsos e até a conta dos dias. Quando um cronópio canta, as esperanças e os famas acodem a escutá-lo, embora não compreendam muito seu arrebatamento e, em geral, se mostrem algo escandalizados.”
Bueno, voltando à minha Praktica e ao meu amigo com nome de partícula atômica, o fato é que, à parte o grande interesse pela arte da fotografia, eu e ele, ambos da mesma idade, descobrimos outra crucial afinidade que nos aproximou naqueles sombrios primórdios setentistas: os dois éramos leitores devotos do Cortázar, em especial de Rayuela, nossa bíblia existencial e antídoto comprovado contra a solenidade e a chatice. Um de nossos números preferidos nas mesas de bares e restaurantes era citar este ou aquele trecho do livro e, ato contínuo, sacar o dito-cujo da bolsa (andávamos com enormes bolsas de couro ou lona), localizar com espantosa rapidez a página em questão, invariável e impiedosamente sublinhada e comentada à lapiseira ou esferográfica, e declamar, alto e bom som, este ou aquele texto do Cortázar mais adequado à circunstância, para grande alegria e admiração de nossas namoradas, amigas e amigos. Não todos, claro, mas na certa as e os mais legais.
Pois então, Rayuela mudou minha… Ops, já falei isso? Não faz mal, falo de novo: mudou minha vida. Não exatamente pra melhor, nem pra pior. Mudou para o lado de lá, mais além da dura e intranscendente realidade, que, não obstante, segundo o Woody Allen, ainda é o único lugar onde é possível comer um bom bife. Mas eu já estava de saco cheio de bons bifes. Eu queria outra coisa. Que coisa nunca soube direito, mas tinha certeza que era o mesmo que queria Oliveira, o personagem de Rayuela, naquelas 635 páginas que já começavam a se destacar da encadernação e que eu tomava direto na veia em bases diárias.
De tanto ler e reler os fragmentos daquela narrativa constelar, agora numa ordem aleatória, como se o jogo da amarelinha tivesse virado o jogo da mãe joana, acabei me sentindo coautor da bagaça e enfiando na cabeça que, de algum jeito, em algum dia daqueles que estavam por vir – aos 22 anos, você pode contar com muitos dias-por-vir à sua disposição, se for vacinado e não pegar algum voo micado da Malaysian Airlines –, eu ia virar escritor, pois já tinha virado aquele cara do livro, o Oliveira, a vagabundear por uma Paris de sonho e pesadelo, e o fétido rio Pinheiros atrás do sobrado da minha família no Butantã já se transformara no romântico Sena, e eu saía todos os dias a perambular pelo Centro da minha Paris paulistana em busca da Maga – ¿Encontraría a la Maga?, é a primeira frase de Rayuela –, amante aleatória desfrutável apenas por quem se dispõe a seguir à risca os mais patafísicos protocolos do grande acaso pelas ruas, pontes, cais e galerias da grande cidade onírica.
O processo de transmutação identitária, que propiciou à minha consciência deslizar de mansinho pra dentro de um ser ficcional, é descrito em detalhes igualmente ficcionais pelo próprio Cortázar no conto “Axolotl”, do livro Final do Jogo (1956): “Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotl. Ia vê-los no aquário do Jardin des Plantes e ficava horas a mirá-los, observando sua imobilidade, seus obscuros movimentos. Agora sou um axolotl.”
Agora sou o Oliveira. Foi o que acabou me acontecendo de tanto que eu li Rayuela. E, claro, fiquei inelutavelmente impregnado até os ossos pelo estilão cortazariano, “Um estilo que maravilhosamente finge a oralidade, a soltura fluente da fala cotidiana, o expressar-se espontâneo, sem enfeites nem petulâncias, do homem comum”, como escreveu Vargas Llosa, que ainda acrescenta: “Trata-se de uma ilusão, certamente, porque, na verdade, o homem comum se expressa com complicações, repetições e confusões que não resistiriam quando trasladadas à escritura.”
Aquele amigo atômico e eu acabamos virando sócios numa espécie de pequeno empreendimento fotográfico cujo equipamento se resumia basicamente ao poderoso ampliador Durst que ele ganhara do pai e às nossas câmeras reflex de tão desiguais qualidade e capacidade – minha lente alemã-oriental, de 50 milímetros, bundeira pros padrões de uma Zeiss ocidental, tinha 2:8 de luminosidade, enquanto a lente que equipava a Olympus dele tinha 1:2, próxima da marca do olho humano, que é de 1:1, ao que parece.
Não demorou muito, meu novo amigo me apresentou a um antigo colega seu de colegial, recém-saído da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e que depois virou professor de literatura francesa na USP. Esse amigo do amigo me dava a impressão de ter lido toda a literatura e todo o ensaísmo literário que era possível alguém ler aos 22 anos. Ficamos muito amigos também. E foi esse cara quem me apresentou, primeiro, uma ex-colega da faculdade de direito, inteligentíssima e ultramordaz, que já era advogada e alguns anos depois usaria uma toga de juíza federal, depois outra colega, esta da faculdade de letras na USP, que ele cursaria a seguir. Essa uma aí, cinco anos mais jovem que a gente, era uma gracinha e falava o português mais castiço e natural do mundo, numa dicção claríssima pontuada de risadas sonoras, e com boa parte da melhor literatura brasileira armazenada na cabeça, um azougue, essa menina. Todo mundo se apaixonava por ela, e eu não fui exceção.
Esse grupinho básico se autodenominava A Malta, mas se inspirava no “Clube da Serpente”, a patota de intelectuais e artistas vagaus e sem muita grana no bolso, autoexilados em Paris, ao qual pertenciam Oliveira e a Maga em Rayuela, gente muito díspare mas transbordante de cultura geral – à exceção da Maga, a intuitiva oficial do Club de la Serpiente rayuelano. Numa algo patética tentativa de clonar os hábitos da corriola parisiense do Oliveira, fazíamos o possível para pautar nossos papos por um menu de assuntos que giravam em torno de artes em geral, filosofia, música, política, ciência e, principalmente, literatura, muita literatura, prosa e poesia, e vice-versa, aos tragos de vinho ou cerveja – eu era viciado na Hércules, uma cerveja Stout deliciosa encontrada em poucos lugares.
É lógico que não chegávamos aos pés da voltagem intelectual do autêntico Clube da Serpente parisiense, sempre envolto numa permanente nuvem de tabaco no apartamento de alguém, com todos disparando mais ou menos ao mesmo tempo citações de uma infinidade de autores e artistas, de Octavio Paz a Gombrowicz, de Rimbaud ao tangueiro Aníbal Troilo, ou apenas comentando notícias estapafúrdias ou frívolas de jornal, como uma lá dando conta de que uma certa duquesa tinha quebrado a perna no condado de York, mas passava bem, e uma outra alertando para os perigos que o prepúcio corre com as modernas braguilhas de zíper, notícias essas que, aliás, eram reproduzidas na íntegra nas páginas do romance, o que lhe dava um divertido ar de almanaque amalucado, algo absolutamente novo pra mim, sempre ávido de novidades do tipo fora da casinha.
