ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Um ponto de virada
Não tenho noção se peguei ou não uma forma branda da doença
Evando Nascimento | Edição 163, Abril 2020
Do Rio de Janeiro
Meu confinamento começou na azarada sexta-feira, 13 de março. Moro sozinho em Botafogo e, nesse dia, fui a Ipanema na parte da manhã para uma consulta médica de rotina. À noite comecei a ter um certo mal-estar.
No sábado, não havia mais dúvida: uma gripe estava se iniciando e por isso recorri a um medicamento. No domingo, acordei pior, sentindo cansaço, com tosse não muito forte, inflamação na garganta e dando alguns espirros. Normalmente, continuaria com meu tratamento habitual, incrementado com limão espremido no copo, além de boa alimentação e repouso. Mas dessa vez isso não bastou, e decidi ir ao pronto-socorro de meu plano de saúde em Copacabana.
Fui atendido por uma médica muito atenciosa. Narrei meus sintomas e perguntei se poderia fazer o teste do coronavírus. Ela me respondeu que o governo só autorizava se o quadro fosse grave, com falta de ar e/ou pneumonia. Ora, eu tinha lido na véspera um artigo de um cientista recomendando que todos os que apresentassem algum sintoma fossem testados. Mas, claro, o Brasil não está preparado para isso…
Ao voltar para casa, informei aos amigos e ao amado sobre o que estava acontecendo, mas pedi que não me visitassem, pois não queria contaminar ninguém. O grande problema numa cidade como o Rio de Janeiro, bem como em outras capitais, é a pequena quantidade de leitos nos hospitais para atender até mesmo as classes média e alta. A grande indagação é: o que vai acontecer quando o vírus chegar às mais de quinhentas favelas cariocas?
Concluo este texto em 22 de março, o domingo seguinte à consulta médica. Passei a semana lendo inúmeros artigos e notícias na internet. Pesquisei também links de matérias disponibilizadas por amigos no Facebook. Criou-se uma forma de solidariedade como nunca tinha visto antes nas redes sociais, com muitas trocas de informações e palavras de apoio mútuo.
Meu dia a dia mudou completamente. Tomei os medicamentos que a doutora passou. Suspendi a vinda da faxineira por duas semanas (com remuneração) e fiz eu mesmo uma limpeza geral na segunda-feira, quando comecei a me sentir melhor. Felizmente Botafogo é hoje um dos bairros mais bem estruturados do Rio, com muitas farmácias, amplo comércio alimentar, bancos, clínicas, cinemas e teatros. Liguei para o supermercado mais próximo de minha rua, a Real Grandeza, e encomendei frutas e material de limpeza.
Resido num quarto e sala recém-reformado, extremamente confortável. Não tenho a menor paciência para cozinhar, de modo que todos os dias peço por telefone, em algum restaurante da redondeza, comida que dê para o almoço e o jantar. Não gosto dos aplicativos, porque seus funcionários não são contratados. Esses subempregos estão muito bem criticados no novo filme de Ken Loach, Você Não Estava Aqui, o último que vi antes de os cinemas fecharem as portas. Uso sempre luvas e máscara quando atendo a porta, mantendo o entregador a uma distância recomendável.
Falo com A. por telefone ou então no Skype, e o amor se faz “pelo sem-fio”, como previu Drummond no belíssimo poema O Sobrevivente, que diz também o seguinte: Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado./E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio. O isolamento não é para mim um drama, porque minha vida inteira sempre trabalhei mais em casa do que fora, pesquisando, escrevendo e preparando aulas. A diferença é que esse confinamento é compulsório e não voluntário.
Na sexta-feira, dia 20, como fazia sol, não resisti e saí. Desci bem protegido pela escada, para não esbarrar em ninguém. As ruas estavam quase desertas, parecia feriado. Muitas lojas fechadas, poucas pessoas circulando, todas com ar sombrio, algumas com máscaras. Ao passar pela Rua Voluntários da Pátria, vi de longe o poeta Antonio Cicero atravessando a rua. Instintivamente, gritei, e ele parou, hesitante entre prosseguir ou retornar, numa situação um tanto cômica; depois veio em minha direção. Somos grandes amigos há mais de vinte anos, ele é uma das pessoas mais afáveis e inteligentes que já encontrei. Mora a algumas quadras daqui, no Humaitá. Nos saudamos sem aperto de mão e conversamos, entristecidos, sobre a situação. Ao final, ele ergueu os braços e disse: “É preciso deixar passar…”
Suspendi quase toda a escrita diária e me dediquei integralmente à leitura, sobretudo de poesia: Francis Ponge, Wisława Szymborska e João Cabral de Melo Neto. Súbito me vem a sensação estranha de quem viveu o início da Aids em 1983, embora no exterior a epidemia tenha começado antes. Naquele ano, eu acabara de chegar ao Rio para fazer um mestrado na puc. Falava-se então da nova enfermidade, que alguns equivocadamente chamavam de “câncer gay” e que acabou matando de forma indiscriminada pessoas de todos os matizes sexuais.
A principal semelhança entre a Aids e a Covid-19 é o fato de ambas terem abrangência mundial e estarem relacionadas a um vírus que apareceu repentinamente, de forma misteriosa, levando as pessoas a reagirem, de início, com ceticismo. Depois de algum tempo, as duas se mostraram muito infecciosas e mataram um grande número de doentes. Felizmente, depois de uma década, foram encontrados coquetéis de medicamentos que, se não curam, ao menos evitam a morte dos portadores de Aids. É, aliás, o que se espera em relação a esse novo mal: que se ache a cura, porém num tempo muito menor. Caberia fazer um estudo sociopolítico das duas epidemias.
Não tenho medo de morrer. Há uma frase marcante em La Folie du Jour (A loucura do dia), de Maurice Blanchot: “Sofrer é embrutecedor.” Como talvez grande parte da humanidade, sonho com uma morte súbita, sem sofrimento.
Ouço música: Madredeus, John Cage, Virgínia Rodrigues, Caetano, Gal, Bach, sem temer a mistura. Igualmente, pinto e desenho, realizando meus desenhos-escritos, nos quais misturo palavra & imagem.
Agora já estou plenamente recuperado, mas não tenho noção de quanto tempo ainda vou ficar confinado, nem se peguei ou não uma forma branda da doença.
Creio que a humanidade precisa daquilo que o pensador Jacques Derrida chamou de “solidariedade de todos os viventes”, ou seja, do humano com os animais e as plantas. Lembro que uma hipótese atribui a origem da doença à ingestão da carne de um bicho cruelmente sacrificado em alguns países asiáticos: o delicado pangolim. Talvez nossa barbárie cotidiana contra as outras espécies esteja finalmente cobrando seu preço. Torçamos então para que esse “choque” mundial que é a pandemia provocada pelo coronavírus sirva como ponto de virada para uma existência menos desumana.