O cantor Celso Sim no show "A liberdade é bonita mas não é infinita", com a banda Os Franciscos Eunucos, em São Paulo. A aparência comportada vai se dissipando ao fim do espetáculo. No convite, ele avisa: "Vais ver cada coisa..." FOTO: TUCA VIEIRA_2012
Um nome a zerar
Celso Sim treinou para fazer arte cantando editoriais do Estadão
Raquel Freire Zangrandi | Edição 64, Janeiro 2012
A Casa de Francisca ocupa um sobrado a cinco quarteirões da Avenida Paulista. É um café-teatro intimista, com ambiente à meia-luz e lotação máxima de 42 lugares, “podendo chegar a 44”, como disse um dos donos. Uma cortina de veludo vermelho emoldura o fundo do palco e a decoração de objetos retrô lhe dá um clima de brechó chique. Além das mesas e cadeiras de bar, um pequeno auditório com cadeiras de cinema antigo acomoda a plateia.
Numa tarde de dezembro, três músicos e um vocalista se preparavam para o show daquela noite. Paulo Lepetit, Cacá Machado e Guilherme Kastrup formam com o cantor Celso Sim a banda de amigos Os Franciscos Eunucos & O Castrati de Parati. Durante o ensaio da banda, o pessoal da casa arrumava o salão e repunha as velas das mesas. Enquanto o entregador de gelo se despedia, deixando grossos pingos de água no chão, o baixista Paulo Lepetit comentou com os colegas: “Cara, quando você entra numa padaria e vê aquela pilha de panetone, você pensa: ‘Fudeu: é Natal!’ Aí os trabalhos vão rareando, rareando, as contas chegando, é escola de criança em dobro, é décimo terceiro da empregada, é caixinha de porteiro… Preciso de um emprego assalariado!” Celso Sim, que fazia gargarejo com chá de romã, cuspiu num copo e disse: “Estou abrindo uma vaga na Companhia de Dança, quer? É carteira assinada!”
Celso Sim é um cantor, ator e compositor conhecido no circuito alternativo da música paulistana. Foi apresentado a um público um pouco mais amplo em julho do ano passado, ao dividir o palco com Elza Soares e José Miguel Wisnik no show de abertura da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. Como pulava no palco mais do que pipoca na panela, não havia como passar despercebido. Sua performance lembrava o Cazuza dos bons tempos e o timbre de voz tinha um quê de Caetano Veloso, num show que homenageava Oswald de Andrade com um repertório tropicalista. As pessoas se perguntavam: Quem é esse cara?
Artista paulistano de 42 anos, ele trabalha com música e teatro há mais de duas décadas. É magro, usa óculos, reparte o cabelo castanho de lado e anda de jeans e camiseta, às vezes complementados por meia soquete rosa-choque e um pingente de pimenta dourada no pescoço. Não cultiva a aura de marginal, mas também não serve para o papel de pai de família em comercial de margarina. É comum terminar uma frase com um sorriso de anúncio de creme dental que descamba numa estrondosa gargalhada.
Celso Sim – uma redução afirmativa do nome de batismo, Celso Pacheco Simões – foi ator no Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa. Além de ter composto trilha sonora para as peças do Oficina, tem parcerias musicais com Jorge Mautner, José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski, entre outros. Em novembro, pediu demissão da São Paulo Companhia de Dança, onde deu expediente por quinze meses como produtor e assistente da diretoria artística, fazendo análise de contratos e relatórios burocráticos.
A São Paulo Companhia de Dança, vinculada ao governo estadual, fica num prédio de estilo neoclássico no Bom Retiro. Celso Sim foi convidado para o cargo pela amiga e diretora da companhia, Inês Bogéa, casada com Nestrovski e com quem já havia trabalhado na Cia. TeatroDança de Ivaldo Bertazzo. Sentado diante do computador numa sala do 2º andar, ele cumpria aviso prévio em novembro. Entre um telefonema e outro, explicou por que decidiu abrir mão do salário fixo para voltar às inconstâncias da música: “Eu adoro o rigor com a coisa pública. Ter trabalhado aqui me fez ser um produtor melhor, entendo muito mais de direito autoral, de contratação de equipe, de direito patrimonial. Só que hoje faço isso cada vez mais rápido e melhor e queria usar o tempo que sobrava a meu favor, mas não podia porque tinha que cumprir horário.”
