CREDITO: REINALDO FIGUEIREDO_2019
Um militante e um humorista entram num bar
As voltas políticas que o humor politicamente incorreto dá
André Boucinhas | Edição 160, Janeiro 2020
“Esse é o pior momento para ser uma celebridade. Estamos todos condenados. O Michael Jackson está morto há dez anos e até ele recebeu duas novas acusações! Aliás, eu vou dizer uma coisa que não deveria. Eu preciso ser sincero. Eu não acredito nessas histórias que contam sobre ele. Eu não acredito que ele tenha feito isso que dizem. E mesmo que tenha… Eu sei que mais da metade das pessoas aqui já foi molestada. Mas não foi pelo Michael Jackson, foi? O rei do pop chupou o pau desses garotos. Imagine como eles se sentiram no dia seguinte. ‘Ei, como foi seu final de semana?’ ‘Meu final de semana? Michael Jackson chupou o meu pau! E essa foi minha primeira experiência sexual. Se eu comecei aqui, o céu é o limite!’”
É difícil imaginar que alguém pudesse considerar esse comentário, feito em um show de stand-up, de bom gosto – ou simplesmente aceitável. O comediante procura fazer graça com um assunto tabu – a pedofilia – e ainda tenta aliviar a culpa de um artista que, ao que tudo indica, molestou uma série de crianças. Será que vale a pena contar piadas desse tipo?
Esse é um debate, para quem o segue de perto, que parece já ter se esgotado: ninguém imagina que qualquer um dos lados irá mudar de opinião, até porque os argumentos, aparentemente, são sempre os mesmos. Mas só aparentemente. Em geral fundamentadas em visões distintas sobre o que é o humor, e em tradições políticas e experiências históricas bastante específicas, as reações ao politicamente incorreto são radicalmente diferentes no Brasil, de um lado, e nos Estados Unidos e no Reino Unido, de outro.
Por aqui, os contrastes entre defensores e detratores desse tipo de discurso são impressionantemente bem marcados. Não foram poucos os comediantes brasileiros que já se manifestaram de maneira explicitamente favorável à correção política no humor. Apesar de não ser nada homogênea, essa parcela do humor nacional parece concordar com Gregório Duvivier, do grupo Porta dos Fundos, quando ele diz que a sociedade mudou e que “hoje em dia ela pede um humor mais consciente das suas políticas, mais em contato com as demandas das minorias”. Aqueles que se identificam com essa diretriz certamente evitariam reproduzir a piada sobre os abusos sexuais de Michael Jackson, já que ela ironiza pessoas que só podem ser vistas como vítimas, desprovidas que são de qualquer força política ou social, sem lhes dar a última palavra. Por outro lado, sempre que surge alguma polêmica pública sobre piadas consideradas ofensivas, não é pequeno o número de humoristas que rapidamente se prontificam a defender o direito de contá-las, seja a graça qual for, em nome da liberdade de expressão e do direito de fazer humor com o que quer que seja.
Vira e mexe essa divisão vem à tona. Foi o que aconteceu no caso envolvendo Danilo Gentili e a deputada federal Maria do Rosário, em abril do ano passado. O humorista recebeu uma notificação judicial que o obrigava a retirar das redes sociais comentários ou piadas consideradas ofensivas pela parlamentar gaúcha. Em reação, Gentili gravou um vídeo em que rasgava o documento, esfregava o papel picado na genitália, recolocava os pedaços no envelope e recomendava à deputada que enfiasse aquilo no cu. O desaforo foi devidamente postado nas redes sociais, gesto que afinal lhe rendeu uma condenação a seis meses de prisão em regime semiaberto.
Ainda que nenhum comediante tenha concordado com a sentença, muitos fizeram questão de frisar que acharam a piada errada, fora do tom. Fabio Porchat, que já declarou achar bem-vindo o politicamente correto no humor, disse considerar o vídeo do colega “de péssimo gosto, agressivo, desrespeitoso, infantil, sem graça, desnecessário, equivocado”. Mas ponderou: “Daí a ele ser preso por mandar uma pessoa enfiar um papel no cu, acho bastante autoritário e arbitrário, perigoso inclusive.” Helio de la Peña, do grupo Casseta & Planeta, enviou uma mensagem solidária a Gentili, pelo Twitter. Nela perguntava se ele por acaso tinha o telefone do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, e por qual facção criminosa Gentili gostaria de ser estuprado na prisão. O “casseta” deixava claro, assim, a sua posição sobre o politicamente correto no humor.
