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    Claudia Cavalcanti em Leipzig em 1985 e o dossiê da Stasi: “Fiquei feliz por não ter pistas nos documentos de que meus colegas de universidade passaram informações sobre mim ao serviço secreto” CREDITO: CLAUDIA CAVALCANTI_ACERVO PESSOAL

anais do comunismo

Uma história acabada

O meu dossiê nos arquivos da polícia secreta da Alemanha Oriental

Claudia Cavalcanti | Edição 178, Julho 2021

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Eu tinha 20 anos quando, em 1984, atravessei a Cortina de Ferro para estudar germanística na Universidade de Leipzig, na Alemanha Oriental. Naquela época, já começavam a pipocar manifestações populares contra o regime comunista, todas elas sempre ameaçadas por duras respostas do governo. A polícia secreta do país, a Stasi (abreviatura de Staatssicherheit, segurança do Estado), ainda mantinha firmes as suas perseguições e vigilâncias, criando um clima de paranoia que até hoje causa danos em quem as viveu.

Quando o Muro de Berlim foi pacificamente derrubado, em 9 de novembro de 1989, eu estava fazendo as malas em Leipzig para retornar ao Brasil. Como não tenho bola de cristal, não imaginei que Fernando Collor de Mello estava prestes a ser eleito presidente. Se soubesse o que ocorreria no Brasil, talvez eu tivesse ficado lá, para acompanhar o desfecho daqueles dias: a reunificação da Alemanha, um ano depois.

Em 1991, os arquivos secretos da Stasi foram abertos à consulta para quem desejasse. É um acervo quase incomensurável, composto pelos registros feitos por espiões que vigiaram o cotidiano de uma infinidade de pessoas. Segundo estimativas, havia na República Democrática Alemã (RDA) – país então com 16,4 milhões de habitantes – um espião para cada grupo de 6,5 pessoas.

Muita gente, ao ter acesso aos documentos sobre sua pessoa, encontrou ali segredos indesejáveis, como ter sido vigiado pelo próprio cônjuge ou um vizinho com o qual tinha convivência cordial. Esse é o tema, aliás, do filme A Vida dos Outros, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2007, sobre um casal de artistas que é espionado diariamente e a relação – involuntária, claro – que mantém com o informante designado para “acompanhá-lo”.

Com a liberação dos documentos da Stasi, fiquei curiosa para saber (mas um tanto temerosa também) se a polícia secreta teria reservado algum tempo para me vigiar e registrar minha vida em Leipzig nos anos 1980. Finalmente, em março de 2019, escrevi à instituição que administra os arquivos e recebi a seguinte resposta: “As pesquisas nas respectivas fichas, realizadas a partir dos dados fornecidos, estão concluídas. Essas pesquisas mostram que você está registrada nas fichas do Serviço de Segurança do Estado da antiga República Democrática Alemã. O registro sugere que pode haver documentos a seu respeito. […] Peço a compreensão para o fato de que, por causa do grande número de requerimentos em curso, infelizmente é preciso contar com um tempo de espera de até dois anos.”

Toda essa história eu contei com detalhes na piauí_158, em novembro de 2019 (A vida dos outros e a minha). O texto para a revista terminava com o relato de minha expectativa, enquanto não me enviavam os documentos encontrados:

Quantas páginas terão dedicado a mim: duas, vinte ou duzentas? Talvez constem ali não apenas descrições de encontros e situações, mas fotos e transcrições de áudios. É possível que eu não identifique meus espiões de estimação, ou sofra uma tremenda decepção. Caso os conheça, quem sabe me console com a ideia de que são hoje pessoas melhores que no passado, como o espião de A Vida dos Outros. Pode ser que eu morra de rir com determinadas situações. Ou que morra de raiva. E chore muito. Não sei o que vou ler nesses papéis, mas passei trinta anos me preparando para isso.

 

Uma das primeiras pessoas a comentar o meu texto publicado na piauí foi Fernando, o dono da banca em frente à minha antiga casa. “Estamos esperando”, disse ele, sobre os documentos previstos para chegar da Alemanha sabia-se lá quando. “A vida dos outros sempre nos interessa”, me escreveu uma conhecida que também havia lido o artigo, dizendo que esperava ansiosa pela continuação da “história”. Uma amiga, Clara, me contou que estava fazendo um documentário sobre meninas lésbicas e transgêneros, e que o título, inspirado no meu texto, seria A Vida Delas e a Minha. E Chico confessou que não conseguiria me encontrar nas reuniões de trabalho seguintes sem me perguntar se eu já tinha recebido os documentos da Stasi.

