Muito estranho ficar velho. A gente acha que isso é impossível – nós mesmos envelhecermos. O que mais detesto é minha atitude extremamente egoísta frente às tragédias dos outros FOTO: JOHN GIELGUD COM O FIGURINO DA PEÇA MAMÃE GANSO, 1984_HULTON ARCHIVE_GETTY IMAGES
Últimos reflexos do palco
Sessenta anos gloriosos de teatro não foram suficientes para que John Gielgud se transformasse num rosto conhecido da multidão
John Gielgud | Edição 47, Agosto 2010
Sessenta anos gloriosos de teatro não foram suficientes para que John Gielgud se transformasse num rosto conhecido da multidão. Isso só aconteceria em 1981, aos 77 anos, quando ganhou o Oscar pela comédia Arthur – O Milionário Sedutor. O que Shakespeare não conseguira, Hollywood lograra. Gielgud achou divertido. Alguns papéis eram questão de espírito, outros eram apenas comércio. Fosse Resnais ou “xaropadas idiotas” que pagavam as contas, Gielgud enfrentava uns e outros com a mesma altivez. Nos últimos trinta anos de sua correspondência, o ator inglês vê o fim se aproximar, mas não se alarma. É com serenidade e compostura que reflete sobre amigos partidos, glórias (suas e dos outros), e a própria fragilidade do corpo – devidamente escondida da imprensa, para evitar o enterro prematuro nos jornais
1969
PARA HUGH WHEELER [1]
Londres, 25 de março
Graves problemas com o imposto de renda. Meu contador morreu subitamente e agora descobrimos que ele não pagou nada desde 1966!! É preciso levantar uma soma colossal, pois ganhei muito dinheiro nesses últimos três anos, pela primeira vez na vida! Agora dizem que eu não devia ter trazido de volta o dinheiro de A Carga da Brigada Ligeira e, sim, ter enfiado o dinheiro em algum canto do mundo. Tudo muito cacete e complicado – agora eles tomam 60% de tudo o que ganho e põem numa conta separada. Estamos cortando tudo o que podemos.
1971
PARA EMLYN WILLIAMS [2]
Nova York, 24 de janeiro
Muito estranho ficar velho, não é? De certa forma, a gente acha que isso é impossível – nós mesmos envelhecermos, quero dizer. O que mais detesto é minha própria atitude extremamente egoísta frente às tragédias dos outros. Logo penso: “Mas que horror eu vou ter de enfrentar – enfermidades, cirurgias, a perda das poucas pessoas de fato importantes – acidentes? Desastres de avião? Perda da memória, incapacidade de trabalhar? O que vai acontecer?” Mas tenho certeza de que, para cada pessoa, isso acontece de forma inteiramente inesperada, e algum curioso instinto de resistência se ergue, sorrateiro, vindo de não se sabe onde, e nos induz a prosseguir, apesar de toda a infelicidade.
1972
PARA EDITH EVANS [3]
Londres, 9 de abril
Estou de partida para a Califórnia a fim de fazer uma refilmagem de Horizonte Perdido, com Peter Finch. O papel é uma xaropada idiota, nenhum momento que ofereça a mais ínfima possibilidade de representar e me sinto um pouco envergonhado do suborno que me levou a aceitar o trabalho. Mas tive um grave incidente com o imposto de renda três anos atrás e o trabalho deve ajudar a corrigir minha situação outra vez (e, com sorte, deixar uma vaga livre em Denville Hall). [4]
PARA PAUL ANSTEE [5]
Hollywood, 15 de abril
O filme vai custar 6 milhões de dólares, portanto vamos esperar que a música fique boa – nada mais vai sobreviver!
PARA DOROTHY REYNOLDS [6]
Hollywood, maio
Viver aqui é estranho, improvável. Sinto-me como Portia na cena do julgamento, com uma pitada de neto de Von Stroheim, interpretado por Yul Brynner.
Vi um desenho animado hilariante, O Gato Fritz, muito grosseiro e violento, mas antiDisney de maneira brilhante e revigorante (embora, como de costume, eu tenha gostado muito do dia que passei na Disneylândia recentemente – um brinquedo novo e maravilhoso: Piratas do Caribe).