A expressão “politicamente correto” nasceu nos Estados Unidos em círculos acadêmicos marxistas. Era a princípio usada para ironizar os membros mais ortodoxos – e chatos – desses grupos, em geral dispostos a fundamentar seus pontos de vista com argumentos de autoridade, citando textos do próprio Marx ou de seus intérpretes canônicos. Seu uso, no entanto, só viria a se popularizar no final da década de 1980, quando intelectuais conservadores se apropriaram do termo para se referir a uma suposta hegemonia da esquerda nos meios universitários – algo que devia ser combatido. Logo em seguida, artigos em jornais e revistas de grande circulação, como o New York Times e a Newsweek, passaram a usar a expressão para caracterizar um movimento ao mesmo tempo intelectual e comportamental que, se por um lado buscava dar voz a grupos historicamente silenciados – como mulheres, homossexuais e negros –, por outro se mostrava intolerante e até mesmo agressivo com quem não aderia às suas regras de conduta e de discurso.
A pesquisadora norte-americana Moira Weigel afirma que a eclosão do discurso que chamava atenção para o politicamente correto – e o combatia – foi resultado da ação de conservadores que, ao longo dos anos 1980, financiaram “a criação de dezenas de think tanks e institutos de formação, além de bolsas especiais para estudantes conservadores, pós-doutorandos e professores, em universidades de prestígio”. “Seu objetivo declarado era combater as tendências de esquerda dentro da academia”, ela diz. Depois de enfraquecer nos anos 2000, o ataque ao politicamente correto voltou à carga nos Estados Unidos durante a campanha presidencial de Donald Trump. A estratégia do então candidato, semelhante à de Jair Bolsonaro, era a de se apresentar ao eleitorado como alguém que não tem medo de dizer a verdade, e que não se curva às imposições ideológicas progressistas. Para Weigel, é quase como se o politicamente correto não existisse. Ele seria na verdade um “espantalho”, uma caricatura do discurso de esquerda inventada pela direita republicana e que acabou por contribuir para alargar o fosso entre as classes trabalhadoras e os democratas. Colocar as coisas nesses termos é um exagero, pelo menos. Talvez seja correto dizer que o movimento de policiamento do discurso alheio foi usado e exagerado pelas lentes conservadoras. Mas seria um erro negar sua realidade e força, quando hoje conta com inúmeros defensores nos mais diversos países e áreas profissionais. Incluindo humoristas, no Brasil.
Para muitos comediantes brasileiros, os argumentos a favor do politicamente correto têm como pressuposto a certeza de que o seu discurso tem força social – e que, portanto, precisa ser elaborado com responsabilidade. Mas não só: também parece implícita, entre os defensores de um discurso cuidadoso, a ideia de que o humor tem como obrigação contribuir para um mundo menos desigual e mais tolerante, revelando assim um viés político de esquerda, ou pelo menos socialdemocrata. A ideia é a de que a comédia precisa estar a serviço do progresso da sociedade, pois, segundo o ator e roteirista Marcius Melhem, diretor da área de humor na Rede Globo, ela tem como função “ajudar a melhorar a vida” dos grupos oprimidos, nem que seja lhes dando visibilidade, fazendo “com que pessoas que são esquecidas todo dia sejam lembradas pela gente”. Seguindo o mesmo caminho, o escritor Antonio Prata afirma que “o legal é bater na autoridade”, pois, complementa o cartunista Arnaldo Branco, “se o humor tem uma vítima, que seja a vítima certa”.
No Brasil, quem se opõe a essa visão de mundo exposta até aqui parte, de maneira geral, de um ponto de vista político mais conservador. Seria difícil imaginar Claudio Manoel, Carioca ou Léo Lins defendendo o governo do PT ou anunciando voto em Fernando Haddad, na última eleição presidencial. Da mesma forma que não há hipótese de se ver os que apoiam um humor progressista expressando qualquer tipo de simpatia pela direita mais conservadora. A correspondência entre a adesão ao politicamente correto e um posicionamento do centro para a esquerda no espectro ideológico é à primeira vista óbvia e coerente – a tal ponto que ao leitor talvez pareça ociosa a reafirmação desse alinhamento. Curiosamente nada disso é tão automático nos Estados Unidos e na Inglaterra.
