Compreensivo, provocador, impiedoso, dissimulado, insistente, agressivo e desafiador, Lanzmann assume a cada momento a postura que julga ser a mais eficaz para extrair dos personagens entrevistados o relato ou a informação que deseja obter A. ABBAS_MAGNUM PHOTOS
Um dinossauro na autoestrada
A ira e o afeto de Claude Lanzmann
Eduardo Escorel | Edição 143, Agosto 2018
Quando O Último dos Injustos estreou em Paris, em 2013, o diretor Claude Lanzmann reagiu irritado aos comentários sobre seu oitavo filme feitos pela historiadora Sylvie Lindeperg em entrevista ao jornal Le Monde. A irritação estava longe de ser novidade. A carreira de Lanzmann no cinema, iniciada em 1972, quando filmou Por que Israel, um documentário de três horas de duração sobre o significado de ser judeu, é marcada por inúmeras manifestações de ira, algumas ocorridas inclusive no Brasil.
Em 2011, na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, onde esteve para lançar a edição brasileira do seu livro de memórias, A Lebre da Patagônia, Lanzmann reclamou, entre outras coisas, do clima da cidade. Na entrevista coletiva, quis saber se havia algum cemitério atraente nas proximidades: “Estou lutando pela minha vida a cada minuto que fico neste lugar. É tudo tão úmido, que estou dando os últimos suspiros.” Em flagrante abuso da informalidade adequada à ocasião, Lanzmann deu-se ao direito de bebericar uísque enquanto ouvia as perguntas dos jornalistas.
Na mesa “A ética da representação”, da qual participou, ao ouvir o nome do filósofo e crítico de arte Georges Didi-Huberman, citado pelo mediador Márcio Seligmann-Silva, Lanzmann disse tratar-se de um “imbecil”. Fora isso, tentou humilhar o mediador, desrespeitou o público e ameaçou abandonar o palco. Dias depois, em São Paulo, perguntou a uma repórter: “Você acha que eu fui brutal? Não fui brutal, é o meu jeito vivo de ser.”
No mesmo dia em que essa declaração de Lanzmann foi publicada, Seligmann-Silva contemporizou, minimizando o incidente ocorrido na Flip. Em artigo na Folha de S.Paulo, considerou irrelevante o comportamento de Lanzmann e relegou a preocupação com as atitudes dele “aos mitógrafos de plantão”, mais interessados na biografia do que na obra. O debate importante, para Seligmann-Silva, seria o que deve prosseguir “em torno do desafio da representação de Auschwitz”, referindo-se em particular a Shoah, segundo filme de Lanzmann, que o historiador Pierre Vidal-Naquet considerou “a única grande obra histórica francesa sobre o tema do genocídio de Hitler”.
A fim de respeitar o preceito de Seligmann-Silva, evitando levar em conta a influência que a personalidade do criador possa exercer sobre sua obra, deveríamos então circunscrever qualquer comentário ao âmbito de seus filmes, deixando de lado as atitudes do diretor? Essa seria mesmo a postura crítica mais adequada, especialmente no caso de Lanzmann?
Tratando-se de uma filmografia baseada na interação do diretor com seus personagens, como é a de Lanzmann, não seria mais do que justificado levar em conta a dinâmica que ele impõe às filmagens? Na medida em que assume, além dos papéis de entrevistador e interlocutor, também o de âncora, o desempenho de Lanzmann não se torna passível de avaliação? E, finalmente, a participação dele em debates, entrevistas, seminários etc. não faz parte da discussão suscitada por seus filmes, estando sujeita igualmente a escrutínio?
“Deselegante, arrogante, prepotente, desagradável, descortês, indelicado, grosseiro, ofensivo, rude, desrespeitoso, mal-educado, intratável, truculento, tirânico” – esses são os adjetivos que o jornalista Sérgio Rodrigues sugeriu no seu blog para qualificar a atitude de Lanzmann na Flip. Alguns serviriam à perfeição para descrever sua postura não só em inúmeras outras ocasiões, mas em entrevistas que filmou ao longo de sua trajetória. Sem esquecer que, diferentemente do ocorrido aqui nos trópicos, dois anos depois Lanzmann foi de extrema cordura e simpatia no hemisfério Norte, mesmo falando e entendendo mal a língua inglesa, como ele próprio admitiu em uma conversa de 90 minutos, no dia da exibição de O Último dos Injustos no Festival Internacional de Documentário de Amsterdã (IDFA). Prova de que era capaz de ser polido quando lhe convinha, mesmo após ferir a mão e estando mentalmente confuso, conforme declarou no festival.