Dizem que a trilha musical de Burt Bacharach [7] é esplêndida, mas não ouvi e graças a Deus não tenho de fingir que canto, como Peter Finch e os outros. Liv Ullmann (também do rebanho de Bergman) é uma atriz linda e faz um contraste adorável com as outras duas atrizes. Um mosteiro fantástico está sendo erguido no cenário, na área livre do estúdio – reaproveitando o castelo do filme Camelot! Imagine só.
PARA PAUL ANSTEE
Filadélfia, 29 de dezembro
Arrasado por ouvir comentários de que Horizonte Perdido é muito ruim – colorido, pavoroso, Peter Finch velho demais para o papel – e também por saber que o filme foi escolhido para a exibição real em Londres – tomara que nessa noite eu tenha algum compromisso. Pobre Senhora Windsor [8] – as coisas que ela tem de fazer pelo bem da Inglaterra.
1975
Terra de Ninguém, de Harold Pinter, estreou no Old Vic no dia 23 de abril. Gielgud dirigiu Judi Dench e Daniel Massey em The Gay Lord Quex.
PARA IRENE WORTH [9]
Londres, 29 de abril
A peça de Pinter correu às mil maravilhas na noite de estreia e todos parecem muito satisfeitos com Ralph e comigo. Me deu um branco total na longa fala no final da última pré-estreia – tentei substituir uma frase que eu havia pulado e acabei fazendo a maior lambança, por isso fiquei apavorado de representar na noite seguinte, mas Deus – ou concentração eficiente – me ajudou, felizmente. Crítica muito boa em toda parte – todos um pouco desconcertados com os trechos obscuros e com a moral, seja qual for, que acabam tirando da peça, ou que deixam de perceber. Mas a peça é divertida, ameaçadora, poética e forte, embora provavelmente a mistura dos ingredientes seja um pouco perturbadora e confunda a plateia. Mas isso acontece, até certo ponto, com todas as peças de Pinter.
1976
PARA HUGH WHEELER
Wotton Underwood, [10] 4 de abril
Vou passar três semanas em Limoges e Paris para trabalhar com Alain Resnais – um papel fascinante num filme com Ellen Burstyn, Dirk Bogarde, David Warner e Elaine Stritch, em um filme muito estranho e abstrato, Providence.
PARA HUGH WHEELER
Wotton Underwood, 27 de junho
Passei três semanas estranhíssimas na periferia de Limoges, filmando com Resnais – muito interessante, mas extremamente frio. Fiquei deitado num parque deslumbrante, numa espreguiçadeira, vestindo um terno estilo Palm Beach, fingindo que achava tudo lindo, enquanto o vento assoviava e toda a equipe se abrigava do frio em agasalhos pesados.
Enfim, sucumbi à tentação de fazer um pequeno papel, em troca de uma grande soma de dinheiro, em Calígula, de Gore Vidal. Martin [11] está muito irritado comigo por ter aceitado, pois originalmente me haviam oferecido o papel de Tibério (que agora será interpretado por Peter O’Toole). Minha primeira cena era sair de uma piscina com um emplastro no nariz e meu rosto todo coberto por eczemas, para em seguida revelar a presença de duas crianças, um menino e uma menina, debaixo da minha túnica, me bolinando. Assim sendo, recusei com soberba e recebi uma carta extremamente grosseira de Gore, dizendo supor que eu jamais lera Suetônio, e perguntando como eu me atrevia a sair por aí dizendo que bons atores deviam ter vergonha de aparecer em tamanha pornografia. Depois, uma ou duas semanas atrás, chegou uma proposta de fazer esse outro papel – um velho senador que corta as próprias veias num banho público e discorda de tudo, e pensei, afinal, por que não? O que Vidal e eu diremos um para o outro, se, e quando nos encontrarmos, é algo em que nem quero pensar. Jamais gostei dele.