Eu não sabia ainda, mas aquele jeito saltitante de se ler Rayuela proposto pelo autor mimetizava seu próprio “processo criativo”, como ele revelou ao jornalista e escritor peruano Alfredo Barnechea: “Rayuela foi escrito aos saltos, pois começou no que logo virou a segunda parte, a qual ficou em suspenso até que terminei a primeira; paralelamente, foram se agregando os capítulos ‘teóricos’, os recortes de imprensa e as citações de sábios e loucos.”
De fato, essa barafunda lúdica que rege a poética do livro trazia um tremendo frescor à leitura, incluindo o despudorado desnudamento de seus procedimentos construtivos, mas sem comprometer a tal suspensão do descrédito de que falava Coleridge, conforme Cortázar comenta no livro, condição indispensável para se curtir devidamente uma obra de ficção. Ou seja, embora entrando e saindo da história, pra vê-la de fora, a história, ou melhor, as histórias do livro eram tão pra-valer quanto as desventuras de Raskolnikoff em Crime e Castigo e Bentinho no Dom Casmurro. O leitor entra de cabeça naquela realidade paralela, também chamada de jogo ficcional.
O conceito de jogo, por sinal, é a matéria-prima de Rayuela e de toda a obra cortazariana, como o ensaísta Davi Arrigucci Jr. não se cansa de salientar na sua análise canônica, O Escorpião Encalacrado, tese de doutorado que virou livro e que tem tudo a ver com o meu amado gancho aqui – o dia em que eu conheci Cortázar em Paris –, como poderá constatar quem sobreviver até o final deste texto. Escreve Arrigucci: “Tanto em Borges como em Cortázar, a literatura se explicita, de fato, como um jogo lúcido. Aparentemente, esse fato, que implica a quebra do efeito realista da literatura tradicional e o consequente distanciamento crítico, torna incompreensível nosso interesse por esse tipo de literatura. E, no entanto, essa visão dos bastidores da literatura acaba nos arrastando ainda mais depressa para o interior da ficção.” Voilà!
Se você me permite usar e abusar das citações, coisa que o Cortázar faz a três por quatro em toda a sua obra – citar é citar-se, como ele gostava de lembrar, citando justamente sei lá quem –, olha só o que o sobejamente conhecido romancista peruano Mario Vargas Llosa diz sobre a dimensão lúdica da escrita cortazariana, no prefácio aos contos completos do então já falecido autor, em 1994:
“Provavelmente nenhum outro escritor deu ao jogo a dignidade literária atribuída por Cortázar nem fez do jogo um instrumento de criação e exploração artística tão dúctil e proveitoso. Mas ao dizer isso de modo tão sério altero a verdade: porque Julio não jogava para fazer literatura. Para ele, escrever era jogar, divertir-se, organizar a vida – as palavras, as ideias – com a arbitrariedade, a liberdade, a fantasia e a irresponsabilidade com que o fazem as crianças ou os loucos. Mas, jogando desse modo, a obra de Cortázar abriu portas inéditas, chegou a mostrar uns fundos desconhecidos da condição humana e a roçar o transcendente, algo a que certamente nunca se propôs. Não é casual que o mais ambicioso de seus romances tivesse como título um jogo de criança.”
Literatura enquanto jogo, linguagem que se inflete sobre si mesma, alternância de pontos de vista narrativos, problematizando a fatura da escrita, e mesmo assim ficção das boas, como destaca o Arrigucci, das que você pode ler na rede, numa viagem, na sala de aula, escondido, como eu fazia. No meio de uma aula de sociologia, economia ou mercadologia, numa das duas facs que eu fazia simultaneamente, logrando a façanha de ser um péssimo aluno nas duas. (Acabei largando as ciências sociais melancólicas e inacreditavelmente arrancando o canudo do curso de administração de empresas imaginárias.)
O segredo, a meu ver, além da disposição entranhadamente lúdica do escritor, como enfatiza Llosa, é o perfeito domínio que o Cortázar tinha das formas clássicas da narrativa literária, em especial da oitocentista. Numa carta à sua amiga Victoria Ocampo, escritora argentina que, ao lado de Jorge Luis Borges, a partir dos anos 30 editou a mítica revista Sur, na qual publicou vários contos e artigos ensaísticos, Cortázar revela: “É curioso que eu, quando estou doente, me volto decididamente pros novelões do século XIX. Num hospital, dez anos atrás, reli quase todo Dickens; numa clínica, de outra feita, preenchi um montão de lacunas balzaquianas.”
Não é de admirar, pois, que o Cortázar tenha ido fundo na descabelada narrativa romântica centrada em Oliveira e la Maga que permeia todo o romance, algo que, em princípio, não ornaria muito com a radical modernidade estrutural e conceitual de Rayuela, dotada inclusive de um personagem teórico que está lá para discutir as bases construtivas do próprio livro. É um pouco como se, no Memórias Póstumas de Brás Cubas ou em Dom Casmurro, Machado de Assis tivesse instalado um personagem como o crítico Roberto Schwarz formulando a teoria das “ideias fora do lugar”.
No entanto, a despeito de tamanha lucidez autorreflexiva, a conturbada história de amor entre a Maga e Oliveira é a principal linha de força do romanção, sobretudo aos olhos dum cabeludo-barbudo de fitinha na cabeça e calça boca de sino, como eu, tipinho em rebeldia permanente contra o “sistema” e sua legião de professores, patrões, policiais, pais, vizinhos, políticos, advogados e seja lá quem mais pudesse emitir ordens e brandir leis no meu nariz, e de coração e sexo ávidos por açambarcar todas as mulheres do mundo e mais outras tantas que porventura despencassem dos confins do universo inumerável. Sim, sim, o amor louco, sem futuro, imperfeito, cabia perfeitamente nesse “romance total”, como o chamou Vargas Llosa, amigo e apaixonado leitor do Cortázar, 22 anos mais velho que o peruano.
La Maga, a heroína romântica, é descrita como uma uruguaia duranga que vive em Paris da mão pra boca com seu filho bebê de pai nunca mencionado. Ignorante, de uma “inocência deliciosa”, era a própria femme-enfant celebrada pelos surrealistas, ao modo de uma Nadja, do Breton, mas dona de uma surpreendente inteligência intuitiva. A Maga baba de admiração pela erudição do novo amante e seu grupo de amigos do Clube da Serpente, todos mais ou menos enredados numa vistosa crise existencial. Ela e Oliveira, o intelectual também sem mucha plata no bolso e em profunda disponibilidade na capital mundial da flânerie, os dois se divertem marcando aqueles encontros cegos pelas ruas e logradouros da cidade, como já mencionei.
“Encontraria a Maga?” Não me canso de repetir mentalmente a primeira frase do romance que desde logo precipita o leitor num plano de dúvidas lúdicas e amorosas que só vão se aprofundar ao longo do texto. “Preferíamos nos encontrar na ponte, no terraço de um café, no cineclube ou agachados junto a um gato em qualquer pátio do bairro latino”, esclarece Oliveira, num dos trechos em que assume a narrativa do romance, que divide com um clássico narrador onisciente que dá as caras quando bem lhe dá na veneta. “Andávamos sem nos buscar, mas sabendo que andávamos para nos encontrar.”
