ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE_2012
Um seu criado
“Nós fazemos tudo de um jeito meio diferente aqui”
Joel Stein | Edição 72, Setembro 2012
“Bem-vindos. Vocês já jantaram conosco?”
“Não. É a nossa primeira vez.”
“Ah, maravilha. Bom, eu tenho certeza que vocês já estiveram em outros restaurantes, não é?”
“Hã, claro. Já.”
“Ótimo. Bom, nada disso vai ser útil como experiência hoje à noite. Porque nós fazemos tudo de um jeito meio diferente aqui.”
“Tudo bem. A gente gosta de coisas diferentes.”
“Eu vou orientar vocês, então. Primeiro, nós fazemos um monte de perguntas, cujo objetivo é fazer vocês se sentirem inseguros. Todo mundo aqui na mesa acha legal se sentir inseguro?”
“Ora, mas é por isso que a gente janta fora!”
“Ótimo. A nossa especialidade são os pratos pequenos. Vocês já ouviram falar em pratos pequenos?”
“Será que é que nem um prato, só que pequeno?”
“Um palpite excelente. Mas completamente equivocado. Os nossos pratos pequenos são um pouquinho diferentes dos outros pratos pequenos. Eles são pequenos mesmo. Mais ou menos o que os pombos iam usar se usassem pratos. Nós recomendamos pedir cerca de mil desses pratinhos por pessoa e dividir. Vocês não se incomodam de dividir?”
“Nós estamos casados há dez anos. Temos três filhos.”
“Não, não só um com o outro. Vocês vão precisar dividir com o restaurante todo. Aquele casal mais velho ali no canto vai comer uma boa parte da comida de vocês. Eu vou dar umas garfadas nos melhores pratos antes de eles chegarem à mesa. Tem um gato na cozinha que vive tão morto de fome que às vezes a gente acaba trazendo só uns pratos vazios com ligeiros vestígios de saliva de gato. Espero que vocês não estejam com fome.”
“Nós não jantamos antes de vir para cá.”
“Hmm. Sei. Bom, então, vocês provavelmente vão precisar de cerca de 5 mil pratos. Vocês vão ver que o cardápio está dividido em quatro seções: Círculo, Vale, Fosso e Esfera. Vocês leram o Inferno de Dante depois da faculdade?”
“Eu nem sei se li na faculdade. Eu me formei em administração. É por isso que eu tenho dinheiro para comer aqui.”
“Tudo bem. Eu li. Quando eu passar para os pratos especiais, eu também vou começar a usar um monte de palavras inventadas. Vocês leram Finnegans Wake?”
“Não sei nem o que é isso.”
“Tudo bem. Eu tenho um doutorado em Literatura Comparada. O chantorão de frustre selvático vem com um acompanhamento de choupariça das estepes. E é servido mornelitépido.”
“A gente tem que pedir um negócio desses!”
“Ótimo. Eu vou trazer um para cada um, dois para aqueles velhos, e três para mim e para o gato.”
“E também…”
“Vocês vão perceber que eu não anoto nada. Vocês podem pensar que eu vou decorar o pedido de vocês. Mas não. Eu vou trazer o que eu quiser que vocês comam. Se eu trabalhar direitinho, vocês vão se sentir inseguros demais para devolver o prato.”
“Já estamos animados!”
“Excelente. Posso sugerir um coquetel? Digam que sim, porque eu não vou parar de falar de coquetéis até vocês pedirem um coquetel. Vocês já tomaram coquetéis? Coquetel, coquetel, coquetel, coquetel…”
“Já. Acho que sim. Não. Eu vou dizer que não. Não, nunca tomamos.”
“Isso mesmo. Porque nós fazemos coquetéis de um jeito meio diferente. O nosso mixologista pega uma marafa artesanal, acrescenta um cubo de gelo maior que o copo, mistura com alguma coisa que vocês nunca iam querer dentro de um coquetel – fluido de isqueiro, lasca de madeira, lágrimas de ginastas romenas dos anos 80 – e aí, ao estilo de mocinha ofendida em filme dos anos 30, o mixologista joga o líquido direto na cara de vocês. É um jeito super-refrescante de começar uma refeição. Ele foi campeão de arremesso no beisebol em Marília, então dá para sentir de verdade o jato na cara.”
“Muito obrigado.”
“Eu vou lhes trazer os pratos na ordem em que eles saem aleatoriamente da cozinha, que é como se serve na China. Vocês já estiveram na China?”
“Não. Mas estamos pensando em ir.”
“O chef ia achar muito melhor se vocês tivessem ido à China. Mas, como não foram, ele gostaria que vocês assistissem a um webisódio de vinte minutos em que ele planta hortas em escolas primárias chinesas com o chef Chan Yan-tak. Vocês trouxeram iPad?”
“Trouxemos.”
“Perfeito. Além disso, o chef gostaria que vocês comessem com a mão esquerda, já que ele é canhoto e é assim que ele prepara a comida. Se vocês se distraí-rem e acabarem esquecendo, não se preocupem: eu tenho uma palmatória para bater na mão direita de vocês.”
“Inovador.”
“E, só para vocês ficarem sabendo, nós também lidamos com as gorjetas de um jeito meio diferente. Em vez de vocês me darem gorjeta baseada na opinião que tiverem do meu serviço, eu vou calcular uma percentagem baseada no que eu achei de vocês como clientes. Se bem que, para falar a verdade, eu normalmente esqueço e acabo pondo 20% de uma vez.”
“Nós também!”
“Genial. E, finalmente, antes de a gente começar, exigimos que vocês aceitem o meu pedido de amizade no Facebook para nós podermos apagar qualquer tensãozinha criada por essa relação artificial de servidor e servido. Seria tremendamente constrangedor se vocês não aceitassem o pedido caso vocês tenham a mais remota esperança de voltar aqui. E vocês vão voltar, só para poderem responder orgulhosamente: ‘Sim! Eu já jantei com você uma vez!’ Então já podem ir pegando os celulares e aceitando o meu pedido. Eu espero aqui.”
“Prontinho! Aliás, bela foto, a do concurso de bigodes no seu perfil.”
“Obrigado. E, não esqueçam, o meu desprezo por vocês não tem a ver com o suposto desequilíbrio na relação de poder entre nós. Eu simplesmente acho que vocês são toscos, e eu abomino isso muito mais do que racismo, música popular e o bairro de classe média de onde eu venho.”
“Os nossos amigos tinham razão. Esse restaurante é ótimo.”