1977
PARA DIRK BOGARDE [12]
Wotton Underwood, janeiro
Sua carta tão gentil e generosa me comoveu e me agradou muito. Acho que todos ganharemos algum prestígio com a qualidade de Providence e com a excelência da direção, fotografia e desempenho dos atores. Só vi uma versão inicial do filme, ainda bem precária, quando fui fazer a dublagem em Paris – sem música ainda – e mesmo assim fiquei impressionadíssimo com a beleza e integridade do filme. Desde que li o roteiro, entendi que o filme não tinha a menor chance de atrair senão um público mais intelectualizado. A imprensa popular em Nova York esperneou bastante, o que deve ter sido uma tremenda decepção para Alain.
Apesar disso, como foi divertido – mesmo com as agruras do clima, quente e frio nas horas erradas. Sempre me sentirei orgulhoso de ter trabalhado com você em circunstâncias tão felizes, e de ter conseguido sair ileso de um personagem que receava ser demasiado machão para que eu conseguisse interpretá-lo de modo convincente. Sei que nunca seria capaz de fazê-lo num palco, mas a locação e as falas estranhas infundiram em mim uma espécie de coragem para me soltar de uma forma nova – para mim – na experiência de representar para o cinema.
PARA MICHAEL YORK [13]
Wotton Underwood, 2 de junho
Já contei a você a respeito do terrível momento em que a princesa Grace veio a Nova York e, por um segundo apavorante, quase a cumprimentei pensando que era Deborah Kerr! Tal é a sina de ser idoso! Me pergunto se ela percebeu, pois com muito tato mencionou Mônaco alguns segundos depois, o que fez a ficha cair com um tilintar assustador.
1980
PARA GEORGE PITCHER E ED CONE [14]
Wotton Underwood, 28 de maio
Depois de receber uma propina considerável, aceitei participar de Arthur – O Milionário Sedutor, com Dudley Moore – uma réplica exata do meu velho mordomo – a ser filmado em locações em Nova York. Martin e eu vamos viajar de Concorde e ficar hospedados no Hotel Lombardy, numa suíte que, pouco tempo atrás, foi ocupada por Bette Davis! Garantiram-me que é muito bonita e confortável. O filme é um pouco banal e tenta, mas não consegue, ser uma espécie de fantasia à maneira de Woody Allen. Mas meu papel é ótimo e talvez seja divertido, se o diretor (que é também o autor do roteiro) for inteligente. O nome dele é Steve Gordon. Liza Minelli também vai fazer um papel. Há cenas em automóveis, Tiffany’s, Bloomingdale’s etc. Só rezo para que não esteja um calor medonho demais, pois meu papel é muito arrumadinho e bem vestido. Tenho uma cena de morte num hospital, com um chapéu de caubói na cabeça. Guardem o escárnio para quando assistirem o filme!
1981
Arthur estreou em Nova York em julho de 1981.
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 31 de julho
É claro que estou muito orgulhoso com o sucesso do filme – e muito obrigado a você por escrever e enviar os recortes da imprensa. A New Yorker foi maravilhosa comigo, e o resto da imprensa foi igualmente lisonjeira, portanto espero que apareça logo algum outro convite para trabalhar – quem sabe algo que me leve de volta aos Estados Unidos? Mostraram-me o filme em Londres, e devo dizer que gostei bastante, embora tenha ficado apreensivo, como sempre se fica quando se vê a própria cara exposta em tão grande escala na tela. Achei Liza excelente e subestimada pelos críticos. Dudley grita demais no início, mas vai melhorando ao longo do filme, e é muito gentil e cooperativo nas cenas comigo. Nos demos todos muito bem, apesar daquele calor pavoroso.
1982
Gielgud ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante com Arthur.
PARA ELIZABETH JENNINGS [15]
Wotton Underwood, 24 de abril
Muitíssimo obrigado por sua carta tão amável. Claro que fiquei contente com o Oscar. É estranho tornar-se um ator de cinema popular na minha idade, depois de sessenta anos no teatro. Mas na verdade fiquei mais contente com o sucesso de Brideshead, no qual interpretei um personagem muito divertido e original.