Embora seja de uso comum, o termo “holocausto” foi rejeitado por Lanzmann, em função de suas implicações teológicas. Ele adotou shoah como título de seu segundo filme, mesmo sem saber hebraico e entender o sentido da palavra, precisamente com a intenção de que ninguém a entendesse, conforme explica em suas memórias. Para ele, shoah acabou tomando o lugar de “holocausto”, “genocídio”, “solução final” – “todos substantivos comuns. Shoah é hoje um nome próprio, logo único, e enquanto tal, intraduzível”, escreveu.
O significado original bíblico de holocausto – sacrifício em que a vítima é queimada – sugere que os judeus tenham sido oferendas sacrificiais, noção que Lanzmann recusa. Shoah, por sua vez, aparece na Bíblia hebraica com o sentido de devastação provocada por desastre natural, como um terremoto ou uma inundação, e veio a incorporar o sentido de “catástrofe, destruição ou extermínio feito pelos nazistas”, conforme esclarece o professor Stuart Liebman em sua introdução a Claude Lanzmann’s Shoah: Key Essays [Shoah de Claude Lanzmann: ensaios fundamentais].
Realizado ao longo de onze anos e lançado em 1985, Shoah trata da memória do extermínio de judeus cometido pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e dura 9h26min. Em forma de mosaico de peças de tamanhos, formatos e cores desiguais, o filme é construído basicamente com entrevistas e algumas reencenações, todas conduzidas, e em alguns casos instigadas, por Lanzmann, sempre presente por meio de sua voz em off ou mesmo diante da câmera. É ele quem lê, em frente à antiga sinagoga de Grabow, na Polônia, uma carta escrita em janeiro de 1942, na qual o rabino Jacob Schulman confirma que milhares de judeus haviam sido exterminados na vila de Chelmno, mortos a tiros ou por intoxicação por gás, e implora pela ajuda do “Criador do universo”. Lanzmann comenta que “o Criador do universo não veio ajudar os judeus de Grabow. Eles morreram nos caminhões de gás, junto com o rabino, poucas semanas depois”.
Compreensivo, provocador, impiedoso, cínico, dissimulado, desdenhoso, insistente, agressivo e desafiador, Lanzmann assume a cada momento a atitude que julga ser a mais eficaz para extrair dos personagens entrevistados o relato ou a informação que deseja obter. Esse é seu objetivo – para atingi-lo, desconsidera ressalvas de ordem ética e tampouco mede as possíveis consequências, para si mesmo e sua equipe, de enganar seus interlocutores.
Participam de Shoah cerca de vinte sobreviventes dos campos de concentração e extermínio, além de seis nazistas, três deles filmados com uma câmera oculta. Também são filmados camponeses, trabalhadores e moradores das cidades próximas dos campos, testemunhas das prisões e remoções forçadas de judeus; o maquinista do trem que transportava homens, mulheres e crianças para serem exterminadas em Treblinka, na Polônia; o historiador Raul Hilberg; Jan Karski, mensageiro do governo polonês no exílio; dois ex-combatentes do gueto de Varsóvia, entre outros. São, ao todo, mais de sessenta entrevistados. Alguns na condição de protagonistas, com mais destaque e maior número de intervenções ao longo do filme.
