ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo
No dia da eleição, Roberto Jefferson oferece lições de retórica e política
João Moreira Salles | Edição 1, Outubro 2006
Poucos falam como Roberto Jefferson Monteiro Francisco, 53 anos. “Construí minha vida com fidúcia”, proclama, luxuosamente, no carro que o leva para Petrópolis no dia em que o país decidiria mandar ao segundo turno o presidente que ele ferira. Havia passado a manhã acompanhando a filha, Cristiane Brasil, candidata a deputada federal pelo PTB, que não se elegeu. Para os jornalistas que o seguiram na caminhada pelo Flamengo, serviu-se de sentenças e expressões ornamentais: “política farisaica do PT”, “manifestações populares eloqüentes que me aquecem o coração”, “o poder hoje já não emana do povo, mas dos concursos públicos que escolhem procuradores e policiais federais”, “a campanha não terminou com um aglomerado de eleitores, mas com uma pilha de dólares”. Cada construção foi avidamente registrada. Roberto Jefferson não fala – perora. Há um ano, durante as CPIs instaladas por sua causa, o país se rendeu à sua oratória. Do presidente da República ao motorista de ônibus, todos ficaram pendurados nas suas palavras.
Seu vocabulário é manuseado com cuidados de relojoeiro. Pinça sempre as palavras mais raras que tem à disposição. Sobre a maneira como o então deputado federal Geraldo Alckmin se desincumbiu de uma missão que ele lhe confiara, afirma: “Ele se houve maravilhosamente bem”. Tem grande admiração pelo explorador britânico Sir Ernest Shackleton: “Que têmpera! Que irredentismo!”. Shackleton enfrentou a impiedade do mar antártico. Jefferson não fala em ondas; prefere um sinônimo precioso, vaga. Não é acho, é creio.
Os arabescos do fraseado são arma poderosa para cativar o eleitor. Já para o público interno – seus pares -, Jefferson emprega a sabedoria de uma vasta experiência como deputado. No Santana 2002, guiado por Eduardo Nunes Serdoura, seu motorista há 25 anos, ensina leis básicas de sobrevivência no mundo da política. Meia hora antes, ao passar pelo subúrbio carioca de Cavalcanti, reduto eleitoral da filha, um homem na porta de um bar, tendo avistado o carro do ex-deputado, gritara a plenos pulmões: “Eu ainda não votei! Meu voto está à venda!”. Jefferson nem registrou. Ele não presta atenção a botequins, sabe os perigos. “Nunca se deve fazer campanha em bar. É lugar de homens exaltados. Eles bebem, perdem a compostura.” Isso na coluna das proibições. Na dos deveres, está a obrigação de tratar bem quem se empenha na campanha. Um delegado do PTB, major aposentado, enfia os braços pela janela do carro, aperta-lhe a mão: “Estou fazendo um trabalho forte por você”. Jefferson devolve o cumprimento, pondo a mão sobre a do correligionário: “Não vou te esquecer. Você se integrará ao grupo”. O ex-major sorri, se afasta.
Lealdade e demonstração de apreço são virtudes que Jefferson julga essenciais ao bom funcionamento da vida política. Por isso admira Fernando Henrique Cardoso. “FHC te faz importante, te chama, te seduz, busca tua opinião. Ele, o presidente da República; você, apenas líder de partido. É a relação do romance, em oposição à relação do PT, que é a da prostituta.” Explica melhor: “FHC voltara de Washington, onde havia sido homenageado por Clinton. Na mesma tarde liguei para ele a respeito de uma questiúncula do Congresso. Ele disse: ‘Roberto, venha cá’. E eu fui, um dia depois de ele haver estado com o presidente americano. Falou-me do encontro, fez confidências. Saí de lá maior do que eu mesmo. Na volta da posse do Bush, a mesma coisa. Ele me disse: ‘Roberto, essa Condoleezza Rice é da direita furiosa. Corrige o presidente, não o deixa falar…’. Já Lula só me recebeu em 2005. E Dirceu só me chamava para o toma-lá-dá-cá”.
Assim como Deus, o apreço também está nos detalhes. Na política, cada gesto deve ser medido, julgado. Certa vez, Jefferson foi convidado para ir à casa do então deputado José Roberto Arruda, o mesmo que acaba de se eleger governador do Distrito Federal. Arruda estava insatisfeito no PFL e queria assuntar a possibilidade de se transferir para o PTB. “Ele recebeu a mim e a dois companheiros. Serviu-nos um vinho arrolhado – foi na geladeira e trouxe a garrafa já aberta, com a rolha parcialmente para fora. Não nos deu importância. Demonstrou desapreço.” Foi o primeiro sinal. Daí em diante, a conversa desencaminhou. Arruda não foi aceito no PTB. História parecida aconteceu com Cesar Maia. Maia havia sido eleito prefeito do Rio pelo PTB. Jefferson e dois companheiros foram à casa dele. “Ele nos recebeu de chinelo. Eu e meus companheiros levamos nossas esposas. Maia conversou conosco por uma hora e não teve a elegância de chamar sua mulher para que nós a conhecêssemos. Sequer nos ofereceu uma água. É errado. Fiquei quieto, mas julguei. Maia nos perguntou: ‘O que vocês querem?’. Um companheiro pediu a direção da Comlurb, outro reivindicou não sei mais que cargo. Maia concordou, virou para mim e perguntou: ‘E você?’. Respondi: ‘Nada, eu já tenho o prefeito’. Era um teste. Ele gostou tanto da resposta que, no dia seguinte, espalhou-a aos quatro ventos. Se sou eu, não ouço isso em silêncio. Nesse dia, rompi com ele em meu coração. Pensei: ‘Esse homem é pólvora molhada’. Três meses depois, ele estava fora do PTB.” Maia diz que a história é “verdadeiríssima”.