De fato, nada conseguiria me arrastar para a cerimônia de premiação, nem em Londres, nem na Califórnia. Detesto toda essa baboseira de congratulações mútuas e as comparações individuais que elas evocam.
1983
PARA IRENE SELZNICK [16]
Wotton Underwood, 18 de maio
Faz três anos que não represento no teatro, mas estou admirado de constatar que aparentemente não me faz falta. Tenho a grande sorte de estar ingressando em meu octogésimo ano de vida, ainda bastante solicitado para trabalhar em filmes e na televisão, embora não sinta que tenha realizado nada de bom nem numa coisa nem na outra, exceto Providence e Brideshead (trabalhar em ambos valeu bastante a pena). Arthur foi apenas um lance de sorte, mas parece que me tornou mais conhecido do que qualquer outra coisa que eu tenha feito ao longo de sessenta anos no teatro. Muito estranho e muito inesperado.
1984
PARA CLAIRE BLOOM [17]
Wotton Underwood, 22 de agosto
Estou muito triste por causa de Richard [Burton], mas o falatório que surgiu desde que ele morreu é exagerado a ponto de ser constrangedor. Não posso deixar de sentir muita pena de Elizabeth Taylor, de quem Martin e eu nos aproximamos muito, durante a temporada americana de Hamlet. Foi perseguida e importunada com extrema insistência e creio que se comportou com um tato surpreendente. A missa fúnebre, na qual terei de ler um pouco de Shakespeare, será no dia 30, em St. Martin. Emlyn falará algumas palavras e Paul Scofield também vai participar. Tenho horror a multidões e repórteres, como você pode perfeitamente imaginar. Encontrei Richard muitas vezes, três anos atrás, quando trabalhamos em Wagner (que acabou virando uma tremenda trapalhada, custou milhões e nenhum canal quis chegar nem perto, nem na Inglaterra nem nos Estados Unidos). Ele parecia bastante abatido – estava entre duas esposas (embora depois tenha se casado com a moça que trabalhava como continuísta). [18] Todos os dias almoçávamos juntos em seu trailer, uma senhora idosa e simpática cuidava dele e um massoterapeuta tratava de seus braços e costas, que o incomodavam. Jantou comigo na minha última noite de trabalho em Viena, e fez questão de me dar um presente caríssimo – nove taças de vinho de prata. Quase um ano depois, ele me procurou de repente no hotel Dorchester, onde eu estava filmando uma cena curta. Ele tinha feito uma operação muito séria, se casara com a tal moça nova e parecia estar em ótima forma, estava de novo com um bom aspecto – por ter se afastado da bebida, presume-se – e tão elegante, num lindo terno estilo Palm Beach. Enfim…
1987
PARA GEORGE PITCHER E ED CONE
Wotton Underwood, 3 de junho
Larry Olivier fez 80 anos na semana passada, mas fiquei discreto, contentando-me em escrever uma homenagem para a Cerimônia de Gala, embora não vá participar pessoalmente. Martin o detesta e minha amizade com ele foi sempre um pouco oscilante, pois eu adorava Vivien [19], que também gostava muito de mim, o que creio incomodava Larry, embora eu reconheça, é claro, os apertos que ele passou quando viveu com ela.
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 10 de agosto
O círculo de amigos se reduz de modo desalentador a cada ano que passa e tenho uma sorte inacreditável de ainda estar trabalhando, de mente sã, enquanto os meses vão voando muito depressa.
Estou passando um tempo sossegado e tranquilo aqui, depois do mês exaustivo que passei em Israel. Propuseram-me trabalhar em alguns filmes insignificantes no outono e numa peça fascinante, que me deixou angustiado e tentado, mas o papel não era bom o suficiente para garantir meu regresso ao teatro, o que implicaria ter de morar em Londres outra vez e também muita publicidade e uma possível decepção.
1989
PARA JOAN PLOWRIGHT, [20] LADY OLIVIER
Siena, 11 de julho
Cara Joan,
Acho quase impossível escrever qualquer coisa apropriada a respeito da morte de Larry. Toda nossa classe estará de luto junto com você, e você será soterrada por cartas de condolências do mundo inteiro.