O salário lhe fará falta, mas Sim conseguiu poupar. “Do que eu guardei, uns 40% vinham do meu salário de empregado e 60% da música, e eu economizei o dinheiro que ganhei nos shows”, disse. Ele teve outros dois empregos com salário fixo. Adolescente, trabalhou como contínuo no frigorífico do pai e, há cinco anos, foi produtor e professor de artes para alunos em situação de risco na companhia de Ivaldo Bertazzo.
Desde o show da Flip, Celso Sim cumpre uma agenda de ensaios e shows incompatível com quem tem de dar satisfação sobre seus horários. Cantou com Wisnik do Acre ao Rio Grande do Sul e fez mais onze shows em São Paulo, com repertórios e músicos diferentes.
Ele divide o aluguel com uma amiga no Edifício Copan, no Centro de São Paulo. O apartamento é de gente solteira que não para em casa: poucos móveis e geladeira vazia. O filtro de água mineral da cozinha estava seco havia dias porque os donos da casa nunca estavam presentes para receber a entrega. Na sala, DVDs, CDs e livros espalhados, um tatame no chão, um sofá vermelho, piano e aparelho de som. Na parede, uma foto de Clarice Lispector e o cartaz de Mistérios Gozosos, peça em que ele atuou e cantou.
Na varanda, um vestido chinês pendia do varal. Era preto, longo, com bordados em azul e dourado e fenda lateral nas pernas. “É meu, comprei em Paris”, disse. “Usei com uma peruca loira no domingo, num show em tributo à Claudia Wonder”, atriz e cantora transformista morta ano passado. Nunca se apresentou antes vestido de mulher e não pretende repetir: “Foi a primeira e última vez. Aquilo me deu um calor danado, eu estava sem energia e não sabia por quê, e era o raio da peruca. É apertada, dá agonia, tudo machuca, é muito trabalho. Cantei, à capela, Let’s Play That, do Jards Macalé, em cima de um poema do Torquato Neto.”
Celso Sim tinha 14 anos quando foi estudar teatro com a atriz e diretora Myriam Muniz e ganhou dela uma bolsa. Ao longo de cinco anos, estudou interpretação, literatura, poesia e história da arte. “Se me vestisse hoje como naquela época, eu seria apedrejado na rua”, disse. “Eu era uma mistura de David Bowie com Carmen Miranda.” A amiga Fernanda Diamant, que o conhece “melhor do que a própria mãe”, contou que a primeira vez que o viu ele estava com uma calça de oncinha e usava o cabelo verde.
A formação musical de Celso Sim é influenciada pelos clássicos do samba e da MPB. João Gilberto, para ele, é rei. Mas também é marcado pela música alternativa da vanguarda paulistana que despontou nos anos 80, como Itamar Assunção e Arrigo Barnabé: “Um show que mudou a minha vida foi Clara Crocodilo, do Arrigo. Eu tinha 14 anos. Era uma música muito sofisticada, dodecafonismo misturado com história em quadrinho e refrão que dava para dançar e cantar. Foi um divisor de águas.”
Celso Sim morou com os pais até os 19 anos, quando conheceu Jorge Mautner e firmaram uma parceria musical que duraria quase uma década. Os dois moraram juntos em Salvador, Viena, Rio e São Paulo. Assustados com a truculência do presidente Collor em relação à cultura, decidiram dar um tempo do Brasil e foram para a Áustria. Foi lá que Sim começou a cantar profissionalmente. Participou do disco Pedra Bruta, de Mautner, gravado em Viena e lançado no Brasil. “Achei que nunca mais voltaria, foi um autoexílio”, contou. “Levei a maior quantidade de livros que podia, o Jorge tinha me dado uma biblioteca inteira.” Leu Os Sertões em Viena, ao longo de três dias seguidos. Ao terminar, decidiu voltar. Mautner veio junto.
No Brasil, apresentaram-se em shows no Carnaval carioca, ao lado de Nelson Jacobina, e Sim passou a trabalhar como produtor. “Durante dez anos, o Jorge me deu as melhores aulas de música e de composição, com métodos dadaístas, libertários ao extremo”, disse. Um desses métodos era ler cantando o editorial do Estadão:“Tinha que ser de chofre, abrir o jornal sem saber o que tinha dentro, ler e cantar o texto ao mesmo tempo.” Acha que com isso ganhou “fluxo criativo e capacidade de improviso”. Sobre o antigo parceiro, Mautner escreveu num e-mail: “Celso Sim é um extraordinário intérprete. Sua voz tem um timbre de comunicação e empatia absolutas.”
