ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Um cogumelo atômico no café-da-manhã
Grupo de artistas tchecos inaugura uma nova modalidade de susto
Paula Scarpin | Edição 18, Março 2008
Muita gente conta que, ao ligar mecanicamente a televisão no dia 11 de setembro de 2001, supôs estar diante de uma peça de ficção. Os primeiros minutos foram mais de perplexidade do que alarme. Que diabos era aquilo? A ficha não demorou a cair, mas o fato é que não caiu no primeiro instante, quem sabe se pela convivência diária com efeitos especiais. Há setenta anos, o mundo parecia mais inocente. Em 30 de outubro de 1938, precisamente no Dia das Bruxas, Orson Welles encenou, ao vivo, na rádio CBS de Nova York, a sua famosa adaptação de A Guerra dos Mundos, do escritor inglês H. G. Wells, na qual extraterrestres invadiam a Terra. Não se sabe ao certo quantas pessoas levaram a sério a chegada de marcianos a Nova Jersey, mas rebuliço houve, a ponto de a transmissão ter merecido não só uma primeira página do New York Times – “Ouvintes em pânico após levar drama a sério” – , como um discurso de Hitler, que, de dedo espetado no ar e praticamente tendo um troço, declarou ao seu Volk que o pânico era “uma prova da decadência e da corrupção da democracia”. Parece que na época se tinha mais consideração pelo fim dos tempos.
Não mais. Em março, será julgado um grupo de rapazes que, na mesma veia de Orson Welles, ainda que com propósitos outros, e resultados francamente decepcionantes, invadiu televisões com uma cena de pesadelo. Era 17 de junho, domingo, e uns poucos tchecos sonolentos repetiam monotonamente o ritual de acordar cedo. Bocejaram, calçaram o chinelo, deram uma espreguiçada e, para saber que roupa vestir, sintonizaram a TV no Canal 2. Estava no ar o programa-Lexotan Panorama, que, ao vivo, sobre um fundo de belas paisagens do interior do país, oferece a previsão do tempo. No dia em questão, a bela paisagem era a serra Krkonose, nos Sudetos, cadeia montanhosa ao norte da República Tcheca. Tudo corria na placidez mais bovina quando, de súbito, as encostas verdejantes de Krkonose foram tomadas pelo apocalipse: primeiro um clarão; depois, um cogumelo nuclear. A música de consultório odontológico que acompanhava as informações do tempo (estável,
14º Celsius) seguiu impávida, anunciando um dia chatíssimo até do ponto de vista meteorológico. O cogumelo atômico cedeu lugar a outras paisagens bucólicas. A julgar pela escassez de registros de suicídios e ligações desesperadas para a polícia, a população continuou igualmente entorpecida. Não seria demasiado imaginar que, depois de ver uma explosão nuclear ao vivo na televisão, alguém coçou a cabeça, disse “muito bem, muito bom” e foi escovar os dentes.
Os telespectadores mais atentos (se é que havia algum) perceberam uma segunda bizarrice na imagem: a inclusão de uma legenda com o endereço www.ztohoven.com. Quem resolvesse acessar o site encontraria ali um manifesto estético-político em tom francamente defensivo: “Não somos um grupo terrorista ou político, e nosso objetivo não é intimidar ou manipular a sociedade, como vem ocorrendo na vida real e na mídia”. As quinze linhas seguintes alertavam quanto a possíveis manipulações da informação.
O grupo, que se classifica como “arte de guerrilha”, apareceu pela primeira vez nos noticiários tchecos ao intervir na instalação do artista Jiøí David, transformando um coração de neon que adornava o Castelo de Praga num ponto de interrogação. Com algum traquejo eletrônico, não foi difícil para os hackers do Ztohoven apagar a metade esquerda do coração e acrescentar um pontinho embaixo, completando o sinal.
Para hackear uma transmissão de TV ao vivo, entretanto, foram necessários três anos de preparação. Primeiro, descobriram que as câmeras espalhadas pelo país não tinham vigilância. Em seguida, escolheram uma das centenas de paisagens do programa Panorama, produziram uma imagem semelhante – uma suave panorâmica das tais colinas de nome impronunciável – e, eletronicamente, inseriram o cogumelo atômico. O resultado não primava pela excelência técnica, mas às 8h16 da manhã de um domingo, quem haveria de ligar? No dia combinado, foram até a pedreira onde fica instalada a câmera original e, no momento da transmissão, deram um jeito de trocar os cabos. Pronto: no lugar da imagem ao vivo, uma explosão transmitida para todo o país.
Como seria de imaginar, o canal que involuntariamente hospedou a performance acionou o grupo na Justiça, por alarmismo e difusão de informação falsa. Se condenados, os seis membros do Ztohoven diretamente envolvidos com a farsa podem receber uma sentença de até três anos de prisão. “Não acredito que isso vá além de uma condicional de dois anos”, calcula, com uma ponta de otimismo, Zdenìk Dostál, um dos seis sob as presas da Justiça, quase sussurrando ao telefone para não fazer muito alarde no escritório de design onde trabalha, em Praga.
Foneticamente, ztohoven pode significar tanto “fora da merda” como “cem merdas”. Zdenìk Dostál explica: “O nome é uma brincadeira de duplo sentido. Tem a ver com a nossa vontade de fazer uma crítica da mídia e, ao mesmo tempo, reconhece que não somos grande coisa”. O número de integrantes do grupo é próximo da centena. “Mas o pessoal mais ativo não chega a dez. Quanto maior a confusão, menor o envolvimento”, diz Dostál, sem esconder o sarcasmo.
Caso a pena se converta em pagamento de fiança, o Ztohoven já tem um fundo de reserva que lhe caiu do céu: o vídeo do making of da intervenção foi premiado pela Galeria Nacional, que o considerou o momento mais interessante das artes visuais na República Tcheca em 2007. “É curioso pensar que um órgão estatal, como a Galeria Nacional, considera arte aquilo que outro órgão do Estado, no caso o Canal 2, considera um crime”, diverte-se Dostál, no melhor estilo anarquista. O prêmio NG333 contemplou o grupo com 333 mil coroas tchecas, algo em torno
de 35 mil reais.
O caso talvez não passe de uma blague, mas alguns jornais o trataram como o início de algo preocupante: o terrorismo virtual. Nos Estados Unidos, já existem computadores que simulam a voz humana, e em poucos anos será possível sintetizar o timbre de um chefe de Estado, recurso que, em mãos inimigas, fará o pobre homem dizer o que nunca disse. Exemplo: “Como comandante-em-chefe das Forças Armadas americanas, ordenei um ataque à República Tcheca. O país mantém campos de treinamento de terroristas nas colinas Krkonose”. Bastará, então, invadir as ondas de uma rádio. Para profissionais com experiência em cogumelos atômicos, favor entrar em contato com o pessoal do Ztohoven.