Para mim, é difícil acreditar que ele se foi – mas que legado precioso deixou para trás. Não só o formidável talento e o extraordinário alcance de sua obra, mas também a memória de sua personalidade vigorosa, corajosa, sua determinação e sua força como ator, produtor, diretor e homem que enfrenta o destino (mesmo que adverso), a originalidade de sua abordagem em toda empreitada nova e desafiadora, sua coragem física, e não só no palco, mas também a maneira valente como encarou seus poucos fracassos e derrotas, e sobretudo sua recusa em desistir, depois de ter ficado tão gravemente enfermo.
Como você sabe, nunca fomos amigos íntimos nesses longos anos. Ele só conversou comigo num único dia memorável – acho que foi exatamente na época em que ele se apaixonou por você. Conversamos no Algonquin por mais ou menos uma hora, e ele me contou um pouco do tempo torturante que passou quando viveu com Vivien, e alguns outros poucos problemas pessoais, numa demonstração de confiança que me comoveu bastante.
Confesso que sempre tive um pouco de medo dele, pois ele tinha certa distância e autoridade moral. Talvez isso fizesse parte do seu gênio teatral e do seu dom para a liderança.
Ter conhecido você, e a felicidade que você trouxe para ele ao lhe dar os filhos que ele sempre desejara tanto, deve ter sido, pelo menos até certo ponto, uma grande recompensa para ele, a despeito de todos os infortúnios e complicações do teatro South Bank. [21] A maneira como ele conseguiu continuar representando tão bem no decorrer desses anos tão difíceis foi um admirável triunfo de concentração e dedicação.
Fico triste por não tê-lo visto nos últimos anos, mas hesitei em me intrometer na vida de família que ele tanto fez por merecer, e achei que ele talvez se angustiasse por me ver ainda com sorte e bem o bastante para continuar trabalhando, enquanto ele se achava tão tristemente incapacitado.
Por favor, não se sinta obrigada a me responder – minha carinhosa gratidão por tudo o que você deu a ele e meus mais afetuosos votos de felicidade e minha admiração.
1990
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 4 de junho
Terminei o trabalho em A Última Tempestade na semana passada, depois de dois meses muito árduos, mas fascinantes. Ainda não vi nada, mas Peter Greenaway promete me mostrar algumas sequências na tela grande, em Londres. Ele vai para o Japão montar o filme, preparar os truques de mágica e tudo o mais, e espera terminar tudo no final do ano e exibi-lo no ano que vem no Festival de Cannes. É tempo demais. Tive uma experiência sensacional ao fazer o filme – esmagado sob o peso de enormes mantos e roupas que tornavam muito cansativo andar e ficar de pé. Mas os cenários eram formidáveis, a iluminação também. Creio que será uma espécie de balé emocionante, comigo falando todo o texto da peça que estou escrevendo dentro da minha cela! Admirável a variedade de atores de ambos os sexos, multidões mitológicas, animais, palhaços, crianças, negros etc., na maioria nus em pelo, mas rapidamente a gente se acostuma com isso! Tentei não ficar olhando de modo muito ostensivo para aquela formidável exposição de genitálias, e eu mesmo tive de representar nu, dentro de uma piscina, na qual fico lendo um livro enorme, com a miniatura de um galeão na outra mão, enquanto Ariel urina num imenso arco, acima de mim, e nós dois evocamos a tempestade!
