ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2018
Um tremendo 171
Muito malandro pra pouco otário
Yasmin Santos | Edição 149, Fevereiro 2019
Sentado à mesa 3 da choperia Sempre Vila, Rui Amorim estava apreensivo. Pela primeira vez a festa em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio de Janeiro, não teria banda nem palco. Os participantes ocupavam mesas dispostas ao lado do estabelecimento, modestamente decorado: um amplificador de som pequeno, uma urna de papelão e uma faixa com letras garrafais presa à fachada: “Eleição do 171. Show com Mortinho da Vila, Marv’nalia, Zeca Pacotinho e outros.”
Naquela noite seria escolhido o “171 de Vila Isabel”, o cidadão mais malandro do bairro, berço de Noel Rosa e ainda polo da boemia e do samba cariocas. A votação acontece todo dia 17 de janeiro na esquina da Visconde de Abaeté com o Boulevard 28 de Setembro, a rua mais movimentada da Vila. No Código Penal, o número identifica o estelionato, prática criminosa em que o infrator obtém vantagem ilícita em prejuízo alheio, valendo-se da boa-fé da vítima. Em Vila Isabel, o título é motivo de orgulho, e quem não é lembrado costuma se ofender.
Semanas antes, Amorim, um engenheiro civil de 60 anos que organiza a festa há 26, foi às ruas coletar indicações para o título de 2019. Quando, na noite da eleição, ele saiu em busca dos cinco candidatos – os nomes mais citados na consulta popular –, descobriu que apenas dois estavam presentes. “O Sérgio da Banda bebeu demais, como sempre, e não vem”, justificou. “Zé Negão e Zé do Táxi nem deram as caras.” Para preencher uma das vagas, o organizador convocou o sexto nome mais lembrado pelos moradores: Carlos Elias Pereira de Souza, um corretor de veículos de 69 anos de apelido “Bizunga”.
Como o pleito deste ano coincidiu com um ensaio da Unidos de Vila Isabel, a festa foi involuntariamente embalada pela Swingueira de Noel, a bateria da escola de samba. Amorim cortou um dobrado para conter a animação da plateia, que ameaçava se dispersar atrás dos músicos. Esbaforido, chamou ao microfone Márcia Rossi, Maria do Socorro Bastos e Bizunga, os indicados da noite.
Presidente de uma associação de blocos do bairro, Rossi dedicou seu discurso às Malandras di Buteco, grupo que se reúne para frequentar bares e eventos carnavalescos. A candidata não integra o grupo, mas apostou na solidariedade feminina para conquistar o voto das cerca de 45 integrantes do movimento ali presentes.
Já a concorrente Maria do Socorro Bastos, funcionária pública aposentada, dividia a mesa apenas com familiares. Em busca do bicampeonato, a candidata aproveitou a presença de músicos e passistas e prometeu liberar as duas pistas do Boulevard 28 de Setembro para ensaios da escola, durante todo o ano. Hoje, apenas uma delas pode ser fechada para os ensaios que precedem o Carnaval.
Por fim, o bicampeão Bizunga – um senhor calvo de barriga proeminente – tomou o microfone com tranquilidade e prometeu: “Enquanto houver chope, estarei lá.” Seu discurso foi o mais longo, menos pelo que ele falou, mas sobretudo pela interrupção de Jorge Pimenta, a quem ele prometeu nomear secretário caso eleito. Em polvorosa, a plateia entoou: “Bizunga eleito/O povo satisfeito.”
Foi o ex-militar Antonio Carlos Borromeu Sant’Anna, o “Perna”, que instituiu a eleição, inspirado na expressão “Um tremendo 171”, da canção Na Aba, de Ney Silva, Paulinho Corrêa e Trambique, gravada em 1984 por Martinho da Vila. A data da festa – 17/1 – foi sugestão de um amigo, o Barata. A primeira edição, ocorrida em 1985, em vez de festejar malandros do bairro, elegeu um pilantra de projeção nacional: o então deputado federal Paulo Maluf, que naquele ano perderia a eleição indireta para presidente (Maluf foi preso mais de três décadas depois, condenado pelo crime de lavagem de dinheiro, cometido quando foi prefeito de São Paulo entre 1993 e 1996). Na segunda edição, foi a vez de Ibrahim Abi-Ackel, ex-ministro da Justiça durante a ditadura militar, acusado de envolvimento num escândalo de contrabando de pedras preciosas.
Depois disso a eleição deixou de ser realizada por seis anos – Perna estava com problemas de saúde e morreu de infarto em 1991, aos 49 anos. Em homenagem ao amigo, Amorim retomou o evento em 1993, quando criou a Confraria do 171, desde então encarregada de outorgar o prêmio a moradores do bairro. O uniforme da agremiação – camisa branca, colarinho e a costura das cavas azul – traz bordada no bolso uma caricatura do patrono, cujo nome batiza o jornal distribuído no evento: a Folha do Perna, de periodicidade irregular. “Vila Isabel tem tanto malandro que precisa importar otário”, costumava dizer o homenageado. “Era um fanfarrão”, brinca Amorim, “mas também se preocupava com o bairro.”
“Márcia Rossi nem bebe, vai votar nela por quê?”, provocou Maria do Socorro Bastos. “Pra tomar guaraná com ela?” O apelo encontrou eco entre alguns: “Já viu 171 que não bebe?”, questionou um participante sentado à mesa em que estava a repórter da piauí. Mas não foi o bastante para convencer os eleitores de Rossi. Ela e Bizunga terminaram a apuração com oitenta votos cada – o primeiro empate na história do evento. Bastos ficou na lanterna, com vinte votos registrados.
Decidiu-se que o desempate seria por sorteio e convocaram a moradora dona Ângela para retirar de uma sacola de pano uma das duas cédulas. Um senhor de 71 anos protestou ao microfone: “Tenho direito ao voto de Minerva.” Tratava-se do ex-juiz de futebol Luiz Carlos Gonçalves, vulgo “Cabelada”, malandro histórico considerado hors-concours após se eleger algumas vezes seguidas e apontar seus sucessores. Amorim não cedeu, para revolta do veterano.
Ao ouvir que Bizunga era o vencedor, a plateia vibrou. O confrade, agora tricampeão, declarou-se emocionado e disparou um convite fora do script. Por fontes seguras, ele soubera que uma moradora do bairro tinha comprado dois barris de chope para comemorar seu aniversário. “Pelo bem geral da Cidade Independente de Vila Isabel”, o recém-eleito 171 chamou todos para a festa, cuja data ele desconhecia. O marido da aniversariante, meio desconcertado, pegou o microfone e ratificou o convite.