A curiosidade de amigos e desconhecidos arrefeceu a minha. Deixei-a com os outros. Ganhei cúmplices, como numa espécie de solidariedade às avessas, pois desejavam minha vida espionada, e pressupunha que, sim, eu precisaria lidar com surpresas desagradáveis e documentos comprovando a bisbilhotagem de estranhos ou a traição de pessoas próximas a respeito da vida que era só minha.

 

Em novembro do ano passado, um ano depois da publicação do texto na piauí, li num jornal alemão que haviam sido feitas alterações na lei sobre o processo de guarda dos documentos da Stasi, em obediência a uma resolução do Parlamento alemão.

Os arquivos das doze sedes da Stasi em diferentes cidades da extinta Alemanha Oriental têm 111 km de pastas enfileiradas, sendo 50 km em Berlim e 8,6 km em Leipzig. A partir do último 17 de junho, todos os documentos passaram a integrar o Arquivo Nacional alemão, em Berlim e em parte dessas doze cidades. Isso não quer dizer que o acesso aos arquivos mudou, tampouco a chamada Lei sobre os Documentos do Serviço de Segurança do Estado da Antiga República Democrática Alemã (na forma abreviada: Lei dos Documentos da Stasi), de 1991. Mas, segundo a reportagem, essa novidade pode estender ainda mais o tempo e a expectativa de muita gente que ainda espera esses documentos – como eu.

As mudanças, que têm investimentos assegurados, incluem ainda a modernização do arquivo e a troca do nome da instituição responsável por sua guarda, que deixa de ser chamada Departamento Federal dos Documentos da Stasi (BSTU) e passa a ser nomeada Departamento Federal para as Vítimas da Ditadura do SED (sigla em alemão do Partido Socialista Unificado da Alemanha, cujos dirigentes governaram a RDA de 1949 a 1990).

Regina Schild, 63 anos, foi quem confirmou a quilometragem de dossiês de Leipzig, em entrevista ao Süddeutsche Zeitung, em dezembro de 2020. Ela foi diretora dos arquivos na cidade até se aposentar, em fevereiro, e também requereu acesso aos seus documentos secretos, a respeito do que afirmou ao jornal: “Eu observava nos outros: essa tensão antes de ler os próprios documentos. E a necessidade de falar muito sobre como eram as coisas antigamente. Comigo também foi assim. Mas fiquei decepcionada com o que li. Não, na verdade fiquei aliviada, a princípio. Porque nenhum dos meus melhores amigos havia sido espião. Talvez por isso houvesse tão pouco sobre mim [nos arquivos]. Apenas informações isoladas, mas nenhuma imagem conclusiva sobre minha biografia.”

Os documentos sobre ela mesma não a fizeram perder o sono, mas Schild contou que até hoje fica arrepiada ao se lembrar de alguns dos documentos que precisou analisar antes de liberá-los aos requerentes.

Um deles é o que fala de uma mãe solteira que tentou fugir com seu filho de 4 anos. Ela foi presa, e o menino, entregue à adoção. Na prisão, a mulher gravou em fitas K-7 mensagens para o filho, contando a ele sobre os dias felizes que passaram juntos, mas também sobre a tristeza que sentia por estar longe dele. Com a abertura dos arquivos, a mãe pediu as fitas de volta, que, como era de se prever, nunca foram entregues ao filho.

A tarefa de Schild foi ouvir todas as fitas para se assegurar de que nelas só havia as gravações da mãe, que confiara na promessa do governo da RDA de que, se ficasse no país, teria o filho de volta – o que não aconteceu. Desesperada, ela apelou para organismos alemães-ocidentais, mas então foi presa novamente, dessa vez acusada de espionagem. Por fim, foi “vendida” para a Alemanha Ocidental, de onde continuou tentando encontrar seu filho. Um ano antes da queda do Muro, o então adolescente a viu na tevê e obteve permissão para reencontrar a mãe. Àquela altura, a história familiar já havia sido desenhada por linhas muito tortas – sem que o núcleo familiar original pudesse se reestruturar novamente.