PARA CLIVE FRANCIS [22]
Wotton Underwood, 4 de novembro
Dei azar com minha saúde enquanto estávamos fazendo Summer’s Lease na Toscana, no ano passado, e adoeci uma ou duas vezes nos últimos meses, mas fui muito discreto sobre o assunto. Se a imprensa souber de qualquer doença, seguramente vão tratar de me enterrar prematuramente, o que é uma ideia que não me apraz por enquanto. Mas de fato me sinto um pouco distante das coisas, sobretudo, é claro, dos prazeres dos ensaios e da disciplina que apreciei por tanto tempo no teatro. Enfim…
1991
Para George Pitcher
Wotton Underwood, 16 de março
Gostaria de te contar que fiz uma cirurgia de próstata, em 1977 (executada de forma brilhante por fora do corpo, de modo que não tive de ser cortado). Mas infelizmente piorou de novo ano passado, quando estava filmando Summer’s Lease. Trabalhei com muitas dores durante uma semana, e voltei para fazer outra cirurgia, depois da qual pude retornar à Itália e concluir o trabalho. Em seguida tive uma coisa chamada celulite infecciosa, que fez minhas pernas e meus pés incharem, e tive de aguentar tudo isso durante todo o tempo em que filmei A Última Tempestade, no qual tive de ficar em pé e caminhar debaixo de mantos pesadíssimos através de corredores compridos, o que não ajudou nem um pouco. Depois que consegui me desvencilhar disso, levei alguns tombos e desde então ando com reumatismo e falta de equilíbrio. Portanto, você está vendo que o preço de meus pecados começa afinal a ser cobrado! Mas vou tocando o barco da melhor maneira que posso.
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 17 de outubro
Poucas notícias para dar a você. Ganhei o prêmio Emmy por Summer’s Lease, e o filme A Última Tempestade tem causado um grande rebuliço em toda a parte, embora não tenhamos ganho nenhum prêmio nos festivais em que foi exibido. A imprensa se mostra dividida, mas minha interpretação tem sido muito elogiada. Creio que é impressionante do ponto de vista pictórico, esplendidamente imaginativo, uma concepção excelente – só as últimas cenas são elaboradas demais e um pouquinho indigestas, depois de tanto esplendor na primeira metade. Martin, Irene e (imagine só) Lindsay Anderson, que costuma ser destrutivo e cruel acerca do trabalho dos outros, todos se mostram empolgadíssimos. E o filme fez enorme sucesso de bilheteria durante seis semanas em Londres. Amanhã tenho de dar uma entrevista ao New York Times. Foi exibido no Festival de Cinema de Nova York e em breve será lançado em todos os Estados Unidos. De todo modo, estou extremamente orgulhoso de ter vivido o suficiente para ver o filme pronto e saber que, depois que eu tiver partido, restará esse último exemplo de meu trabalho shakespeariano.
Há muitas missas fúnebres nas quais tenho de falar – uma para Peggy Ashcroft mês que vem na Abadia de Westminster, onde tive de descerrar uma placa em homenagem a Olivier no Poet’s Corner, aos pés da estátua do Bardo. Grande escândalo sobre uma nova biografia de Olivier, na qual se diz que ele teve um longo caso com Danny Kaye [23]! Notícia completamente inesperada para mim, mas de repente lembrei que Danny me recebeu em casa com muita generosidade, durante a filmagem de Júlio César! Talvez ele tenha pensado em passar uma cantada em mim e mudou de ideia quando me encontrou cara a cara. Na verdade, ele me embebedou com um ponche de rum! Portanto, nunca se sabe – e eu nunca saberei.
1995
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 20 de fevereiro
John Perry [24] morreu semana passada. Sofreu vários tombos graves e ficou totalmente desorientado – sua vida se arrastou deploravelmente, por dois meses, em hospitais e clínicas de repouso. Keith Baxter e eu o visitamos uma ou duas semanas atrás, mas ele pareceu não nos reconhecer e estava irremediavelmente surdo e confuso. Temos que ficar felizes por ele, por tal situação ter chegado ao fim.
Foi meu primeiro grande amor e moramos juntos de 1936 até o início da guerra, em 1940. Descuidei dele nos últimos anos, em que ele ficou tão surdo e esquecido, e nunca lhe perdoei por ter se tornado amante de Binkie [25] em 1938 e só ter admitido (como sou tolo!) isso em 1942! Ele também vendeu o lindo chalé que tivemos em Essex na década de 30, enquanto eu estava nos Estados Unidos! Tinha um pouco do aventureiro impiedoso, mas era tão bonito e divertido, e agora lamento sua morte, embora não pudesse querer que continuasse a viver naquele estado de alheamento.