Lanzmann admite em suas memórias, com a convicção dos ungidos, ter mentido quando necessário, do jeito que foi preciso. Diz ter optado “pela enganação, pelo subterfúgio, pela clandestinidade, pelo risco máximo” para ter acesso a ex-oficiais nazistas e entrevistá-los. “O preço da franqueza e da honestidade vinha sendo uma estrondosa falência, eu precisava aprender a enganar os enganadores, era esta uma obrigação imperiosa.” A alternativa foi adotar nova identidade, obter passaporte falso e criar um fictício Centro de Estudos e Pesquisas em História Contemporânea, vinculado à Universidade de Paris. Subterfúgios que, aliados à oferta de pagamentos de vulto, lhe permitiram filmar, além dos nazistas que aparecem no filme, outros cinco não incluídos na montagem. Entre eles, Heinz Schubert, chefe de um Einsatzgruppen (grupo de extermínio subordinado à ss – a Schutzstaffel, organização policial e militar encarregada inclusive da administração dos campos de concentração e de extermínio), responsável por uma das maiores matanças da Segunda Guerra, ocorrida em Simferopol, na Crimeia, na qual perderam a vida mais de 22 mil pessoas, a maioria formada por judeus, russos, krymchaks e ciganos.
Foi com mau pressentimento, conforme relata em suas memórias, que Lanzmann se preparou para filmar Schubert. O transmissor foi afixado no torso nu do diretor e o microfone camuflado na gravata, como pode ser visto no documentário Claude Lanzmann: Espectros do Shoah (2015), de Adam Benzine. Escondida em uma bolsa, a pequena câmera transmitiria a entrevista à unidade móvel de gravação, instalada em uma Kombi estacionada em frente à mansão de Schubert. Mesmo sem terem confirmado a visita com antecedência, Lanzmann e a assistente Corinna Coulmas foram recebidos por Schubert e sua mulher. A vastidão do conhecimento de Lanzmann sobre os extermínios feitos pelos nazistas pareceu espantar Schubert, mas a conversa acabou engrenando e seguia animada quando quatro jovens latagões invadiram a sala, ordenando aos gritos que a bolsa fosse aberta. Os rapazes disseram a Schubert que sua voz podia ser ouvida do outro lado da rua e que a conversa estava sendo gravada.
Choveram socos, bofetadas e pontapés. Embora feridos, Lanzmann e Coulmas conseguiram sair da casa, ela agarrada à bolsa com a câmera. Já na rua, para poder fugir, Lanzmann arrancou a bolsa dos braços da assistente e a atirou nos perseguidores. Depois de arrastar Coulmas para o beco onde o carro deles estava estacionado, Lanzmann manobrou o veículo e foi ao encontro da barreira humana formada na saída da rua pelos agressores e vizinhos. “Eu tinha uma única possibilidade de escapar deles, de escapar da polícia e de todas as consequências desastrosas que viriam depois: não reduzir, passar com tudo, passar por cima”, escreve em suas memórias. “Eles perceberam que eu preferia ferir ou matar a ser preso, minha determinação era tão clara que o paredão se abriu feito as águas do mar Vermelho diante de Moisés.” O cineasta e sua assistente escaparam vivos, mas sangrando muito, e a surra custou a Lanzmann um mês de hospital, além de muita dor de cabeça.
O episódio, emblemático da determinação férrea de Lanzmann, indica até onde ele estava disposto a ir para atingir seu objetivo, a ponto de fazer de si próprio, e de sua assistente, as vítimas. Outras vezes, porém, ainda que sem recorrer à violência física para chegar onde desejava, ele mesmo foi o agressor ao conduzir certas entrevistas. O exemplo mais notório é o de Abraham Bomba, sobrevivente de Treblinka.
Depois de ter trabalhado como barbeiro na estação Grand Central, em Nova York, onde Lanzmann o encontrou pela primeira vez, com grande dificuldade, Bomba tinha se mudado para Israel e não exercia mais a profissão. Para filmá-lo, Lanzmann então alugou uma barbearia e fez uma encenação – Bomba simula estar cortando o cabelo de um homem enquanto é entrevistado. Conta, sem olhar para a câmera, que cerca de quatro semanas após ter sido internado no campo de extermínio, os alemães ordenaram que os barbeiros deveriam ser reunidos “para fazer determinado serviço”, sem especificar qual seria. Formado o grupo de dezesseis profissionais que foi possível reunir, todos foram levados para uma câmara de gás e receberam ordem para cortar o cabelo das mulheres que para ali eram levadas, completamente nuas, algumas com crianças, antes de serem mortas. Muitas vinham de Czestochowa, cidade natal de Bomba, e ele não só as conhecia como era amigo de algumas delas.