Em 1994, Sim assistiu a uma montagem de Hamlet do Teatro Oficina: “Aquilo mudou minha vida de trás para a frente, presente, passado, futuro, nunca tinha visto nada igual.” No final daquele ano, durante os ensaios de Mistérios Gozosos, José Celso Martinez Corrêa, diretor do Oficina, sofreu um infarto. Sim foi chamado para substituí-lo e chegou a ensaiar com o grupo, mas Zé Celso se restabeleceu e voltou à peça.
Eles não se conheciam até então, mas a afinidade artística foi imediata. Logo nos primeiros ensaios, ouviu do diretor: “Celsinho, libera esse quadril!” Penou um bocado até conseguir. “O Zé Celso foi fundamental”, disse. “Ele dilacerou a minha voz, me exigiu cantar em falsetes, no tom que fosse, exigiu muito do meu corpo, da minha caixa acústica.” Passou a atuar e a compor canções para as peças do Oficina e nunca mais parou. Enquanto isso, na vida pessoal, o cantor vivia uma análise combinatória de possibilidades afetivas. Namorou amigos e amigas, que também namoraram entre si.
Sim produziu e lançou depois um CD solo, Primeiro Passo, com 23 canções, a maioria delas feita de encomenda para o Oficina, em parceria com o músico Pepê Mata Machado, que conhecera no teatro. Para o lançamento, fez dezenove shows, e se empolgou tanto com o resultado que no ano seguinte soltou um segundo disco, Sambamaria. “Pensei: se fizer os mesmos dezenove shows, a coisa vai”, contou. “Mas não. Lancei o segundo disco e só fiz dois ou três shows. Foi a única vez que eu desisti. Entrei em depressão profunda, liguei para os meus amigos, que me bancaram durante um ano.”
Ele vendeu o apartamento, comprou outro, vendeu novamente e investiu o dinheiro em ações de longo prazo. Esse dinheiro permanece investido e intocado. “Eu adoraria que meu status artístico tivesse uma correspondência maior com a minha economia”, disse. “Sou um curinga da minha própria vida, e a música é o centro disso.”
Em 2001, foi convidado por Zé Celso para fazer Os Sertões, conjunto de peças que lhe rendeu cinco anos de trabalho e um prêmio de melhor trilha sonora para teatro, embora as músicas tenham sido compostas com Tom Zé, Wisnik e quase vinte outros autores. Ganhou dinheiro com isso? Não: “O prêmio foi dividido com muita gente. Tudo no Oficina tem muitos compositores. Se chega alguém e muda duas notas, já vira coautor. Mas tudo bem.” E explodiu em gargalhada.
Entre picanhas e maminhas, num restaurante da madrugada paulistana após um show beneficente, Celso Sim e Wisnik relembraram como se conheceram. Foi no Oficina, quando Wisnik fazia o papel de marinheiro na peça As Boas, uma adaptação de As Criadas, de Jean Genet, nos anos 90.
Sim o viu em cena e passou a ouvir os CDs de Wisnik. Pouco depois trabalharam juntos com o grupo de Zé Celso. Na década seguinte Sim fez uma série de shows no Teatro de Arena, Se é Pecado Sambar, com clássicos de Ismael Silva, Cartola, Adoniran Barbosa, Tom e Vinícius, além de composições dele mesmo. “Esses shows foram uma descoberta”, disse Wisnik, que a partir daí passou a convidá-lo para cantar em seus shows.
Quando lançou o terceiro disco, Vamos Logo Sem Paredes!, Sim levou uma rasteira: num show em Belo Horizonte, para promover o CD, havia meia dúzia de pessoas na plateia. Sobre os altos e baixos da carreira, ele disse numa entrevista antiga: “Eu tenho um nome a zerar. Sob essa perspectiva, tudo é questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo.”
“Agora você vai conhecer minha outra atividade, que é… tantantantan… o ser religioso”, avisou Celso Sim. A atriz Giovanna Velasco o convidara para celebrar o batizado de Theo, um bebê de dois meses. Ele já havia celebrado o casamento dela no jardim da casa, na Pompeia. Desta vez, os amigos se reuniram para a cerimônia num domingo de sol regado a feijoada e caipirinha.
Os convidados se cumprimentavam com um beijo na boca mais lento que um selinho e mais breve do que beijo de língua. Nos anos 70, boa parte estaria de bata indiana, mas agora o figurino é básico e tende ao preto. Os amigos são gente descolada que gasta dinheiro com cinema, teatro e livros. Quem não é bonito é estiloso, e não há lugar para a falta de charme, seja ele autêntico ou ensaiado. São músicos, produtores e artistas, a maioria atores de teatro que falavam de ensaio, teste de elenco, aula de interpretação e internet. Uma atriz dizia que não aguenta mais ver tanta gente “feliz e produtiva” no Facebook: “Essa gente me cansa. É tudo fake!”