1997
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 11 de fevereiro
Irei ao Palácio no dia 28 para passar dez minutos com Sua Majestade e receber a Ordem do Mérito. Toda sorte de instruções por carta, inclusive um pedido para que eu faça um seguro da medalha no valor de 5 mil libras e a devolva após minha morte! Precauções deveras engraçadas. Recordo Lillian Gish, que disse: “Não examine seu Oscar com muita atenção – é só prata pintada de dourado!”
1998
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 24 de novembro
Martin está com algum tipo de doença do sangue chamada LINFONODO. Muita bondade de vocês dois se preocuparem com ele. Graças a Deus não é câncer. Ele tem tratamento toda semana, mas insiste em fazer compras e em me alimentar três vezes por dia. Muito irascível e triste, como eu também, é claro. Dizem que levará sete meses para ele ficar bom.
Martin Hensler morreu em dezembro de 1998. Essa carta foi escrita no aniversário de Martin, mas sem indicação do ano:
PARA MARTIN HENSLER
19 de abril
Que dia de sorte para mim
Meu queridíssimo Martin,
Eu lhe dei meu coração muito tempo atrás. Gostaria de ter algo mais valioso para lhe oferecer agora. Você me deu sua vida e eu apenas rezo para que você não sinta que a desperdiçou. Que o sol brilhe de novo para nós em breve.
1999
PARA GEORGE PITCHER
Wotton Underwood, 7 de setembro
Tudo exige um esforço enorme e preciso que me ajudem a andar, mesmo apoiado em minhas duas horrorosas bengalas, e não pareço estar melhorando nem um pouco. Meus amigos vêm me ver de tempos em tempos e ajudam a me alegrar – sem grande sucesso, infelizmente. Suponho que seja inevitável, após sete longos meses. Me arrasto de um cômodo para o outro e tento não desabar.
Penso no passado com nostalgia e, como sempre, com muita afeição.
Amor, John
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John Gielgud morreu no dia 21 de maio de 2000, aos 96 anos de idade.
[1] Hugh Wheeler (1912–87), escritor e letrista inglês.
[2] Emlyn Williams (1905–87), ator e dramaturgo galês.
[3] Edith Evans (1888–1976), atriz britânica.
[4] Asilo para atores aposentados ou sem recursos.
[5] O decorador P. Anstee foi testamenteiro de Gielgud.
[6] Dorothy Reynolds (1913–77), atriz britânica.
[7] O compositor americano Burt Bacharach compôs a trilha de Horizonte Perdido.
[8] Rainha Elizabeth II.
[9] Irene Worth (1916–2002), atriz americana.
[10] Em 1976, John Gielgud mudou-se para essa pequena cidade a 100 quilômetros de Londres. Depois de sua morte, a casa senhorial em que residia foi comprada pelo ex-primeiro ministro Tony Blair por 4 milhões de libras.
[11] Martin Hensler, morto em 1998, parceiro de John Gielgud por mais de quarenta anos.
[12] Dirk Bogarde (1921–99), ator e escritor inglês.
[13] Michael York (1942-), ator britânico que trabalhou com John Gielgud em Horizonte Perdido.
[14] George Pitcher (1925-), professor de filosofia em Princeton, parceiro de Edward T. Cone (1917-), compositor e professor de música.
[15] Elizabeth Jennings (1926–2001), poeta inglesa.
[16] Irene Mayer Selznick (1907–90), produtora americana.
[17] Claire Bloom (1931–), atriz inglesa.
[18] Sally Burton.
[19] Vivien Leigh (1913–67), atriz britânica, segunda esposa de Laurence Olivier.
[20] A atriz inglesa Joan Plowright, nascida em 1929, se casou com Laurence Olivier em 1961.
[21] O National Theatre, instituição parcialmente mantida pelo Estado, cujo primeiro diretor foi Olivier.
[22] Clive Francis, nascido em 1946, ator e caricaturista inglês.
[23] Danny Kaye (1913–87), ator, cantor e comediante americano.
[24] John Perry (1906–95), ator e dramaturgo irlandês, amante de John Gielgud nos anos 20 e 30.
[25] Hugh “Binkie” Beaumont (1908–73), produtor teatral inglês.
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