O comediante Jerry Seinfeld volta com frequência ao tema do politicamente correto. Em seu programa de entrevistas, Comedians in Cars Getting Coffee, trata o movimento e suas exigências como um perigo para o humor, sobretudo quando conversa com humoristas da sua geração, aqueles que apareceram entre o final da década de 1970 e meados dos anos 1980. Não deixa de ser curioso um juízo tão duro vindo de alguém cujo material cômico se baseia em comentários sobre o cotidiano, observações que a rigor funcionam para qualquer plateia, independentemente de inclinações políticas. Mas é também verdade que desde a época de sua série de tevê, nos anos 1990, Seinfeld investia contra essa corrente.
Um exemplo é o episódio em que uma jornalista acredita que Seinfeld e seu amigo George são um casal homossexual. Todas as vezes em que negam essa ilação – e eles fazem questão de negar, incomodados com a suspeita –, complementam de forma mecânica, deixando claro que só estão cumprindo uma obrigação protocolar: “Não que tenha algo errado com isso. A escolha sexual das pessoas é apenas delas e de mais ninguém.” Inúmeros outros episódios de Seinfeld foram criticados, já na época em que foram ao ar, por serem considerados ofensivos a minorias, como homossexuais, latinos e deficientes físicos. (Se fôssemos procurar exemplos do mesmo tipo no trabalho solo do outro criador da série, Larry David, os exemplos de humor politicamente incorreto não acabariam, mas talvez o mais contundente seja o seu discurso na cerimônia em que a atriz Julia Louis-Dreyfuss ganhou um prêmio pelo conjunto da obra. Na época ela havia tornado público o seu tratamento contra um câncer, e Larry David insinuou que ela estava fingindo estar doente só para receber a homenagem.)
De qualquer maneira, a constância com que Jerry Seinfeld trata do tema dá uma medida de sua preocupação e desconforto. Na temporada mais recente de Comedians in Cars, quem se estendeu sobre o assunto foi o britânico Ricky Gervais: “A questão que não quer calar nos últimos anos – ela sempre esteve por aí, mas especialmente nos últimos anos – é a luta por liberdade de expressão. Eu faço piadas sobre coisas verdadeiramente horríveis. Eu sei que são horríveis. […] Aí dizem que eu concordo com Hitler. Bom, não tenho problema com o que ele falava, só com o que ele fazia. Se ele só falasse… É nosso direito fazer comédia sobre tudo.” Seinfeld concorda e pergunta de forma retórica, numa espécie de lamento: “Você acha que estamos perdendo isso?”
Seinfeld faz questão de incluir na edição final das entrevistas as observações sarcásticas, suas ou dos convidados, sobre assuntos que podem ser considerados politicamente incorretos. Campo de concentração nazista é um dos temas recorrentes, mas há também comentários sobre problemas atuais, como moradores de rua. Na conversa com Eddie Murphy, os dois fizeram piadas sobre os sem-teto (“Sabe o que eles devem odiar? Pessoas que acampam. Eles devem pensar: ‘Isso é uma piada para vocês, né? Vocês ficam aí de brincadeira nessa barraca, seus merdinhas, mas eu estou aqui de verdade’”) e depois debateram se valia a pena deixar aquele diálogo no programa. As mesmas ponderações surgiram na entrevista com Ricky Gervais, quando Seinfeld brincou dizendo que todos os chineses são iguais, e com Bill Burr, quando este falou que ambos tinham tido sorte de não nascer no Peru. Apesar das considerações, evidentemente todos esses diálogos foram ao ar.
Jerry Seinfeld está longe de ser o único comediante de língua inglesa a levantar essa bandeira. Quem acompanhou os recentes especiais de comédia do Netflix deve ter notado que boa parte deles, sobretudo os da mesma geração, e mesmo alguns mais novos, atacam o politicamente correto, às vezes de forma explícita, mas sempre abordando temas polêmicos e incômodos, como Dave Chappelle (transgêneros e assédios), Bill Burr (movimento #MeToo, deficiência física), Ricky Gervais (Hitler, genocídio), entre muitos outros. Eles apresentam pontos de vista que ironizam essas questões, suas contradições, idiossincrasias, problemas – transformando enfim tudo em comédia, sem se preocupar se o alvo da piada é um grupo minoritário ou excluído. Curiosamente, muitos desses humoristas se identificam e participam de movimentos que podem ser considerados de esquerda, e nenhum deles declara simpatia pelo Partido Republicano. (É claro que as definições de esquerda e direita são simplificações, sobretudo nos Estados Unidos. Na peça que inovou a sátira inglesa dos anos 1960, Beyond the Fringe, um personagem perguntava sobre o sistema político norte-americano, e o amigo respondia que “o Partido Republicano deles parece com o nosso Partido Conservador, e o Partido Democrata deles parece o nosso Partido Conservador”.)