Bomba conta que estavam trabalhando na câmara de gás quando entraram a mulher e a irmã de um deles – um bom barbeiro de Czestochowa, seu amigo. Incapaz de continuar o relato, ele fica em silêncio durante mais de um minuto. Passa uma toalha no rosto, vira de costas, até que Lanzmann insiste: “Continue, Abe. Você precisa continuar. Você precisa.” Bomba: “Eu não posso. É horrível demais. Por favor.” Lanzmann: “Nós precisamos fazer isto. Você sabe disso.” Bomba: “Eu não serei capaz de fazer isso.” Lanzmann: “Você precisa fazer isso. Eu sei que é muito duro. Eu sei e eu peço desculpas.”
Após nova pausa, Bomba pede: “Não me faça continuar, por favor.” Lanzmann: “Por favor. Nós precisamos continuar.” Bomba: “Eu disse a você que hoje vai ser muito difícil. Eles estavam levando aquilo [o cabelo] em sacos e levando para a Alemanha. […] Os barbeiros não podiam contar para elas que aquele era o último momento em que estariam vivas, porque atrás deles havia nazistas alemães, homens da SS, e sabiam que no minuto que dissessem uma só palavra, não apenas à mulher e à irmã, contando que estavam condenadas, também eles teriam o mesmo fim. Mas tentaram fazer o melhor para elas, tentaram ficar com elas um instante a mais, um minuto a mais, só para abraçá-las e beijá-las, por que sabiam que nunca mais as veriam.”
Lanzmann conseguiu extrair de Bomba o que pretendia, sem ocultar seu método, o que talvez possa ser creditado a seu favor e amenize a violência que cometeu.
Com Shoah, Lanzmann atingiu seu apogeu como cineasta, precocemente. Era, afinal, apenas seu segundo filme. Ex-combatente da Resistência francesa durante a Segunda Guerra, jornalista, escritor, integrante do conselho editorial da revista Les Temps Modernes e intelectual maduro, aos 60 anos foi aprisionado pelo tema do extermínio de judeus pelos nazistas, do qual nunca mais se libertou.
Excetuando Tsahal (1994), sobre o Exército israelense, e Napalm (2017), no qual retoma episódio narrado em A Lebre da Patagônia – seu encontro com a enfermeira Kim Kun Sun, por quem se apaixonou na visita que fez à Coreia do Norte, em 1958 –, todos os filmes de Lanzmann realizados a partir de 1985, em 32 anos de carreira, derivam diretamente de Shoah, inclusive Les Quatre Soeurs [As quatro irmãs], lançado em 2017 nos festivais de Nova York e Viena e neste ano no canal franco-alemão de tevê Arte.
Em Un Vivant Qui Passe [Um visitante dos vivos, 1999], ele retoma a entrevista filmada para Shoah, em 1979, com Maurice Rossel, delegado da Cruz Vermelha Internacional, enviado para inspecionar o gueto e campo de concentração de Terezín, ao norte de Praga, em junho de 1944; Sobibor, 14 Octobre 1943, 16 Heures [Sobibor, 14 de outubro 1943, 16 horas, 2001] recupera a entrevista de Yehuda Lerner, também filmada em 1979, à qual acrescenta filmagens feitas em 2001, para narrar a revolta dos prisioneiros do campo de extermínio de Sobibor, na Polônia oriental, quando oficiais nazistas foram assassinados, centenas de prisioneiros fugiram e outros tantos foram massacrados. Pouco depois da rebelião, o campo de extermínio foi destruído pelos nazistas para apagar as provas.