Quer arranjo de amantes mais romântico que esse? Não é para o bico de “gente que marca encontros precisos” ou que “necessita papel pautado para escrever ou que aperta desde baixo o tubo da pasta de dente.”
Melhor parar de escarafunchar analiticamente a obra del hombre, sendo que eu mal falei do Morelli, personagem teorizante de Rayuela, incidental na trama, mas que abre as portas do romance para discussões cabeludas e no geral divertidas sobre os pressupostos estéticos da própria obra que temos em mãos. “Os surrealistas”, diz Morelli, que cito aqui pra se ter uma pequena ideia do tom essencialmente reflexivo desse personagem, “acreditaram que a verdadeira linguagem e a verdadeira realidade estavam censuradas e relegadas pela estrutura racionalista e burguesa do Ocidente. Tinham razão, como sabe qualquer poeta, mas isso não era mais que um momento na complicada operação de descascar a banana. Resultado, mais de um comeu a banana com casca e tudo.”
Morelli, cultuado pela turma do Clube da Serpente, é também escritor de romances, não romances, antirromances ou contrarromances. Depois de ler trechos do novo romance ultraexperimental de Morelli, o narrador de plantão em Rayuela comenta: “Lendo o livro, por momentos se tinha a impressão de que Morelli havia esperado que a acumulação de fragmentos se cristalizasse bruscamente numa realidade total.”
Veja você, até que acabei falando um pouquinho do famoso Morelli do Rayuela. Mas e os contos? Não vou falar dos contos, que eu passei a devorar depois de Rayuela saboreando a busca incessante do insólito no cotidiano, essa porta para o fantástico que está bem ao alcance da nossa mão, mas cuja maçaneta não vemos, com a visão toldada pela falsa realidade que nos rodeia e aprisiona. Falsa, mas massiva e massacrante. No máximo, conseguimos dar uma espiadinha pelo buraco da fechadura em alguns desses súbitos momentos que gostamos de chamar de epifânicos.
Cedo aqui outra vez a palavra ao Vargas Llosa, a respeito dos contos del gran cronópio: “A verdadeira revolução de Cortázar está em seus contos. Mais discreta porém mais profunda e permanente, porque sublevou a natureza mesma da ficção, o amálgama indissociável de forma-fundo, meio-fim, arte-técnica que ela logra alcançar nos criadores mais bem realizados. Em seus contos, Cortázar não experimentou: encontrou, descobriu, criou algo imperecível.”
E o meu famoso gancho, el glorioso día en que yo conocí a Julio Cortázar en París? Pois é, pibe, bem lembrado. Já-já vou contar, mas antes, pra não torturar demais a sua paciência, conto como foi o meu quase encontro com o Cortázar na mesma Paris, pra onde eu tinha viajado pela primeira vez em 1975. Fui o primeiro membro do nosso derrisório Clube da Serpente paulistano a viajar à cidade mítica, “sonho, mito, metáfora e refúgio”, como já disse alguém, que abrigava o verdadeiro Clube da Serpente cortazariano, ao menos nas páginas de Rayuela, disposto, por sinal, a percorrer os itinerários errantes do Oliveira por lá.
Essa tarefa, clássica entre leitores apaixonados de obras muito referenciadas a uma determinada cidade, não era estranha, aliás, ao próprio Cortázar, que fez o mesmo, só que não em Paris, mas na Buenos Aires da sua juventude, tendo por guia as obras do portenho Roberto Arlt, como os romances El Amor Brujo e Los Siete Locos, que muito o haviam impressionado. Na introdução às obras completas do Arlt, três décadas depois, Cortázar confessa: “Cada vez que algum leitor me conta de seus itinerários por Paris atrás das pegadas de algum personagem dos meus livros, me vejo de novo nas ruas portenhas dizendo-me que por ali passaram o Rufião Melancólico, que nessa quadra estava uma das imundas pensões onde sentaram praça a Hipólita, a Bizco ou Erdosain.”
E foi o que eu fiz com meu esfacelado exemplar de Rayuela no bolso do casaco, percorrendo a rue Dauphine, o quai de Conti, a rue de Seine, a Pont des Arts, as quebradas encardidas e ainda não gentrificadas do Marais, e toda a imensa teia de bulevares, passagens, becos, cais e galerias, pontes, estações de metrô, bares e restaurantes mais ou menos fuleiros debaixo da calota cinzenta do céu de Paris a ver se não topava com Oliveira, Etienne, Wong, Gregorovius, Pola, Ronald, Babs, Morelli ou a santa Maga da-pá-virada disponíveis para um dedo de prosa e uns copos de Beaujolais no café mais próximo.
Para o cortazariano que tem preguiça de garimpar tais itinerários diretamente no livro, recomenda-se um tal de Diccionario Cortázar-París-Rayuela, de Juan Manuel Bonet, que, parece, pode ser baixado pela internet. (E o que não pode ser baixado por essa colossal mesa branca, ponto de confluência de todos os espíritos do universo?) Claro que a minha imorredoura esperança era topar com o Cortázar, ele mesmo, e me tornar seu amigo para sempre, com a mesma homoternurinha com que Robin ficou amigo do Batman, o Tonto do Zorro, o Sexta-Feira de Robinson Crusoé e o Lothar do Mandrake, entre outros exemplos de fiel e canina amizade masculina da minha infância.
Um dia, isso quase aconteceu, naquele gélido janeiro de 75 em Paris. Eu saía de uma reunião esfumaçada no minúsculo apartamento da prima de um amigo brasileiro junto com um animado grupinho que, ao pisar na calçada, resolveu se dividir entre os que queriam pegar um cinema e outra facção que advogava a causa imediata de um restaurante bom e barato nas proximidades. Segui com a turma do restaurante, pois comida e bebida sempre me atraíram bem mais que luzes e sombras projetadas numa tela branca dentro de uma sala escura.
No dia seguinte, encontrei aquele amigo, que tinha se unido ao grupo do cinema, e fiquei sabendo que eles toparam de frente com ninguém menos do que o meu endeusado cronópio, o Julio Cortázar. “Ele é alto pra caralho”, resumiu meu amigo, que não ousou abordar o meu ídolo. Puta que pariu, pensei, me pelando de ciúme do amigo que estivera frente a frente com o Cortázar, ainda que por breves segundos. Eu é quem devia estar lá no lugar dele, cacete. Desde esse dia tenho procurado não abdicar da sétima arte em favor de um prato de comida fumegante e uma taça de vinho tinto ou branco. Vai que o fantasma do homem me aparece no caminho do cinema.