Chris Rock, que ao lado de Dave Chappelle se destaca até hoje pelo humor antirracista, recentemente afirmou que está impossível se apresentar para plateias universitárias, pois “você não pode mais dizer ‘o garoto preto (black kid) ali no fundo’, mas ‘o cara com o sapato vermelho’”. Outro exemplo, ainda mais contundente, é Stephen Fry, britânico engajado na luta pelos direitos dos homossexuais. Em um programa de tevê, ele afirmou que concorda com os objetivos dos que defendem o politicamente correto e que, inclusive, dedicou sua vida a combater os mesmos inimigos: racismo, intolerância, preconceito, homofobia. A sua objeção é que o policiamento do discurso simplesmente não funciona. “Um dos maiores problemas do ser humano é que ele prefere estar certo a ser eficaz. O politicamente correto está sempre obcecado por estar com a razão, sem se preocupar com o quão eficaz ele de fato é. […] O progresso não é alcançado por pregadores e guardiões da moral, mas por loucos, hereges, sonhadores, rebeldes e céticos.”
Mesmo George Carlin, um dos grandes nomes do humor de crítica social nos Estados Unidos, alguém que construiu a carreira atacando o establishment com piadas sobre o governo e religião, nos anos 2000 fez uma crítica semelhante à de Fry: “Quero fazer uma nova visita ao playground dos brancos liberais culpados: o politicamente correto. Politicamente correto é a nova forma americana de intolerância. Mas é uma forma engenhosa, porque vem disfarçada de tolerância. Ela se apresenta como justa, mas busca restringir e controlar a fala dos outros com códigos estritos e regras rígidas. Não sei se essa é a melhor maneira de combater a discriminação. Não sei se silenciar pessoas ou alterar a maneira delas de falar é o melhor método para resolver problemas muito mais profundos que a fala.” John Cleese, integrante do Monty Python, da mesma geração que Carlin, é mais cuidadoso e afirma que o politicamente correto começou com uma ideia louvável de proteger grupos que não tinham condições de se defender, mas ganhou uma proporção desmedida, estendendo essa proteção a qualquer grupo que se sinta ofendido por qualquer coisa, tornando o humor inviável.
Comediantes de língua inglesa oriundos de ex-colônias, fato que poderia aproximá-los do politicamente correto, também o criticam. É o caso do americano, filho de imigrantes indianos, Aziz Ansari. Acusado há alguns anos de tentar forçar uma relação sexual, ele iniciou o seu último programa de stand-up pedindo desculpas e dizendo que o imbróglio o fez crescer. Se fosse uma partida de xadrez, esse seria o movimento de abertura. As jogadas seguintes é que foram realmente surpreendentes. Ansari desandou a criticar a onda politicamente correta. Primeiro, zombou de um asiático que havia protestado contra uma norte-americana só porque ela usara um vestido de estilo chinês, acusando-a de apropriação cultural. Depois emendou: “Hoje em dia, mesmo quando alguma coisa é racista, eu falo ‘Podemos mudar de assunto? Não acho que vocês vão resolver essa questão num brunch. Não acho que vocês são as pessoas que vão resolver esse problema’. Digam o que quiserem sobre os racistas, eles geralmente são breves, mas os brancos que acordaram agora [para o problema] são insuportáaaaaveis! ‘Onde estão os dados?’ ‘Onde leu o artigo?’ blá-blá-blá…” Já o sul-africano Trevor Noah, apresentador do Daily Show, um talk show politizado e antirrepublicano, se viu envolvido em uma polêmica por ter feito piada com o conflito entre Índia e Bangladesh. O barulho foi tanto que Noah reagiu: “As pessoas ficam mais ofendidas pela piada do que pela guerra em si.”