No caso de O Relatório Karski (2010), Lanzmann retoma, 25 anos depois, o longo depoimento de Jan Karski, do qual 40 minutos das oito horas filmadas foram incluídos em Shoah, deixando de fora, porém, a parte que o próprio Karski julgava ser a mais importante – o relato de sua missão, no final de 1942, para “alertar o Ocidente sobre o destino reservado aos judeus da Europa sob a ocupação nazista”. Karski conta, em artigo publicado em 1986, que descreveu “a tragédia dos judeus para quatro membros do Gabinete de Guerra britânico, incluindo Anthony Eden [secretário de Estado de Relações Exteriores]; o presidente Roosevelt e três membros-chaves do governo americano; o delegado apostólico em Washington; líderes judeus nos Estados Unidos; escritores ilustres e comentaristas políticos como Walter Lippmann e George Sokolsky”. Mas, “os governos aliados, únicos capazes de prover assistência aos judeus, os deixaram à sua própria sorte. […] Os líderes de nações, governos poderosos, ou decidiram sobre o extermínio ou tomaram parte no extermínio ou atuaram com indiferença em relação ao extermínio”, Karski escreveu.
Mesmo afirmando que “Shoah é indiscutivelmente o maior filme sobre a tragédia dos judeus surgido depois da guerra”, Karski considera que “a grandeza do talento, determinação, e verdade feroz, mas também da autolimitação [de Shoah]” criaram “a necessidade de um novo filme, igualmente grandioso, igualmente verdadeiro – um filme que apresentará uma segunda realidade do Holocausto. […] Não para contraditar o que Shoah mostra, mas para completar.” É esse complemento que O Relatório Karski propõe ser. Embora com atraso, o filme procura atender a reivindicação de seu protagonista e torna patentes as possíveis implicações políticas e morais da simples e rotineira decisão de deixar de fora, na montagem, mais de 90% de uma entrevista, o que pode ser tomado pela pessoa entrevistada como uma traição à confiança que depositou no diretor.
No longo texto de abertura de O Último dos Injustos, filme com 3h40min de duração, Lanzmann explica que as revelações do rabino Benjamin Murmelstein feitas durante uma entrevista de catorze horas, em 1975, nunca deixaram de assombrá-lo. Não tendo incluído nada dessa filmagem em Shoah, ele sabia ser “o guardião de algo único”, mas recuou diante da “dificuldade de construir um filme como esse”. Levou mais de três décadas para aceitar “o fato de que não tinha o direito de manter” inédita a entrevista, só retomando o projeto em 2011.
Na conversa com Lanzmann, ocorrida ao longo de uma semana em Roma, e que é o cerne de O Último dos Injustos, Murmelstein esclarece que aquela não era a sua estreia diante de uma câmera: “Fui filmado a primeira vez sentado ao lado do decano do Conselho [Paul] Eppstein, na filmagem de Theresienstadt, ein Dokumentarfilm aus dem Jüdischen Siedlungsgebiet [Terezín, documentário sobre a zona de povoamento judeu]”, mas a cena foi descartada na montagem porque Eppstein, assassinado com um tiro na nuca dias depois, “não podia aparecer em um filme de propaganda”. Terezín (ou Theresienstadt, como os alemães a chamavam) era uma cidade fortificada, 70 quilômetros a nordeste de Praga, transformada em gueto e campo de concentração a partir de 1941.
Produzido por iniciativa do Departamento de Assuntos Judeus da Gestapo com dinheiro confiscado dos judeus tchecos internados no campo, o documentário Theresienstadt é analisado por Sylvie Lindeperg em La Voie des Images: Quatre Histoires de Tournage au Printemps-Été 1944 [O caminho das imagens: quatro histórias de filmagem durante a primavera-verão de 1944], publicado em 2013, mesmo ano do lançamento de O Último dos Injustos.
Com o assassinato dos dois primeiros decanos do Conselho de Terezín – Jakob Edelstein, executado em Auschwitz após ter sido forçado a ver a mulher e o filho serem mortos a tiros, e Paul Eppstein –, Murmelstein passou a ser o decano. Administrador eficiente, ele estabeleceu a semana de 70 horas de trabalho para ajudar o comandante do campo a atingir as cotas de produção e, quando começaram as deportações para Auschwitz, recusava pedidos para livrar internos de serem deportados, a não ser que o solicitante aceitasse partir no lugar da outra pessoa.
Quando o campo de concentração de Terezín foi libertado pelas tropas russas, em maio de 1945, Murmelstein foi preso, acusado de colaborar com os nazistas. No julgamento feito pelas autoridades tchecas foi considerada prova de sua culpa o fato de ser o único dos decanos do Conselho a ter sobrevivido à guerra. Em carta a Hannah Arendt, Gershom Scholem escreveu: “Como todos os prisioneiros do Lager [campo de concentração] com quem conversei confirmam, o rabino vienense Murmelstein merece ser enforcado pelos judeus.”*[1]Um ano e meio depois, Murmelstein se exilou na Itália, onde Lanzmann o encontrou.