Quatro anos mais tarde, porém, o sonhado encontro se efetivaria por fim, naquela mesma cidade tão burguesa quanto poética, tão estrangeira quanto íntima da minha rêverie literária, conforme pretendo contar a seguir, depois de mais umas breves considerações biográficas acerca do homem que, vivo ou morto, está fazendo 100 anos agora. O fato é que não consigo imaginar o Cortázar morto. Não me refiro, claro, ao seu cadáver, e menos ainda ao seu esqueleto lá no Cemitério de Montparnasse onde o enterraram. O que me é difícil aceitar é um mundo sem a presença do cronópio-em-chefe. Cortázar pra mim é uma entidade eterna, infinita, inesgotável, imperecível. Tenho certeza de que, não fosse por aquela megacagada que o levou deste mundo, ele ainda seria “alguém que anda por aí”, nome de uma de suas coleções de contos, publicada ainda em vida do autor. Mas a dolorosa verdade é que “cuando alguien está muerto, muerto está por más que sonría”, como escreveu sua grande amiga, a poeta Alejandra Pizarnik, ela mesma morta por suicídio aos 36 anos de idade.
Como diria eleaticamente Parmênides, sempre cheio de razão, pra alguém morrer é preciso primeiro ter nascido, o que Julio Cortázar fez, ou fizeram por ele, no dia 26 de agosto de 1914, em Bruxelas, Bélgica, em meio aos morticínios inaugurais da Primeira Guerra Mundial. Seu pai era um encarregado comercial da embaixada argentina e trazia com ele a mulher grávida quando o kaiser lançou as tropas alemãs sobre o país. Sua mãe, dando à luz, ouvia obuses explodindo nas proximidades. “Meu nascimento foi sumamente bélico”, conta o escritor, não sem uma ponta de orgulho pela bravura de María Herminia.
O exército do kaiser deixou a família Cortázar se mandar para um país neutro, a Suíça, primeiro, a Espanha (Barcelona) logo depois. Quando a guerra acabou, com aquele saldinho de dezenas de milhões de mortos, feridos e inválidos, os Cortázar puderam voltar pra casa, Julito já com seus 4 anos. Uma vez instalados em Buenos Aires, no subúrbio de Banfield, Julio e sua irmã mais nova se viram órfãos de pai, que se mandou de casa sem dar um pio e nunca mais foi visto, vivo ou morto, deixando a mãe numa soleníssima mierda.
A penúria da família o fez renunciar à universidade e o levou a cursar uma escola normal e, depois, uma licenciatura, de onde saiu professor de escola secundária em cidadecas do interior argentino. Mas, mesmo sem diploma superior, acabou dando aulas também numa universidade periférica, a de Cuyo, pois, leitor compulsivo desde a infância, tinha uma cultura geral que o situava num nível bem superior à média dos professores universitários da área de humanas.
Daí, num belo dia de 1948, pra encurtar a história, conheceu Aurora Bernárdez, nascida em 1920 e ainda viva e forte em seus atuais 94 anos. E começou a namorar a moça, que viria a ser a sua grande parceira intelectual de todos os tempos. Excelente e premiada tradutora das mais finas iguarias literárias, Aurora é sempre descrita por seus contemporâneos como uma mulher mignon, energética e dona de um brilho intelectual que a todos encantava. O romancista mexicano Carlos Fuentes, que a conheceu em sua casa em Paris, a descreve como “uma mulher brilhante, miúda, solícita, feiticeira e enfeitiçante, atenta a tudo que acontecia na casa”. O Vargas Llosa, que esteve com ela faz alguns anos, corrobora e atualiza essa imagem: “Pequena, miúda, com esses grandes olhos azuis cheios de inteligência e a mesma acachapante vitalidade de outrora.”
Cortázar se mandou de mala e cuia pra Paris em 1951, Aurora foi no ano seguinte. O escritor queria se ver o mais distante possível do peronismo triunfante na Argentina. O ambiente de Buenos Aires, em especial, lhe parecia “asfixiante”, como o descreve, com seus círculos culturais academicistas ultracaretas, da gomalina nos cabelos dos caballeros aos botões do jaquetão de Jorge Luis Borges – que, no entanto, se tornou seu amigo. Cortázar sentiu que não acharia ali seu lugar enquanto o general Juan Domingo Perón imperasse sobre a vida política da nação e sua mulher Evita sobre o imaginário popular, tão carente de uma mãezona provedora, ainda que apenas no plano simbólico, percepção essa que ele viria a reavaliar anos depois.
Vejo com alguma reserva essa narrativa do autoexílio antiperonista do Cortázar. Tudo bem que a ascensão das massas organizadas por um líder manipulador, de corte populista e militar, ainda por cima, inspirou receios genuínos nas elites bem pensantes de todos os matizes ideológicos na Argentina. Embora longe de integrar algum tipo de “elite bem pensante”, Cortázar somava-se aos que julgavam presenciar o nascimento de uma ditadura fascistoide, dada a fascinação que Perón sempre teve por Mussolini, a quem chegou a conhecer na Itália, em 1941, quando esteve por lá como adido militar junto à embaixada de seu país.
O historiador argentino Federico Finchelstein, autor de Fascismo Trasatlántico, explica a ideia totalitária da política que está na origem do peronismo, segundo a qual todo mundo tem que ser peronista, seja de esquerda ou direita. Nesse sentido, diz Finchelstein, “o peronismo é inclusivo mas apresenta esta inclusão como uma obrigação: ou se é peronista ou não se é argentino”. Claro que a perspectiva de viver num tal ambiente político deve ter provocado arrepios em mentes livres como a de Cortázar e de um de seus padrinhos literários, Jorge Luís Borges. Mas acho que o nosso cronópio estava era profundamente seduzido pela ideia de viver na cidade mais literária do mundo, no auge do existencialismo, com muita filosofia, garotas liberadas e espessas nuvens de fumaça de Gitanes nos cafés e nas caves de jazz.
Corroborando meu achismo, vi numa famosa entrevista à tevê espanhola, de meados dos anos 70, facilmente localizável no YouTube, o bicho declarando que se mandou pra Europa simplesmente porque lhe deu “la santa gana”, o que ele na certa faria com ou sem Perón no poder. Além disso, como podemos ler num texto biográfico seu de Los Pescadores de Esponjas, ainda adolescente caiu-lhe nas mãos um exemplar de Ópio, do Jean Cocteau (traduzido no Brasil por este que vos fala para a Editora Brasiliense em meados dos 80), que lhe produziu um sério estalo na moringa. Diz ele: “Num café, comecei a leitura de Ópio, e o caminho de Damasco foi fulgurantemente para mim o caminho de Paris…”
E fez muito bem ele em tomar o caminho de Paris, onde pôde construir as condições ideais para escrever um dos romances mais porretas da prosa latino-americana de todo o século XX – e, cá entre nós, do XXI também, até agora. Em outro lugar ele diria que “Paris – ou melhor, a Europa – me abriu um horizonte total, planetário, que eu não tinha em Buenos Aires. Não estou dando uma receita, falo apenas por mim, mas sei que sem Paris não teria escrito o que escrevi”.