Outra comediante que se opõe abertamente a Trump e que também sofreu críticas pesadas e não voltou atrás foi Tina Fey: “A gente fez um episódio de Unbreakable Kimmy Schmidt e veio um furacão na internet chamando-o de racista, mas meu novo objetivo é não explicar piadas. Há hoje uma cultura do pedido de desculpas, mas eu estou fora disso.”
Não é simples descobrir as inclinações políticas de Jerry Seinfeld, que sempre evitou o tema, mas há algumas pistas. Ele convidou Barack Obama, quando ainda estava na Casa Branca, a participar do Comedians in Cars Getting Coffee. Justificou a escolha dizendo que aquele era “o cara mais legal” (coolest guy) a já ter ocupado a Presidência. Anos antes, havia desistido de participar de um evento beneficente a que fora convidado pela Organização Trump quando o hoje presidente, na época ainda ensaiando sua entrada na política, questionou a nacionalidade norte-americana de Obama.
Tudo isso para dizer que as críticas ao politicamente correto entre os humoristas de língua inglesa não partem de um ponto de vista político conservador, como parece acontecer no Brasil. Ao contrário: quase sempre elas vêm de uma visão de mundo mais à esquerda. Há muitos artigos apontando as vantagens trazidas pelo politicamente correto ao humor, é verdade, alguns escritos por atores até, mas nenhum de comediante. O mais próximo disso foi a declaração de Sarah Silverman, que falou da necessidade de a comédia mudar com o tempo e, como exemplo, disse que deixou de usar a palavra “gay” como adjetivo para tudo, ao perceber o incômodo que aquilo causava a algumas pessoas. Na mesma entrevista, contudo, ela afirmou que um humorista não pode ficar o tempo todo se preocupando se vai ofender alguém, pois sempre haverá alguém ofendido. Na mesma linha, Amy Schumer, que já foi duramente criticada por seus comentários politicamente incorretos, disse que esperava não ter ferido os sentimentos de ninguém com suas piadas. A própria Schumer, contudo, noutro momento afirmou: “Eu vou fazer piada com coisas que você gosta e com coisas que vão te deixar desconfortável. Mas tudo bem. Vem comigo, porque eu só estou brincando.”
O fato de que eu não tenha encontrado nenhum humorista de língua inglesa usando os argumentos progressistas que circulam no Brasil não deixa de ser estranho. Esses argumentos são os mesmos usados por todo tipo de gente em vários países. Não são os brasileiros a exceção, mas sim os comediantes anglo-americanos. A resposta para isso está, pelo menos em parte, na própria tradição da comédia moderna dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Após a Segunda Guerra Mundial, com a eclosão da Guerra Fria, os Estados Unidos passaram por uma fase de intenso conservadorismo. O efeito disso na cultura ficou aparente já em 1947, quando diversos artistas foram convocados pelo Senado para delatar colegas comunistas. Dez deles se recusaram a participar da caça às bruxas e foram condenados à prisão. A partir desse momento, aqueles que eram suspeitos de praticar ou apoiar atividades comunistas caíam numa “lista negra” e não conseguiam trabalho ou precisavam usar pseudônimos. O caso mais famoso foi o de Charles Chaplin, que teve seu visto de entrada nos Estados Unidos negado por causa da desconfiança (infundada) do diretor do fbi, John Edgar Hoover, de que ele tivesse ligações com o Partido Comunista.
Produtoras, estúdios e editoras chegaram a empregar profissionais para investigar o passado de seus funcionários, tentando impedir que a empresa acabasse malvista devido a alguma contratação. Nesse clima, o humor – e não só ele – passou a evitar temas políticos ou polêmicos. No cinema, predominavam as comédias românticas e os musicais que, independentemente de suas qualidades, não corriam muitos riscos. Quanto Mais Quente Melhor, por exemplo, considerado por muitos o melhor filme cômico da década de 1950, brincava com a situação de homens tendo que se disfarçar de mulher. Havia também os nomes consagrados, com muito humor físico, como Jerry Lewis e a dupla Abbott e Costello.