O documentário sobre Terezín costuma ser considerado “o cúmulo do cinismo e o exemplo mais pernicioso do cinema nazista”. Lindeperg assinala, porém, que esse viés “tende a negligenciar os vestígios do real que rasgam a máscara da propaganda, esclarecem as condições da filmagem e transmitem, a distância, a mensagem dos perseguidos”. Para ela, o filme constitui “um caso exemplar para descobrir o que está no fundo das imagens e perceber a articulação que existe entre conservação e destruição, filmagem e assassinato”.
Conforme Lindeperg relata, o ator e diretor alemão Kurt Gerron, que contracenou com Marlene Dietrich em O Anjo Azul (1930) e estava internado em Terezín, recebeu a tarefa de apresentar, por meio de um filme, o campo de concentração à Cruz Vermelha, ao Vaticano e aos países neutros, como sendo um resort, uma espécie de gueto-modelo, encobrindo sua verdadeira finalidade – a de ser uma etapa do caminho que levava aos campos de extermínio. Gerron escreveu o roteiro e, quando já começara a dirigir a filmagem, foi substituído. Passou à função de assistente do diretor do cinejornal Aktualita, que contou com dois cinegrafistas profissionais. Esses três, todos tchecos, assumiram por escrito o compromisso de manter a filmagem em segredo e foram supervisionados pelo chefe do Departamento de Assuntos Judeus da Gestapo de Praga. Uma vez concluído, o documentário Theresienstadt teria sido exibido apenas quatro vezes, em três ocasiões no próprio campo de Terezín, uma delas durante a visita da Cruz Vermelha em abril de 1945.
A versão integral de Theresienstadt, com duração de 90 minutos e dividida em 38 cenas, nunca foi encontrada. O filme foi parcialmente reconstituído com a reprodução de alguns fotogramas originais, desenhos do interno Jo Spier e informações encontradas nos arquivos de Gerron, morto na câmara de gás, em Auschwitz.
O Último dos Injustos inclui um trecho de cinco minutos de Theresienstadt, fato notável por si só, dadas as restrições de Lanzmann ao uso de imagens de arquivo, totalmente ausentes em Shoah. Uma discreta legenda superposta às cenas de Theresienstadt informa que elas são “encenações nazistas”. Lanzmann, no entanto, se mantém na superfície dessas imagens. Para ele parece suficiente apresentá-las – falariam por si, não havendo nelas nada a decifrar.
Malgrado recorrerem a meios e perspectivas diversos, O Último dos Injustos e a análise de Sylvie Lindeperg do filme de propaganda nazista são claramente complementares. Lanzmann rejeitou, porém, os comentários dela feitos ao jornal Le Monde. O fato de a professora considerar O Último dos Injustos “apaixonante e fascinante, inclusive porque levanta dúvidas e permite penetrar na complexidade da História” não evitou a irritação de Lanzmann, atiçada provavelmente pelo comentário de que “Murmelstein diz a sua verdade. Quanto a saber se ele diz a verdade…” Além das reticências, a gota d’água pode ter sido a perspicaz observação final dela: “O Último dos Injustos é um documento precioso sobre esse personagem extraordinário, mas também sobre seu realizador. Lanzmann, como Murmelstein disse dele em 1975, parece ‘um dinossauro na autoestrada’, ao mesmo tempo peremptório e comovente em sua solidão.”
Ao relativizar a verdade de Murmelstein, dizer que O Último dos Injustos é também um filme sobre o próprio Lanzmann, reiterar que ele é um cineasta categórico, com quem não se consegue debater, além de ser um homem solitário, Lindeperg parece ter tocado em nervos sensíveis. Conseguiu traçar, porém, dessa maneira, um roteiro sintético de questões essenciais para refletir sobre O Último dos Injustos.