O casório com Aurora, de papel passado, durou até 1967, mas sua ex se manteve uma fiel e dedicada amiga até o trágico fim da vida do escritor. Quando está em Paris, ela ainda fica no mesmo antigo galpão adaptado para residência por um arquiteto amigo do casal, no fim dos anos 50. Foi ali, por sinal, que Julio terminou de faturar Rayuela, em 1962. (O romance saiu no ano seguinte.) Cortázar tinha comprado e reformado o decrépito galpão, uma antiga estrebaria, com os 15 mil dólares recebidos da Universidade de Porto Rico pela tradução da prosa completa do Edgar Alan Poe, uma senhora bolada nos anos 50, quando os preços dos imóveis também não atingiam os níveis delirantes de agora. Carlos Fuentes lembrava-se que o galpão-residência tinha três andares “e escadas que nos obrigavam a descer subindo, segundo uma fórmula secreta de Cortázar”.
Não vou ficar aqui enumerando las mujeres de Cortázar, que foram sem dúvida bem mais que as três oficiais – Aurora, Ugné (que nome!) Karvelis e a derradeira paixão de sua vida, a americana Carol Dunlop –, mas não resisto a mencionar a uruguaia Cristina Peri Rossi, escritora, poeta, ensaísta, feminista e sei lá que outros atributos – ah, sim, radialista militante ainda em atividade em Barcelona, onde mora há mais de quarenta anos. Cris, como a chamavam, era a típica intelectual de esquerda quando conheceu Cortázar em Paris, no inverno de 1974.
Cá entre nós, uma gata. Basta pescar uma foto dela na internet pra ver: cabelo escorrido, carinha de boneca pop, sem maquiagem, lábios carnudos a inspirar torpes fantasias ósculo-felacianas. Era uma jovem exilada política e existencial, só que na Espanha, onde já morava. Cris aparentava ter menos que seus 33 anos, da mesma forma que o Cortázar, aos 60, parecia ter apenas alguns aninhos a mais que ela. (Quando conheci o Cortázar em 79, eu com 29, ele em seus 65, sem uma ruga no rosto e nenhum fio branco na basta e comprida cabeleira, pude constatar o prodígio que sempre intrigou seus amigos, vários dos quais diziam que ele tinha a síndrome de Dorian Gray.)
Cris Rossi dava um tempo na França, fugindo do alto risco de uma prisão ou coisa pior na Espanha, por ter se envolvido com a militância antifranquista. Cortázar já era separado de Aurora e vivia um relacionamento conturbado com sua agente literária, a lituana Ugné Karvelis, já falecida, mulher culta, cheia dos canudos universitários, tradutora, diplomata, 20 anos mais jovem que ele, mas, ao que parece, dona de uma personalidade algo pontiaguda. Cortázar pranchou de amores pela bela uruguaia, que, depois de um breve namoro com seu colega de letras, saltou fora do leito cronopial. O problema ali era incontornável: ambos gostavam de mulher.
Cortázar não chegou a cortar os pulsos por ter sido preterido por sua amada lésbica – nem os dele, nem os dela –, contentando-se em dar vazão poética à sua dor de corno em quinze poemas de amor que não hesitou em postar pra sua safossafada musa. Num deles, o bardo tenta se resignar dizendo que
Tudo acontece num reflexo de crepúsculo
teu cabelo teu perfume tua saliva.
E ali do outro lado te possuo
enquanto jogas com tua amiga
os jogos da noite.
Noutro poema, também em minha canhestra tradução, o eu lírico tenta simular um dar de ombros:
Na realidade pouco me importa
que teus seios durmam
na azul simetria de outros seios.
Eu os teria pisoteado
com a cosquinha do meu toque
e tu terias rido justamente
quando o necessário e esperável
era que soluçaras.
Confesso que essa ideia de seios que dormem na azul simetria de outros seios me deixam de pau duro, lírico incorrigível que esse bastardo sempre foi. O fato é que a sua Cris-que-não-lhe-quis tornou-se grande amiga dele até o fim, a exemplo de Aurora. Ela gostava de lembrar ao amigão mais velho: “Da mesma maneira que eu devo ser das poucas uruguaias que não conhecem Buenos Aires, você é o único argentino que não fez psicanálise.”
Em 2000, Cris publicou uma biografia sobre seu ex-quase-amante na qual revelava que ele tinha morrido de Aids – essa é a tragédia a que eu me referia –, e não de leucemia, como se divulgou na época. Cristina explica que Cortázar tinha sofrido uma severa hemorragia estomacal em 1981, da qual se salvara graças a uma transfusão de sangue – sangue esse adquirido ilegalmente de imigrantes contaminados pelo vírus da Aids, doença misteriosa que logo se tornaria endêmica no planeta. Muita gente também se contaminou daquela maneira na França, gerando um grande escândalo que culminou com a queda do ministro da Saúde do país.
O pior da história é que ele acabou contaminando sua última companheira, a Carol Dunlop, nascida em Massachusetts, Estados Unidos, e não no Canadá como muitos creem. Tanto ela quanto ele receberam o mesmo equivocado diagnóstico oficial de “leucemia”. Carol, que tinha perdido um rim numa cirurgia, anos antes, mostrou-se menos resistente que seu companheiro e morreu antes dele, em 1982. “Estou num poço negro e sem fundo”, escreveu Cortázar à sua amiga e tradutora Silvia Monrós-Stojakovic, depois da morte da querida companheira. “Estou tão só e tão desabitado.”
Neste ano da graça de 2014, quando se lamentam os trinta anos da morte do escritor (fevereiro de 1984) e se comemoram os 100 de seu nascimento, Cristina voltou a reiterar numa entrevista ao jornal espanhol El País esse fato já revelado por ela em 2000 na biografia, mas que a mídia botou pra escanteio. A razão desse silêncio talvez resida na tendência a negar que o cronópio-mor teria sucumbido ao “câncer gay” ou “peste junky”, como a Aids era chamada nos primórdios da epidemia.
Bueno, acabo de matar meu personagem de Aids e nem sequer mencionei um fato de grande importância na vida do meu herói literário, embora, não em sua obra, ou pelos menos não na melhor parte dela. Falo da virada esquerdista do escritor depois de sua primeira visita a Cuba, em 1963, quando caiu de amores por El Comandante, e de sua radical revisão da postura antiperonista que havia contribuído para o seu autoexílio francês a partir de 1951. Numa entrevista de 1972 a Barnechea, Cortázar faz seu mea-culpa ideológico: “Naquele momento, de fato, fui incapaz de distinguir entre Perón e o peronismo, entre o governante ambíguo e a formidável tomada de consciência que havia desencadeado sem ser capaz de levá-la às últimas consequências, ou seja, à revolução.”
Um Cortázar convertido ao socialismo revolucionário latino-americano, com seus dogmas, violências e imensos equívocos históricos, não parece caber muito bem na valise do cronópio, mas não é de se espantar que algo assim tenha acontecido, já que ser de esquerda e intelectual era quase obrigatório numa época em que toda a América do Sul, e boa parte da Central, se achava sob o jugo de ditaduras de direita pró-americanas com especial predileção por pendurar seus oponentes em paus de arara para lhes aplicar fartas doses de choques elétricos, entre outros tipos de choque, além do extermínio puro e simples.