Fora de Hollywood, os grandes humoristas se apresentavam em casas de shows, abrindo para músicos famosos, e repetiam piadas sobre sogras, patrões, esposas e filhos. O importante, tanto para a plateia quanto para o artista, era o ritmo da apresentação, os trejeitos, o tom de voz, o timing, e não tanto o conteúdo. Nesse contexto, não chega a ser surpreendente que a televisão tenha importado do rádio o formato de sitcom, e que ele tenha virado uma febre. Neste tipo de programa – como Friends, Modern Family, The Big Bang Theory –, o fim da história já havia chegado, muito antes de Francis Fukuyama anunciá-lo: as personagens nunca evoluem, mantendo sempre as mesmas qualidades e defeitos, estrutura adequada para um país que vendia a imagem de sociedade ideal para todo o mundo.
A contestação a esse padrão cultural começou lentamente, mas por vários lados. Apenas para citar alguns exemplos: J. D. Salinger criticou esse mundo reacionário pelos olhos de um jovem inconformado, em O Apanhador no Campo de Centeio; Jack Kerouac e Allen Ginsberg valorizavam grupos excluídos – homossexuais e negros – em obras como Na Estrada e Uivo; Harold Pinter sublinhava em suas peças a irracionalidade por trás de toda a aparente normalidade daquela sociedade. No humor, o primeiro ataque veio da revista Mad, que esculhambava tudo sob o disfarce de brincadeira juvenil. Mas o golpe fatal veio de outro lado, totalmente inesperado, e mudou a comédia para sempre.
Mort Sahl já tinha tentado de tudo para entrar no mundo do humor. Fez testes para programas de auditório, pediu emprego em clubes e até comprou um teatro, que acabou falindo. Já tinha quase 30 anos quando decidiu se aventurar na comédia stand-up em São Francisco. Era o início da década de 1950, e Sahl encontrou na Costa Oeste um novo estilo de bar, frequentado por jovens cultos e dispostos a comprar briga contra a política e a moral vigentes. Os beatniks eram a plateia certa para o tipo de humor proposto por ele, que passou a entrar no palco vestido de maneira informal, sem a gravata obrigatória para os comediantes da época, e com um jornal dobrado embaixo do braço. O que fazia em seguida era ao mesmo tempo prosaico e inédito: comentava as notícias, sempre a partir de um ponto de vista próprio, crítico, mordaz e, de acordo com todos os que o viram, muito engraçado.
Foram tantas as inovações de Mort Sahl que quase ninguém contesta o seu título de pai da moderna comédia norte-americana. Depois dele, o público passou a esperar do comediante uma visão de mundo específica, uma nova forma de olhar para fatos recentes ou mesmo para hábitos estabelecidos. A repetição de piadas prontas se tornou ultrapassada, pois o humorista não era mais julgado apenas pela sua performance, mas sobretudo pelo que tinha a dizer. No fim das contas, a própria performance também mudou. Surgia um tipo de apresentação sem trejeitos ou caracterizações, feita aparentemente sem muito esforço. Apenas aparentemente, claro, pois apesar de o improviso ganhar espaço nesse formato, o clima de conversa informal desses shows era cuidadosamente estudado. Ele levava a plateia a pensar que estava assistindo a uma pessoa que simplesmente apresentava suas opiniões sobre fatos variados, muitas vezes sem se dar conta de que se tratava de uma persona criada pelo artista, semelhante a ele, mas não a mesma coisa. Essa impressão também era uma novidade, pois aproximava o comediante dos espectadores, que agora achavam que o conheciam bem. Ninguém julgava saber nada sobre Jerry Lewis depois de assistir aos seus filmes e shows, mas todos sabiam o que Mort Sahl pensava sobre os assuntos do dia. Achavam que sabiam, claro, pois as opiniões, no fundo, eram apenas piadas. Críticas, é verdade, porém piadas.
Mort Sahl inaugurou uma nova era de humor crítico, adormecido por mais de uma década. Foi o primeiro a falar de política em pleno macarthismo, e o riso das plateias, como ele mesmo diagnosticou, era de alívio. Aos poucos ganhou notoriedade, tornou-se o primeiro comediante a ser capa da revista Time, chegou a ser chamado de “a consciência da nação” e, nas palavras do apresentador que revolucionou o Tonight Show nos anos 1960, Steve Allen, era o único filósofo político da comédia moderna. No entanto, apesar de reagir contra o moralismo e a política conservadora, seu humor dificilmente poderia ser etiquetado como “de esquerda”, e sua estratégia era oposta ao que propõe o politicamente correto. Mort Sahl buscava igualar todas as classes sociais “por baixo”, tornando tudo e todos alvo de seus comentários irônicos, sem distinção. Atacava o governo republicano, a Guerra do Vietnã, a segregação racial, mas também as feministas, o movimento negro, os democratas e quem mais caísse na sua teia. Gostava de terminar suas apresentações com a mesma pergunta: “Tem algum grupo aqui que eu ainda não ofendi?”