Celso Sim trouxe o discurso do batismo gravado num pen drive, mas, na falta de impressora, leu o texto direto de um laptop, sob um frondoso pé de pitanga no jardim. Na palma da mão esquerda ele equilibrava o computador e, com a direita, gesticulava. Os convidados se juntaram em semicírculo à sombra da árvore. Antes de começar, proferiu a velha frase das salas de espetáculo: “Terceiro sinal dado, celulares desligados, por favor.” Com a voz aveludada e solene, fez um discurso breve sobre o amor e encerrou:
Em nome do amor, da árvore, das estrelas do mar, das estrelas do céu, em nome das nuvens e da chuva, do sol e da lua, em nome da humanidade, da amizade, da alegria e da dor, em nome do caos e da ordenação, em nome da arte e da canção, em nome do filho, e do filho que sou, dos filhos que não tive e provavelmente não terei, eu te batizo Theo Velasco Debert. Amem [do verbo amar]. É isso.
Com uma taça de champanhe, o celebrante verteu água da torneira na testa do bebê. A fala emocionou os presentes, que o cumprimentaram no final. Ele agradeceu: “Como diria Zé Celso, não é mais preciso mover montanhas, é preciso comover montanhas.”
Arthur Nestrovski e Sim lançaram juntos, em 2010, o CD Pra Que Chorar, com músicas de Nestrovski, Lupicínio, Cartola e Caymmi, em voz e violão. “O Arthur tem um violão muito sofisticado, e foi o Wisnik que assinou a supervisão do trabalho; eu gravava, mandava para ele por e-mail e ele me dirigia por telefone”, disse.
Celso Sim está provisoriamente em Montreal, morando com Kiko – Marcos Francisco Nery, um trapezista baiano de 24 anos. Kiko fica até março no Canadá, onde faz um curso de trapézio e dança. Trabalhar no Cirque du Soleil não está nos planos. Ao pisar no aeroporto canadense, no início de dezembro, Sim foi retido por mais de duas horas para explicar o que tinha ido fazer lá. Por fim, acabou dizendo à policial: “É o seguinte, minha senhora: o objetivo primeiro da minha viagem aqui se chama A-M-O-R.” Na volta ao Brasil, pretende retomar a rotina: compor para o Oficina, montar uma nova peça com Zé Celso, fazer um show com Wisnik e outro com Arthur Nestrovski e trabalhar na trilha sonora de um desenho animado.
No derradeiro show do ano, no início de dezembro, antes de embarcar para o Canadá, Celso Sim vestia camisa social branca, jeans, tênis e óculos retangulares de aro grosso, que lhe dão um ar de compenetrado e moderno professor universitário. Ele e a banda interpretaram Beatles, Roberto Carlos, Mamonas Assassinas, Lamartine Babo e composições próprias. O cantor gingou com o quadril e os ombros e enfeitiçou a plateia. Na segunda metade, sacou um papel e disse: “Todos os meus amigos me proibiram de fazer isso, mas eu vou fazer.” E limpou a garganta para ler pausadamente uma coluna de José Miguel Wisnik em O Globo:
“O reconhecimento unânime pelo Supremo Tribunal Federal dos direitos de pessoas do mesmo sexo a usufruírem os benefícios de uma união estável é um marco de civilidade na vida brasileira.”
Pulemos várias partes [e prossegue]:
“Vou apresentar aqui um esquema em que farei livre e amplo uso da palavra ‘veado’. Meu esquema leva em conta o paradoxo, e diz que há quatro tipos de homens: meio veado, veado inteiro, meio-veado-inteiro e veado inteiro-e-meio.
Homem que é homem é meio veado, porque aceita a natureza variável do seu desejo e está seguro de suas opções heterossexuais, Ele ‘é e não é’ veado. O meio-veado-inteiro é aquele que ‘não é e é’. Já o veado inteiro-e-meio não faz por menos: não contente em ser, exorbita e torna-se ela, porque ‘é e é’.”
Lá do fundo, um amigo gritou: “Bicha!” Daí em diante, o cantor ficou mais performático e o show esquentou. Para o bis, veio com a marchinha História do Brasil, de Lamartine Babo, com uma ligeira alteração:
Ceci virou Iaiá
Peri virou Ioiô
De lá pra cá tudo mudou
Passou-se o tempo da vovó
Quem manda agora é a Lacraia
E a eguinha pocotó, pocotó, pocotó!
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