Segundo Jefferson, para sobreviver em Brasília três coisas são necessárias: relações, palavra empenhada e não ser pequeno. O que significa “não ser pequeno”? “Significa não sucumbir à pequena negociata, ao dinheiro miúdo para aprovar essa ou aquela emenda. Ninguém resiste ao pequeno delito. É o caminho sem volta rumo ao baixo clero.” Mas decerto a lealdade não deve ser condição necessária, visto que inúmeros homens sobreviveram a várias traições políticas. Renan Calheiros, por exemplo, traiu Collor, traiu Fernando Henrique. “A lealdade política pode sofrer oscilações, não é esse o problema. Não busque em Renan solidariedade; busque negócios: tratou, ele cumpre.” Cumpre sem olhar para trás, em silêncio. ‘É a omertà.”
A conversa desperta uma velha angústia do motorista Eduardo Serdoura. Escudeiro fidelíssimo de Roberto Jefferson, Edu, como é conhecido, está intranqüilo. Era vendedor de jornal em sinal de trânsito quando conheceu Jefferson. É tratado pelo patrão como um igual, senta-se à mesma mesa, recebe beijos da família. Já em Petrópolis, pergunta a uma das dezenas de pessoas que comem feijoada na casa do ex-deputado: “Você não acha que esses escândalos desmoralizaram a nossa classe?”. O interlocutor pergunta se ele se refere à classe dos políticos. “Não, à minha classe, a dos homens pequenos. Todos esses casos começaram com um motorista, uma secretária, um caseiro. Estamos nos saindo muito mal. Parece que somos todos traidores. Se um dia eu deixar de trabalhar para o Roberto, acho que não consigo outro emprego. Vão me tomar por X-9.” Alguém lhe dá um abraço, assegura que não. Edu se anima (mas não muito).
Já são quase 16 horas. As urnas irão se fechar em breve. Jefferson solta um alea jacta est, chama Edu, entra no carro e vai visitar o pai. Roberto Francisco é um homem de 72 anos, professor aposentado de matemática. É elegante, forte, vivaz. Tem um rosto redondo, um bigode à antiga e cabelos imaculadamente penteados para trás. A barriga é pronunciada, a voz é tonitruante como a de um barítono. Roberto Francisco a emprega para declamar poesias. Há 30 anos preside a União Brasileira de Trovadores. “Meus amores de menino/ dos belos tempos de antanho/ me foram forja do destino/ com têmpera, sem tamanho”.
Trata dona Neuza, mãe de Jefferson, de mãe; ela o trata de papai. São casados há 55 anos. O estilo Roberto Jefferson não existiria sem o professor Roberto Francisco. “Meu pai, Ibrahim, me obrigava a aprender um novo vocábulo por dia, com pelo menos cinco sinônimos. Nos dias de aniversário, tínhamos de escrever sonetos para o aniversariante. E éramos forçados a discursar por cinco minutos sobre temas irrelevantes: um copo, a maçaneta, um grão de feijão. Aprendíamos a manter o interesse do ouvinte, a erguer a voz na hora certa, a pontuar a fala com pausas dramáticas. Tomei gosto pela língua. Era o melhor dos alunos. Só uma vez falhei. O professor pediu que eu lhe desse o imperativo positivo de resfolegar. Respondi: “Resfólega tu, resfolegai vós”. Errei. Na época, o verbo ainda era irregular. O correto era resfolga tu. Tudo isso passei a meus filhos.” Desde cedo, Jefferson aprendeu a salpicar drama nas suas falas. Era cobrado nas disciplinas de oratória e retórica. Nas CPIs, não improvisava. “Na véspera, à noite, eu fazia prelibações…” Sopesava imagens, sentia o gosto das metáforas. Recordava os parnasianos.
Roberto Jefferson cresceu entre as trovas do pai e as lições do avô Ibrahim. Certa vez, em dia que chuviscava, avô e neto caminhavam quando viram um homem que regava uma planta. O avô perguntou: “O que você vê, meu filho?”. “Um homem regando plantas, vovô”. “E o que cai do céu?” “Chuva” “Então dirija seus olhos para a catedral de Petrópolis e dê graças a Deus. A vida é uma competição, e um homem que rega plantas em dia de chuva jamais será seu adversário. Um a menos.”
O professor Francisco não hesita um só instante antes de responder quem é o seu poeta do coração: “Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac – um alexandrino perfeito até no nome”. É também o poeta predileto de Roberto Jefferson. O pai pergunta ao visitante se ele conhece A alvorada do amor. Não. O professor suspira, toma fôlego, apura a voz, ergue a mão e começa: “Um horror, grande e mudo, um silêncio profundo…”. Roberto Jefferson sobrepõe sua voz: “…no dia do Pecado amortalhava o mundo”. Pai e filho vão até o fim dos 43 versos. O pai tem os olhos marejados. O filho olha com admiração para o pai. Seu mestre.