Imediatamente após Mort Sahl, apareceu Lenny Bruce. Filho de uma comediante pouco conhecida, trabalhou em uma fazenda e serviu na Marinha durante a Segunda Guerra, antes de seguir os passos da mãe. Começou escrevendo roteiros para o cinema, e então migrou para o stand-up, mas seu sucesso só veio quando também se mudou para São Francisco, no fim da década de 1950. Sua trajetória de vida talvez ajude a explicar as diferenças em relação a Mort Sahl, um filho da classe média tradicional: as críticas de Bruce eram mais diretas, seu posicionamento mais radical, sua linguagem mais vulgar e seus temas mais polêmicos.
Tudo isso contribuiu para um sucesso maior com os jovens, mas também lhe custou problemas com a Justiça. Várias vezes processado por obscenidade, ele passou a fazer shows ridicularizando as falas dos juízes e advogados de acusação dos seus casos. Afinal acabou condenado por um tribunal em Nova York (e perdoado, postumamente, 39 anos depois). Se Sahl havia aberto uma porta, Bruce escancarou-a de vez, tornando todos os temas pertinentes ao comediante, mostrando que a melhor maneira de abordá-los, do ponto de vista do humor, era forçando os limites.
Em um contexto de censura, ainda sob a vigência do macarthismo, falar tudo era o tiro mais radical que alguém podia disparar. Eventualmente, o tiro ia para o lado errado, mas só dava para descobrir atirando. Praticamente tudo de moderno e inovador na comédia norte-americana desde então veio desses dois. E não apenas nos Estados Unidos, porque no Reino Unido logo seguiram por um caminho semelhante, seja com a peça Beyond the Fringe ou, finalmente, com o grupo Monty Python, tendo o próprio John Cleese reconhecido a influência de Mort Sahl sobre o seu trabalho.
Como quase sempre acontece, essa onda conheceu um refluxo. Nos anos 1970, a maioria dos comediantes de vanguarda abandonaram os temas políticos, embora não tenham voltado para as piadas de sogra do período anterior. Impulsionados pelas desilusões políticas de 1968 e escaldados pela nova vaga conservadora que se inaugurou com a eleição do republicano Richard Nixon, o humor se tornou autorreferente, anárquico, absurdo. Apesar da mudança temática, a ideia de que precisavam apresentar uma visão própria e única do mundo continuou a valer. Da mesma forma, consolidou-se a liberdade de falar mal de todos, da maneira que o comediante achar mais conveniente, especialmente com Richard Pryor, um comediante negro que usava livremente a palavra nigger, ainda hoje ofensiva, mas praticamente um tabu naquela época. Essa liberdade, conquistada a duras penas em um contexto difícil, passou a ser vista por muita gente como um direito inalienável do humor, mesmo que muitos humoristas não tenham consciência dessa história. Vem daí, salvo engano, essa tendência majoritária entre comediantes norte-americanos e britânicos, bem como aqueles diretamente influenciados por eles, como canadenses, australianos, sul-africanos e indianos, de se recusar a aceitar qualquer tipo de cerceamento, temático ou formal, como o proposto pelo politicamente correto.
De certo modo, esses comediantes da tradição inglesa e norte-americana acabam se encontrando com uma parte dos seus pares brasileiros, na defesa pela liberdade de expressão absoluta para o humor. As ofensas de Danilo Gentili a Maria do Rosário e as piadas sobre feios, gordos e mulheres ainda recorrentes em stand-ups e programas de rádio e tevê podem parecer tão insensíveis quanto os comentários de Dave Chappelle sobre transgêneros, de Eddie Murphy sobre os sem-teto ou de Ricky Gervais sobre o Holocausto, mas há diferenças importantes.
Para a tradição anglo-americana de comédia, a ofensa precisa ser um meio para outro fim qualquer, que não o simples riso do público. Chris Rock, em um de seus ataques ao politicamente correto, deixa isso claro: “A gente nem pode mais ser ofensivo com o objetivo de ser inofensivo.” Os ataques pessoais, a grupos ou ideias, devem ser estratégias retóricas para demonstrar algum ponto de vista único e – é claro – engraçado. O xingamento em si não faz parte do cardápio desses comediantes.