 

Um mês antes das notícias sobre a mudança dos arquivos, eu havia escrito às autoridades alemãs que cuidam dos arquivos da Stasi para notificar minha mudança de endereço em São Paulo, para quando fossem me mandar os documentos encontrados. Em outubro, enviei o seguinte e-mail:

Cara Frau G., espero que esteja bem, apesar de tudo o que aconteceu e ainda acontece no mundo. Às vezes, me passou pela cabeça que iria morrer sem ter recebido as informações da BSTU. Mas até agora tudo corre bem com minha família e comigo, apesar da situação crítica no Brasil. A partir de novembro poderei ser encontrada no endereço abaixo.

É claro que a ideia não era apenas comunicar o endereço, mas fazer com que se lembrassem de meu pedido. E o tom dramático e pessoal, nada comum nesse tipo de correspondência, também seguia, online, carregado de segundas intenções.

Frau G. aparentemente não se deixou abalar, mas foi rápida na resposta, como sempre:

Prezada senhora Cavalcanti, confirmo aqui o recebimento de seu e-mail. Infelizmente, para uma mudança de endereço é necessária uma assinatura de próprio punho. Por isso solicito enviar novamente sua informação por escrito, mas com sua assinatura. Estou à sua disposição, a qualquer tempo, caso tenha outras dúvidas.

 

Nunca saberei se foi essa minha estratégia ou a persistência dos alemães no cumprimento de prazos, mas no fim de tarde do dia 27 de novembro passado, meu marido, Arthur Nestrovski, irrompeu no escritório do apartamento para o qual havíamos acabado de nos mudar e me entregou um envelope tamanho A4, meio grosso, que tinha como remetente o BSTU. Entendi imediatamente que o envelope continha tudo o que eu havia conjecturado durante trinta anos e pacientemente esperado nos últimos vinte meses. Fiquei eufórica – o que não deixa de ser um feito do dossiê que eu agora tinha comigo e cuja carta introdutória dizia:

Assunto: Uso de documentos do Serviço de Segurança do Estado da antiga República Democrática Alemã

Referência: Seu requerimento em 13/3/2019

Data: 27/10/2020

Anexos: 42

Prezada sra. Cavalcanti,

A senhora solicitou acesso aos registros do Serviço de Segurança do Estado da antiga República Democrática Alemã.

Com base na pesquisa realizada em todos os arquivos em questão, de acordo com suas informações, foi possível encontrar documentos relativos a sua pessoa que foram criados pelo Serviço de Segurança do Estado [Stasi] da antiga República Democrática Alemã. […]

Conforme o § 3, inciso i, em conexão com §§ 12 e seguintes da Lei sobre os Documentos do Serviço de Segurança do Estado na antiga República Democrática Alemã, a senhora só tem acesso à parte dos registros que contêm informações a seu respeito.

Esses documentos totalizam dezoito páginas.

A fim de lhe proporcionar um acesso mais rápido, estou enviando gratuitamente cópias desses documentos.

De acordo com o § 12, inciso v da lei, as cópias com informações pessoais sobre outras pessoas envolvidas e terceiros foram anonimizadas [no caso, tarjadas de preto]. Geralmente, essas são pessoas de seu ambiente (por exemplo, familiares, amigos ou colegas) sobre as quais a Stasi também coletou informações. O direito de acesso é limitado às pessoas às quais as informações estão relacionadas. As informações tarjadas de preto podem conter palavras isoladas ou passagens de texto. Páginas com informações sobre indivíduos não relacionados não serão divulgadas. No caso de uma visita aos arquivos, essas páginas seriam cobertas.

A anonimização é necessária para garantir os interesses das outras pessoas envolvidas. Evidentemente, todas as informações relativas à sua pessoa foram disponibilizadas nas cópias.

Peço sua compreensão para a qualidade parcialmente ruim das cópias. A causa disso é o mau estado dos documentos originais.

A senhora tem o direito de usar as cópias dentro dos limites da lei. Se pretende publicar informações pessoais dos arquivos da Stasi, favor observar o § 32, inciso III, da Lei dos Documentos da Stasi.