No entanto, o cara que chegou a dizer que Cuba era um país de cronópios, e também, segundo Vargas Llosa, que os crimes da era stalinista tinham sido meros acidentes de percurso do comunismo, foi excomungado por Fidel Castro, em 1971, por pedir informações sobre o desaparecimento do poeta Heberto Padilla, numa carta pública endereçada a El Comandante, assinada, além dele, por nomes como Simone de Beauvoir, Sartre, Italo Calvino, Marguerite Duras, Pasolini, Susan Sontag, Vargas Llosa, entre outros. A carta começava assim: “Cremos ser nosso dever comunicar-lhe nossa vergonha e nossa cólera. O lastimável texto da confissão que Heberto Padilla assinou só pode ter sido obtido por meio de métodos que são a negação da legalidade e da justiça revolucionárias.”
Fidel, a cavalo de sua espetaculosa e infatigável retórica revolucionária, retrucou chamando os intelectuais cubanos e estrangeiros que tinham apoiado Padilla de “escritores de lixo e ratos que pretendem converter em coisa transcendental seu mísero papel de tripulantes de embarcações que naufragam nos mares tempestuosos da história”. Mesmo tendo sua obra rotulada de lixo e seu caráter equiparado ao de um roedor que transmite doenças e devora a seara alheia, Cortázar, até onde eu sei, nunca deixou de ser um apologista do socialismo cubano, com ditadura e tudo, nem de se engajar na causa revolucionária na Nicarágua, da qual se tornou arauto internacional, antes e depois da tomada de poder pelos sandinistas.
Nos hiperpolarizados anos 70, bem como agora, sempre dei preferência ao Cortázar desideologizado de Rayuela, que bota a consciência histórica de Oliveira, seu personagem principal, no balaio de uma estupenda crise existencial por incompatibilidade absoluta com o mundo administrado. Lembro de uma cena em Rayula na qual um amigo vai visitar Oliveira para lhe propor participar de “umas confusas atividades políticas”. Um dos tópicos da discussão é “a parte de chantagem de toda ação com um fim social, na medida em que o risco corrido serve ao menos de paliativo para a má consciência individual”. No mesmo trecho, ele dá a seu alter ego literário a tarefa de dizer: “Conhecia de sobra alguns comunistas de Buenos Aires e de Paris capazes das piores vilezas, mas resgatados, em sua própria opinião, pela luta, por ter que se levantar no meio do jantar para correr a uma reunião ou completar uma tarefa.” Mas essa ainda era a época em que Cortázar preferia Charlie Parker e Louis Armstrong a Che Guevara e Fidel Castro.
E aqui, ladies and gentlemen, apocalíticos e integrados, alienados e revolucionários, burgueses e proletários, prestamistas em dia com o Baú da Felicidade e inadimplentes do BNH, chego por fim, enfim e finalmente à ponta do fio condutor que se liga ao meu gancho narrativo: o meu encontro pessoal com Julio Cortázar em Paris.
Eba!
Mas antes (Hahaha! Te peguei!) preciso falar mais um pouco do crítico Davi Arrigucci Jr., professor aposentado das Letras na USP já citado aqui, que era amigo de um amigão meu, o sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos, o Giba, guru da gurizada ilustrada de esquerda que comia macarrão no Montechiaro, no Bexiga, e nadava em cerveja no Riviera e no Ponto 4, sempre desconfiando que na mesa ao lado tinha um agente do Dops, do DOI-Codi, do SNI, senão mesmo da CIA.
Davi é o pivô desta história e é impossível falar do meu encontro com o Cortázar sem falar dele, o elo propiciador daquele encontro. Ler O Escorpião Encalacrado, lá por 1974, me fez reinterpretar toda a leitura que eu havia feito “a seco” do Cortázar, sem o repertório de referências culturais explícitas ou implícitas nos contos e em Rayuela. A poderosa luz analítica, vazada num texto cristalino e envolvente, à la Antonio Candido e Edmund Wilson, que Arrigucci lança sobre a obra do argentino não desmanchou, ou sequer esmaeceu, muito pelo contrário, o intenso prazer que suas belezas desruptivas e estranhezas formais me haviam provocado, com destaque, você já sabe, para o Rayuela, o momento mais radical daquela obra, segundo o ensaísta.
Na verdade, era a primeira vez que eu lia um ensaio crítico que dialogava em chave analítica de altíssimo nível com a obra de um escritor que, àquela altura, eu já podia dizer que conhecia bem. (Em 1976 me cairia nas mãos outro ensaio que cumpriria o mesmo papel, Ao Vencedor as Batatas, um clássico do Roberto Schwarz sobre a obra do Machado de Assis. Esse ensaio viria a cair em minhas mãos graças ao Giba, junto com verdadeiras aulas a respeito.)
O meu amigo Giba tinha papado uma bolsa de estudos de pós-doutorado em Paris, no ano de 1978, e, antes de seguir viagem, recebeu do Davi a incumbência de levar ao Cortázar um presente, o disco Bicho, do Caetano Veloso, que tinha saído naquela época. O Cortázar já era então amigo pessoal do Davi, a quem conhecera em São Paulo, em 1973, apresentado por um amigo em comum, o poeta Haroldo de Campos. Depois disso, viram-se outras vezes, inclusive em Paris, onde Davi morou por um ano.
O Giba já estava há quase um ano em Paris, sem nunca ter se mexido pra levar o disco do Caetano pro cronópio argentino. Ele nunca foi grande fã do Cortázar, a quem, no fundo, considerava um autor pra consumo de hippies ligeiramente cultivados, no que tinha a sua razão, tamanho era o número de cabeludos e, sobretudo, de babies flower-power que tiravam O Jogo da Amarelinha pra ler em voz alta numa mesa de bar algum trecho entusiasticamente sublinhado durante uma trip de ácido ou zoeira de fumo, estado mental apropriado, segundo muitos acreditavam, a se curtir numa naice “o jogo com a linguagem ao limite da destruição e do silêncio”, como cravou o Davi em seu ensaio, decerto tomando café com água mineral, únicos combustíveis que a sua lucidez admite na hora de escrever.
Cortázar já era então um ativo “homem de esquerda”, mas, por causa do clima lúdico, anticonvencional, estranhado e romântico de Rayuela, e de muitos de seus contos, tornara-se um autor canônico para o maluquete ilustrê padrão da época. Tratava-se de uma dessas contradições que faria um autêntico cronópio dar estrelas de contentamento no meio da avenida Paulista, mas que não inspirava grande entusiasmo num sociólogo de esquerda, com vasta cultura acadêmica de viés nacionalista, como o Giba.
Foi aí que as musas do ócio criativo, intercedendo junto aos fados acadêmicos e demais canais competentes, colhidos num momento de profunda distração, descolaram-me uma bolsa de estudos (economia, blergh!) em Paris, em 1979. Cheguei lá no verão e logo no primeiro dia encontrei o Giba – e o disco abandonado do Caetano, com a dedicatória do Davi Arrigucci pro Cortázar. Não teve conversa. No dia seguinte, acordei no studiô caótico do meu amigo, na rue des Boulangers, onde tinha dormido num canto naquela primeira noite, entre garrafas vazias de cerveja tcheca, pratos repletos de bitucas de cigarro e pilhas e mais pilhas de livros, e chutei meu amigo sociólogo da cama com o comando peremptório e irretorquível: “Vamos já ligar pro Cortázar, porra!”