Dave Chappelle, por exemplo. Ao fazer comentários sobre os assassinatos em massa em escolas americanas, observa que a maioria dos jovens atiradores é branca, e daí deriva para uma crítica à imprensa, ao dizer que os poucos transgêneros que despertam sua atenção também são brancos. A persona de Dave Chappelle vê o mundo por meio de um ponto de vista radical afro-americano, a ponto de se pronunciar a favor de Michael Jackson – na fala que abriu este texto –, Bill Cosby e O. J. Simpson. Podemos não concordar com ele e continuar achando as piadas de mau gosto, mas elas estão lá por um motivo. Bill Burr ataca com virulência o feminismo branco, mas termina seu show falando do próprio problema de agressividade, além de dar ao programa o título de Paper Tiger, numa alusão à falsa ameaça que representam suas piadas. Para esses comediantes, defensores do politicamente incorreto ou não, o importante é fazer a plateia rir apresentando uma nova forma de se ver um tema qualquer, mesmo que ela não concorde. Às vezes, chocar o público num momento ou noutro faz parte do plano ou ajuda na caracterização da persona que está sendo construída, mas não significa que o artista de fato acredite de forma literal naquilo que está dizendo.
Esses objetivos não declarados estão ausentes em boa parte das piadas ofensivas que ouvimos no Brasil, cujos autores invocam a liberdade de expressão como argumento de defesa. Há até uma certa obsessão em muitos desses comediantes brasileiros pela ofensa em si, como se depreende do nome de um dos shows de Rafinha Bastos, A Arte do Insulto, ou da autodescrição de Léo Lins, integrante do programa The Noite, no Facebook: “Mestre do Bullying Arte, Rei do Humor Negro, Metralhadora de Insultos.” Ou, de resto, na declaração de Danilo Gentili, no início de uma de suas apresentações, de que vai simplesmente ofender todos os políticos que conseguir – e de fato é isso que ele faz.
No documentário O Riso dos Outros, lançado em 2012, o cineasta Pedro Arantes busca debater as preocupações de correção política no humor brasileiro, ouvindo comediantes dos dois lados da disputa, além de mostrar trechos de suas performances. A totalidade dos que se opõem ao discurso politicamente correto – no filme, pelo menos – se vale de todo tipo de insulto com o objetivo de arrancar gargalhadas. Uma declaração de Danilo Gentili sintetiza o procedimento: “O comediante tem que ser uma prostituta. O que eu quero é o riso. Eu me vendo por isso. Se você riu, eu estou falando.” É fato que as plateias riem desses xingamentos e agressões, da mesma forma que estudantes riem do bullying contra um de seus colegas. Um dos sentimentos que levam ao riso é o que Thomas Hobbes chamou de sudden glory: rimos quando vemos a nossa superioridade afirmada diante de um grupo posto como inferior.
Mas nem todo mundo concorda que fazer rir seja o mesmo que fazer comédia. Segundo o comediante português Ricardo Araújo Pereira, “humor é um modo especial de olhar para as coisas e de pensar sobre elas”. Trata-se de algo raro, ele diz, “não porque se trate de um dom oferecido apenas a alguns escolhidos, mas porque esse modo de olhar e de raciocinar é bastante diferente do convencional (às vezes, é precisamente o oposto)”. Para Steve Kaplan, teórico do humor e consultor de roteiros nos Estados Unidos, comédia é fazer o outro rir revelando alguma verdade que estava guardada. Se não tiver os dois elementos, pode ser engraçado, mas não é comédia. Mort Sahl e sua longa descendência concordariam com essa definição.
Em uma entrevista para promover a mais recente temporada do Comedians in Cars Getting Coffee, a apresentadora pergunta para Seinfeld e Eddie Murphy se eles deixam de contar uma piada por ela ser ofensiva. Eddie Murphy responde que as piadas realmente agressivas não são engraçadas e, portanto, não costumam valer a pena. Seinfeld vai pelo mesmo caminho. Diz que para decidir se vai fazer uma piada em público, ele pesa na balança o quanto é engraçado e o quanto é ofensivo. Se é muito ofensivo, tem que ser muito engraçado. Essa é a posição dele, particular, original. Mas pode ser que esteja só brincando.