Dessa vez minha correspondente não era Frau G., mas Frau K., que me enviou informações pormenorizadas sobre o material que juntou. Não considero justo mencionar o nome das funcionárias do BSTU, que não me autorizaram a fazê-lo, nem a verdadeira identidade das pessoas citadas nos documentos, seja porque já morreram, seja porque sei que não gostariam que isso ocorresse. Além disso, o parágrafo da Lei dos Documentos da Stasi mencionado por Frau K. diz que só podem ser publicadas informações sobre as pessoas citadas nos documentos: a) se essas informações já se tornaram públicas; b) se a pessoa em referência foi colaboradora da Stasi (contanto que suas atividades no serviço secreto tenham ocorrido depois de ela fazer 18 anos) ou foi favorecida pela Stasi; c) se se trata de personalidade que exerça função ou cargo público; d) se a pessoa citada autorizou a publicação; e) se a informação se refere a uma pessoa que morreu há mais de trinta anos (podendo esse prazo ser reduzido para dez anos, caso a citação seja feita em trabalho acadêmico) etc.

Frau K. explicou ainda o significado das principais abreviaturas dos documentos. O terrível e risível mundo da Stasi (e da RDA, em geral) era feito de abreviaturas, que estavam tão inseridas na vida cotidiana e de todos, que eu, agora, me pego rindo sozinha, ao recordar de algumas delas. O BSTU chegou a publicar um glossário a respeito, infelizmente esgotado, com mais de quatrocentas páginas.

Os documentos enviados também fornecem detalhes sobre cada departamento onde os registros foram produzidos. Aquele que mais me chamou atenção não deveria ser exatamente uma surpresa: “Documentos do Departamento M [Controle Postal] da BV [Administração Distrital], de Leipzig.” Ou seja, dos Correios.

Por fim, a correspondência diz:

A pesquisa revelou informações sobre a senhora como terceira pessoa [ou seja, não como alvo principal da investigação da Stasi], no sentido do § 6, inciso VII, da Lei dos Documentos da Stasi, em documentos sobre outras pessoas. Cópias das páginas que contêm informações sobre a senhora também estão anexadas a esta comunicação.

Gostaria de ressaltar que essas informações se referem aos documentos do Serviço de Segurança do Estado que foram indexados até o momento.

Uma vez que a catalogação dos arquivos está agora bem avançada, presumo que nenhum outro documento sobre a senhora será encontrado no futuro.

 

Fico imaginando o volume de documentos que essa equipe teve de vencer ao longo dos últimos trinta anos para que o trabalho agora seja considerado avançado, mesmo havendo 2 305 sacos de material que provavelmente nunca será indexado, já que estão deteriorados pelo tempo.

Imagino também o desânimo do escritor e dramaturgo Christoph Hein e de sua mulher – possivelmente o casal que inspirou os personagens de A Vida dos Outros – ao se verem diante de um carrinho lotado de pastas com os registros minuciosos de suas vidas nos anos da RDA, inclusive a transcrição deste diálogo gravado durante um café da manhã, no tempo que ambos eram estudantes em Leipzig:

– Você já estudou para a prova de hoje?

– Ainda não.

Segundo Hein, tentar dar conta de toda aquela documentação seria desperdiçar um precioso tempo de vida – e para quê? É o equivalente a passar meses lendo literatura de quinta categoria e, pior, sobre si mesmo.

Há outras coisas que imagino, como o entusiasmo do historiador britânico Timothy Garton Ash – que foi estudante pesquisador em Berlim Oriental nos anos 1970 e um dos primeiros a requerer acesso aos registros da Stasi a seu respeito –, ao se debruçar sobre as 315 páginas de seu dossiê, menos por interesse pessoal que acadêmico, experiência narrada no mais incrível livro sobre os arquivos, The File: A Personal History.

E imagino ainda a surpresa da escritora Christa Wolf ao consultar as 42 pastas de documentos a seu respeito, como vítima da Stasi, e constatar que ela mesma tinha material catalogado como informante do serviço secreto na juventude. Ela afirmou ter se esquecido de que um dia fora convidada a se tornar uma espiã, mas assegurou nunca ter colaborado com a Stasi. “De repente, nada do que fiz valia mais”, escreveu Wolf, importante voz da oposição ao regime autoritário da RDA, em Umbrüche und Wendezeiten (Rupturas e tempos de virada).

Como não faço parte dessa turma da pesada, eu bem sabia que aquele envelope poderia ser bombástico para mim, mas não passaria de uma bombinha de nada, um mero estalo de festa de São João, para os outros.