Ligamos, e nada. Ou o cara não tava em casa ou o número da casa dele que o Davi fornecera tinha caducado. Mas o endereço tava lá: 68, rue St. Honoré. Depois de um banho, um beque de haxixe e um café-calvá (de calvados, a pinga de maçã francesa) no bar da esquina, nosso competente e indispensável desjejum, nos mandamos com nossas barbas e cabelões compridos e o disco do Caetano debaixo do braço pra rive droite, à la recherche do grão-mestre da veneranda ordem cronopial do Ocidente a leste do Oriente. Era um dia quente de verão, razão pela qual resolvemos nos refrescar com um demi, nome do chope na França, antes de alcançar o simbólico número meia-oito da rue St. Honoré. Eu não sabia ainda, mas em Maio de 68, em meio ao reboliço anárquico das manifestações estudantis nas ruas parisienses, Cortázar tinha rodado panfletos com textos seus, decerto na linha do “É proibido proibir”, “A imaginação no poder” e “Sejamos realistas: exijamos o impossível”, e saído à rua para distribuí-los nas barricadas dos revoltosos embriagados de liberdade e vinho barato.
E agora eu estava a um passo de entrar na toca do cronópio, façanha que deixaria meus coleguinhas do Clube da Serpente paulistano babando a mais verdolenga e visgosa baba, não del diablo, como no famoso conto do Cortázar, mas sim da velha e boa inveja.
Naquela época, o típico prédio parisiense, de no máximo seis ou sete andares, tinha um portão sempre aberto, ou fechado mas destrancado, que comunicava a calçada com uma cour interna, a qual dava acesso à escada e, em alguns casos, também a um pequeno elevador de porta pantográfica. Nessa cour, ou pequeno pátio interno, havia uma fileira de caixas do correio, uma pra cada condômino. Essa era a configuração do meia-oito da rue St. Honoré. Só que nenhuma das boîtes à lettres trazia o nome do Cortázar. A concierge, cujo minúsculo apartamento ficava no térreo, com a porta se abrindo pro pátio, apareceu pra saber o que queríamos e confirmou que ali não morava nenhum escritor argentino chamado Julio Cortázar.
Meu desapontamento desabou feito um vaso de vidro cheio de bolinhas de gude a pipocar no chão duro da realidade. Não ia ser daquela vez que eu iria conhecer pessoalmente meu escritor favorito, meu companheiro de todas as horas na solidão do Butantã perfumada pelos eflúvios estercorários do rio Pinheiros. Merde alors! – devo ter exclamado no meu francês precário.
O Giba expressou seu grande alívio por ter se livrado de um encontro que ele prefigurava maçante com um escritor que ele pouco lera e menos ainda admirava, e sugeriu que tomássemos a única providência cabível no momento, que era correr até o café mais próximo pra tomar mais um demi, ver a mulher que passa e estudar o Pariscope em busca de um filme noir dos anos 40 pra assistir na Cinémathèque do Palais de Chaillot, atividade a que ele se dedicava com afinco por aqueles tempos.
Ocorre que, ao sairmos da cour do 68 pra calçada da St. Honoré, e darmos os primeiros passos rumo ao refrescante bálsamo que nos aguardava no café da esquina, pude constatar que o prédio ao lado do 68 trazia um 68-bis inscrito na plaquinha, como era, e talvez ainda seja, normal em Paris, por alguma misteriosa razão numerológica. Sem pestanejar empurrei o pesado portão do 68-bis e entrei, com um Giba relutante seguindo atrás, sem o menor saco para novas prospecções cronopiescas. Só que dessa vez lá estava, na portinhola de uma das caixas de correio coladas a uma parede, a inscrição tão ansiada: “M. Cortázar”! Sim, monsieur Cortazárr, como pronunciam os franceses, morava ali, no meia-oito bis, senha mágica que parecia augurar um repeteco da zoeira libertária que eclodira onze anos antes naquela mesma cidade – naquela mesma rua!
Mas, e agora? Em que andar morava o Cortázar, em qual apartamento? Eu já estava a ponto de tentar descobrir isso subindo a todos os andares e apertando a campainha de todos os apartamentos, depois de constatar que a concierge não estava em seu costumeiro reduto para nos dar a informação preciosa, quando o acaso, essa força astral que propicia mais viradas importantes numa história de vida, ou mesmo na História maiúscula da humanidade, do que a velha lógica marmórea do seu Aristóteles & Cia., irrompeu com tudo na cena, inicialmente sob a forma de vários jovens branquíssimos, loiríssimos, eslavíssimos, que desciam a grande escadaria do prédio carregando apetrechos de filmagem, como araras, cruzetas, fios enrolados, caixotes prateados, uma pesada câmera de vídeo e outra de cinema, uma Arri 16 milímetros, entre outros badulaques. Por último vieram umas longas pernas que sustentavam um tronco também espichado, sobre o qual se assentava a cabeça daquele cara cuja fotografia aparecia na orelha da minha edição brasileira de O Jogo da Amarelinha, o próprio, messiê Cortazárr em pessoa. Yeah!
Não poucos de seus amigos escritores se deixaram impressionar por sua figura física e o recordaram de forma vívida e carinhosa depois de sua morte. Nas palavras de Gabriel García Márquez, por exemplo, “Cortázar não apenas falava com uma profunda voz de órgão com erres arrastados, como também com suas mãos de ossos grandes como não lembro de outras mais expressivas”. Disse também que “Era o homem mais alto que se podia imaginar, com uma cara de moleque sapeca dentro de um interminável sobretudo preto que mais parecia a sotaina de um viúvo, e tinha os olhos muito separados, como os de um bezerro, e tão oblíquos e diáfanos que poderiam ser os do diabo se não estivessem submetidos ao domínio do coração”.
Já Mario Vargas Llosa se lembra de como conheceu Cortázar em Paris numa festa na casa de um amigo comum: “Aquela noite, em fins de 1958, me sentaram junto a um rapaz muito alto e magro, de cabelo curtíssimo, imberbe, de grandes mãos que movia ao falar.”
Ao revê-lo anos depois, em Londres, onde morava, com Cortázar já transformado num Che Guevara surrealista da literatura, sobretudo depois de Maio de 68, Vargas Llosa viu que seu amigo tinha deixado crescer “uma barba arruivada e imponente de profeta bíblico”. Outra mudança curiosa, esta de natureza comportamental, chamou sua atenção: “Me fez levá-lo pra comprar revistas eróticas e falava de marijuana, de mulheres, de revolução, como antes de jazz e de fantasmas.”