Depois de ler a entrevista de Lindeperg, Lanzmann escreveu ao jornal Le Monde dizendo que se sentiu “forçado a desrespeitar” sua regra de não responder a críticas. Mesmo sem repetir o termo “peremptório”, ao contra-atacar apelou para um conhecido recurso retórico – atribuir a quem critica a atitude pela qual foi criticado: “A senhora Lindeperg considera que, por ser historiadora, ela tem o direito à última palavra”, escreveu. Ou seja, seria ela – e não ele – a pessoa taxativa que não admitiria contestação. Em defesa da honestidade de Murmelstein, Lanzmann citou a expressão Verum index sui, esclarecendo que significa “o verdadeiro é indicativo de si mesmo”. Para ele, as 3h40min de O Último dos Injustos seriam, por si só, um aval aos seus argumentos. Mencionou também, em sua defesa, “a exposição com honestidade, em todas as suas infernais contradições selvagens, das pressões às quais eram submetidos os chefes judeus do gueto”. E evocou as longas horas passadas com o poeta e romancista H. G. Adler, falecido em Londres em 1988, que “Lindeperg evidentemente não conheceu”, Lanzmann faz questão de assinalar.
Adler, internado desde 1942 no campo de concentração de Terezín, foi deportado para os campos de extermínio de Auschwitz e, depois, Buchenwald, aos quais sobreviveu. Em 1955, publicou um estudo sobre Terezín e teria sido levado por Lanzmann, segundo este afirma na carta ao jornal Le Monde, a admitir que “era tomado pelo ciúme mais febril quando o nome de Murmelstein era pronunciado diante dele”.
Entender a razão desse ciúme não é fácil. Uma explicação pode estar no elogio e na defesa de Murmelstein que Lanzmann veio a fazer na abertura de O Último dos Injustos: “De aparência impactante e inteligência brilhante, ele era o mais astuto dos três decanos [do campo de Terezín] e talvez o mais corajoso.” Não suportava o sofrimento dos idosos e, “apesar de ter conseguido manter o gueto operando até os últimos dias da guerra e ter salvado a população das marchas da morte ordenadas por Hitler, o ódio de alguns sobreviventes se voltou contra ele. Poderia ter fugido com facilidade, mas rejeitou escapar, preferindo ser detido e preso pelas autoridades tchecas após vários judeus o acusarem de ter colaborado com o inimigo. Passou dezoito meses na prisão antes de ser absolvido das acusações”. Murmelstein não mente, diz o texto de Lanzmann: “Ele é irônico, sardônico, duro com os outros e consigo mesmo.” Por oposição ao título de um romance de André Schwarz-Bart, O Último dos Justos, ele se chamava “o último dos injustos”, sendo essa a origem do título do filme.
Tamanha empatia com um personagem é raríssima em Lanzmann. E não há como discordar de Lindeperg – ao menos em parte, há algo de autorretrato na descrição que ele faz de Murmelstein. Mais importante que isso, porém, talvez seja a súbita revelação da faceta compreensiva e afetuosa de Lanzmann, sentimentos despertados pelo mais improvável dos personagens.
Na sequência final de O Último dos Injustos, Murmelstein e Lanzmann caminham pelo Fórum Romano enquanto se vê ao fundo o Arco de Tito. No ano 70 d.C. Tito liderou as tropas romanas que saquearam Jerusalém e destruíram o Segundo Templo, construído pelos judeus quando voltaram do exílio na Babilônia, em 538 a.C. Durante séculos, nenhum judeu podia passar debaixo do Arco. Ao escolher esse lugar para encerrar a filmagem, Murmel-stein, falecido em 1989, registrou para a posteridade a marca deixada por aquela proibição secular.
Em 5 de julho último, aos 92 anos, o dinossauro chegou ao fim da autoestrada. Deixou para trás filmes cruciais, em mais de um sentido – indispensáveis, árduos e decisivos para entender o que foi o shoah, uma tragédia humana descomunal do século XX.
[1]* Essa frase foi cortada por Scholem em publicações e traduções posteriores da carta, mas está em Briefe II: 1948-1970 (Munique: Beck, 1995). Ver Mark Lilla, “The Defense of a Jewish Collaborator”, The New York Review of Books, 5/12/2013.