ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Um chavoso na USP
Aluno de ciências sociais usa a internet para emancipar a quebrada
Yasmin Santos | Edição 167, Agosto 2020
Thiago Torres está paramentado. Com um boné Lacoste, óculos de sol espelhado tipo Juliet (de lentes ovaladas), correntes de prata no pescoço, brincos e camisa do clube de futebol francês Paris Saint-Germain, ele posa para uma foto. O universitário e youtuber de 20 anos tem bigode fino, tatuagens pelo corpo e empunha o livro A Liberdade É uma Luta Constante, da ativista norte-americana Angela Davis. Depois de salvar a imagem, ele insere na borda inferior esta frase: “Pra Lili canta nois vai ter q lutar.” Com muita “lili-berdade”, Torres caprichou no visual “chavoso” – termo cunhado nas periferias de São Paulo para designar uma pessoa estilosa, que não passa em branco (a palavra deriva da expressão “chave de cadeia”: alguém propenso a causar confusão).
A foto foi feita especialmente para uma conta no Instagram, a Funkeiros Cults, que difunde o pensamento de escritores e intelectuais, como Judith Butler, Machado de Assis, José Saramago, Lélia Gonzalez e Eduardo Galeano, em meio a referências musicais e linguísticas das periferias. A finalidade da página, que tem cerca de 180 mil seguidores, é incentivar a leitura e acabar de vez com o preconceito de que funkeiros são iletrados. A descrição do perfil na rede social dá o tom: “O Juliet não impede de nós ver novos horizontes.”
A proposta da Funkeiros Cults é similar à de Torres no YouTube. “Eu quero ajudar a emancipar a quebrada”, ele diz sobre o seu canal, que, em 29 de julho último, tinha cerca de 60 mil inscritos e 668 mil visualizações. “Meu objetivo é despertar o interesse pelo estudo, mostrar que o pessoal da periferia pode estudar. Eles aprendem muita coisa pela vivência, o que é importante. Mas, quando essa vivência está aliada a um conhecimento teórico, as coisas ficam mais claras. Eles conseguem entender o que gera revolta.”
“Além das questões materiais, três coisas são fundamentais para entrar numa universidade: as referências, o incentivo e a informação”, comenta o jovem chavoso. E conta que, no caso dele, os fundamentos foram aprendidos com o pai, que nasceu no interior do Piauí e teve que interromper os estudos para trabalhar. Jovem ainda, migrou para São Paulo, casou-se e teve dois filhos. Trabalhou como feirante, mas conseguiu tempo para fazer cursos supletivos. Aos 45 anos, começou a cursar administração numa universidade privada de Guarulhos, na Grande São Paulo, graças ao Prouni (Programa Universidade para Todos). “Eu entendo que o exemplo do meu pai foi essencial para que eu conseguisse chegar aonde estou hoje”, avalia Torres.
As letras do rap e funk paulistas ensinaram ao rapaz que a sociedade se organiza de maneira injusta, marginalizando grande parte das pessoas, sobretudo os negros. Movido por um sentimento de indignação, Torres foi atrás de leituras que suprissem suas dúvidas sobre como o “sistema” funciona e vislumbrou nas ciências sociais um meio de ampliar seus conhecimentos – e depois transmiti-los para a favela. Ele queria fazer seu curso na USP. Mas essa universidade, embora fosse pública, se mostrava um destino inacessível a alguém como ele, negro e favelado.
Como a lei nº 12711, de 2012, estabeleceu a obrigatoriedade de políticas de ações afirmativas apenas para instituições federais de ensino, a USP, mantida pelo governo estadual paulista, evitou o quanto pôde a adoção das cotas raciais. Só cedeu à pressão em 2017.
A experiência de entrar num ambiente muito diverso daquele ao qual estava acostumado gerou nele um forte conflito interior. Em abril de 2019, um ano depois de ter ingressado em ciências sociais, Torres desabafou no Facebook: “Viver em dois mundos diferentes é uma coisa tão difícil.” O texto estabelece um paralelo entre a sua vida na Brasilândia, periferia paulistana onde cresceu, e o que vivenciava – e ainda vivencia – no ambiente uspiano. “Ver de onde você veio e ver de onde outras pessoas vieram. Perceber que elas estão com anos (ou séculos) de avanço/vantagem em relação a você e aos seus. Está sendo bem triste e bem difícil para mim lidar com tudo isso, com esse choque de realidades”, escreveu.
O texto também foi motivado pelo reencontro com um amigo depois de vários meses. Torres entrara na “melhor universidade da América Latina”, como ele repete orgulhosamente, enquanto o amigo fora expulso de casa, estava desempregado e tinha se tornado usuário de drogas. “Não por acaso ele era negro também. Isso mexeu muito comigo”, diz. O desabafo no Facebook era destinado aos seus amigos mais próximos, mas viralizou instantaneamente. A publicação acumula hoje mais de 56 mil curtidas.
Depois que publicou o texto, o jovem ganhou visibilidade: foi entrevistado por alguns veículos de imprensa e deu palestras em escolas públicas das periferias de São Paulo. Em agosto do mesmo ano, Torres resolveu criar o canal no YouTube.
Nos primeiros vídeos, ele falava do que as pessoas mais tinham curiosidade de saber: quem é o chavoso da USP, como conseguiu entrar numa universidade tão afamada, como montou um cronograma de estudo e aprendeu sozinho inglês e química. Depois, passou a unir vivência e teoria, difundindo vídeos sobre democracia, racismo, o tal “sistema” e a importância sociopolítica do rap e do funk.
Entretanto, um dos conteúdos mais pedidos por seus seguidores ainda não saiu do papel: como é ser gay na periferia. Torres – que está no terceiro ano da faculdade – conta que muita gente costuma se espantar quando descobre sua orientação sexual. Para quem não é da quebrada, as roupas e os adereços do estudante são como uma grande etiqueta onde está escrito: “heterossexual.” Do lado de lá não é bem assim. “Quando converso com algum moleque que tem o mesmo estilo que o meu e, por algum motivo, falo que sou gay, ele se surpreende, mas não muito”, conta. “Agora, quem não é da periferia toma quatro choques seguidos: ‘Ele é negro, chavoso, se comunica muito bem e é gay!’”
Para celebrar o Dia Internacional do Orgulho LGBTQI+, Torres preparou um vídeo de 26 minutos explicando o que é gênero e os diferentes tipos de orientação sexual. Uma seguidora identificada como jul mel comentou: “O sonho da minha vida é esse assunto ser tratado na escola e explicado como foi feito no vídeo.” Esse é também o sonho de Torres.
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Versão corrigida e atualizada corrigida às 20h 28min de 7 de agosto de 2020.
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