Carlos Fuentes, por sua vez, viu Cortázar nos anos 60 como um “jovem descabelado, sardento, imberbe, desengonçado, com uma calça de brim e camisa de manga curta, desabotoada no pescoço; um rosto, então, de não mais de 20 anos, animado por uma gargalhada profunda, um olhar verde, inocente, de olhos infinitamente grandes, separados, e duas sobrancelhas sagazes, unidas entre si, dispostas de modo a lançar uma maldição cervantina a todo aquele que se atrevesse a violar a pureza de seu olhar.” Uma estampa muito diversa, como Márquez salienta, do “senhor velho, com grossas lentes, cara afilada, cabelo sumamente aplacado pela gomalina, vestido de preto e com um aspecto severo”, que ele vira em foto na revista literária argentina Sur, anos antes. Fuentes chegou a pensar que o Cortázar jovial que o recebia em casa era filho do sujeito velhusco e sisudo da foto.
Cortázar registrou nossa presença no pátio do seu prédio com uns olhos surreais de tão azuis – ou seriam mesmo verdes, como afirmou o colombiano? –, atrás dos quais devia se esboçar algum receio sobre nossas identidades, já que três anos antes uma violenta ditadura militar se instalara em seu país, fazendo pendant com a brasileira, e ele, antes apenas um exilado existencial em fuga boêmia do peronismo, tinha virado agora persona non grata de um regime disposto a encurtar peremptoriamente o tempo de vida de seus adversários, e da forma mais dolorosa possível, em especial os mais atuantes nos foros internacionais, como era o seu caso.
Inspirei todo o ar disponível naquele pátio e, com o Bicho caetânico na mão, fui pra cima dele, trêmulo e abestado como só eu mesmo poderia ser ali: “Me-me-messiê Co-o-ortazárr… nous… ici… nous…” – me escapava o sommes – “… nous… amis… des amis… de Davi… Davi du Brésil…”
Até um pinguim afônico da Patagônia falaria um francês melhor que aquele patuá tartamudo que eu esboçava ali. Me senti o último pascácio da Stultífera Navis, e não estava enganado. O Giba não disse nada, ocupado que estava em se espandegar de rir da minha abordagem. O que era aquilo?! – Cortázar deve ter pensado, tranquilizando-se, porém, quando viu o disco do Caetano que eu lhe estendia, com a dedicatória do Davi escrita num espaço branco da própria capa. Ali deve ter tido a plena certeza de que não éramos agentes da ditadura argentina, nem nada remotamente parecido, mas só dois malucos que o Davi Arrigucci tinha, sabe-se lá por quais motivos, admitido como amigos, a ponto de encarregá-los de lhe enviar aquela lembrança musical.
O homem foi de uma simpatia inigualável com a gente, e, num português perfeito que fez o meu francês da primeira abordagem soar ainda mais ridículo, começou contando que tinha visto um show do Caetano em São Paulo, provavelmente o show que marcou seu retorno do exílio, no Tuca, o teatro da Universidade Católica, no bairro de Perdizes.
Eu mesmo tinha assistido em aura de encantamento a esse show histórico, repetido duas ou três vezes numa dada semana em São Paulo, com a casa abarrotada de gente até o teto, e não era impossível, portanto, que eu e o Cortázar o tivéssemos visto na mesma noite, possibilidade que aventamos ali no pátio, conversando de pé, enquanto a equipe de loirinhos da tevê estatal polonesa o esperava na rua para dar prosseguimento ao ar livre a um documentário que faziam sobre o grande escritor argentino de esquerda exilado em Paris. Argumentei, porém, que teria sido muito difícil eu não ter notado sua presença, de 1,93 metro, no foyer ou na plateia, observação que, do alto dos meus próprios 192 centímetros, lhe pareceu engraçada.
Uma garota com cara de produtora de tevê, num francês rascante não muito mais fluente que o meu, veio avisar o Cortázar de que estavam todos na van à sua espera. El gran cronópios e despediu, então, de nós, com mil desculpas por não nos convidar a subir ao seu apartamento e nos passando o número certo de seu telefone, que havia, de fato, mudado. Depois de efusivos apertos de mão, pediu que lhe telefonássemos dali a dois meses, ou seja, em fins de setembro, quando estaria de volta de uma longa viagem. Aí, sim, nos entregaríamos com toda a calma e os licores adequados ao rituais da confraternização.
Guardei meu seboso caderninho de anotações no bolso com o número do telefone do Cortázar anotado nele, com a certeza de que ali nascia uma amizade imorredoura prestes a se traduzir em risonho e estreito convívio naquele ano que me cabia passar em Paris como estudante bolsista de uma pós em economia. Ocioso dizer que a partir do dia 15 de setembro daquele ano passei a discar aquele número todos os dias, de duas a três vezes, pelos seis meses seguintes, sem nunca ser atendido por ninguém, vivo ou morto. Ou el hombre tinha dado o número errado, ou tinha mudado de endereço, ou sei lá que porra aconteceu. Sempre que eu me via nas proximidades da rue St. Honoré, dava uma passadinha lá pra espiar a cour do 68-bis, na esperança de que o milagre cronopiesco se repetisse, o que jamais aconteceu.
Cerca de um ano e meio depois, na manhã do dia em que eu devia me pirulitar de Paris, finda a bolsa e findos meus fundos no fundo do bolso furado, liguei pela última vez pro Cortázar. Liguei. Como sempre, uma campainha parecia soar do lado de lá. E, como sempre, ninguém atendeu aquele último telefonema. Penso hoje se não seria patafisicamente possível que eu um dia vá a Paris, passe a mão num telefone, ligue praquele mesmo número, na hipótese remota de achar onde o anotei num dos meus velhos caderninhos que ainda tenho guardados e, do lado de lá, soe a voz do Cortázar, em seu português escorreito, de vogais abertas. “Ô-lá, como está?”, ele dirá ao ouvir meu nome, do qual ele por certo não se esqueceu. “E Davi? Está bem? Terá me mandado mais algum disco de Caetáno?”
Digo que sim, que o Davi mandou muitos outros discos do Caetano que saíram desde 1979, e marcaremos de nos encontrar no Old Navy, o bar michureba do Boulevard Saint-Germain que ele frequentava nos anos 50 pra escrever. García Márquez, então um escritor desconhecido, conta que o encontrou lá um dia, depois de o esperar por uma hora. Viu quando o pilulão se sentou num canto, puxou um caderninho e uma velha caneta-tinteiro que manchava os desenhos dele, e mandou tinta no papel. Sem coragem de abordar o escritor que tanto admirava, ficou observando o homem de longe: “Fiquei vendo ele escrever durante mais de uma hora, sem uma pausa para pensar, sem tomar nada mais que meio copo de água mineral, até que começou a escurecer na rua e ele guardou a caneta no bolso e saiu com o caderno debaixo do braço como o escolar mais alto e mais magro do mundo.”
Boa dica do Gabo. Se eu chegar ao Old Navy e ele já estiver lá, escrevendo com sua caneta-tinteiro, não serei eu a interrompê-lo. Talvez peça um demi e me ponha a observá-lo por alguma superfície espelhada atrás do balcão até me sentir o perfeito fama deslumbrado e pedir a conta e cair fora do Old Navy pra dentro da noite mítica da Paris do Cortázar, me sentindo um Oliveira em busca de sua Maga perdida no fundo do Sena, no fim do tempo.
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