Folheei o dossiê a meu respeito e, em um rastreamento superficial, me pareceu que eu não tinha motivo para surpresas nem grandes decepções. A euforia inicial deu lugar ao alívio. Meus amigos da Alemanha Oriental, no fim das contas, não ganharam papéis de antagonistas naqueles velhos documentos. Por mais que os trechos enegrecidos me privassem das citações nominais (embora não me impedissem de deduzir o que descrevem), fiquei contente por não haver pistas de que Klaus Schuhmann, professor de literatura do século XX na Universidade Karl Marx (hoje novamente chamada Universidade de Leipzig) e meu querido orientador, que morreu em março de 2020, ou qualquer outro professor tivesse fornecido informações a meu respeito à Stasi.

As tarjas tampouco me fizeram supor que, por trás delas, estivessem os nomes de meus colegas de turma. Cheguei a desconfiar de um ou outro, na época, mas não teria gostado de ver naqueles documentos os nomes deles, sobretudo o de meu melhor amigo na universidade: o português Enéas,[1] que a Stasi abordou nos últimos meses de existência da RDA para que ele se juntasse ao seu quadro de informantes.

Comunista, Enéas não tolerava tudo aquilo que a Stasi fazia e conservava o bom humor quando lhe cabia emitir opiniões a respeito, entre amigos. Era ótimo aluno e, como eu, muito ligado aos livros e às livrarias, aonde íamos diariamente, nos intervalos das aulas. Um dia, nós nos cruzamos no mercado. Enéas estava acompanhado de dois alemães mal-encarados e fez que não me conhecia, passando reto. Depois, ele me contou que havia sido flagrado “tomando emprestados” uns maços de cigarro na loja. O que ele não disse – e eu só soube recentemente, por um amigo comum – foi que, para não ser preso pelo delito cometido, passou a ser coagido pela Stasi a se tornar um espião (a “troca de favores” é suposição minha). O serviço secreto teria insistido em suas abordagens até as vésperas da queda do Muro, quando meu amigo português não precisou mais inventar subterfúgios. Enéas, com quem mantive contato esporádico depois disso, se suicidou em 2016, na Alemanha, deixando para os amigos a boa lembrança de tê-lo conhecido e o enigma em torno de sua morte. Ele resistiu à Stasi, mas não aos verdadeiros mistérios da vida.

 

Currículo:

Meu nome é Cláudia de Holanda Cavalcanti. Nasci no Brasil, filha de Cláudio e Magnólia. De 1970 a 1980 frequentei a escola até terminar o segundo grau (Abitur).[2] Em seguida estudei dois anos de jornalismo. Em 1983 trabalhei numa editora e escrevi resenhas. Cheguei na RDA em setembro de 1984 para estudar germanística.

Leipzig, 10/9/1984.

Não sei o que mais poderia ter escrito com poucas aulas de alemão, nem o que mais a menina de 20 anos que eu era poderia dizer a respeito de si mesma, nessas condições, ao ser solicitada a escrever um pequeno texto autobiográfico, suposto exercício no idioma. E, nem se fosse capaz, eu teria descrito o que havia aprontado em duas décadas, sabendo de antemão que minha história não caberia na cabeça dos professores do Herder-Institut, a escola de alemão da Alemanha Oriental (contraponto ao Goethe-Institut, da Alemanha Ocidental). Era essa escola que todos os alunos estrangeiros frequentavam durante um ano, antes de começar a faculdade.

Uma das professoras do Herder-Institut, a já quase aposentada Frau M., sempre me lembrava, do gestual ao figurino, uma preceptora de filmes nazistas (“Fräulein Cavalcanti, a aula começa às 7h30, e não às 7h32”, disse ela, no único dia em que cheguei atrasada). Mas era uma mulher educada, até compreensiva, e por vezes seu olhar chegou a me comunicar certo afeto. Suponho que ela tenha perdido parte de sua juventude para a guerra e, depois, entregue a vida adulta a um ideal – o socialismo – que veria ruir num futuro próximo. Ou que fingia ter esse ideal, como tantos faziam, apenas para sobreviver sem muitos aborrecimentos.

Nunca esperei reencontrar aquele “currículo” rasinho e ingênuo, que nem me lembrava de ter escrito – mas ali estava minha caligrafia juvenil – e que ficou guardado durante décadas na sede da Stasi em Leipzig. Não deixa de ser chocante saber que até aquela bobagem tivesse interesse à maldade gratuita do serviço secreto. Mas é essa fotocópia que me proporciona a lembrança hoje apaziguada de Frau M., que se transformou para mim, de carrasca sempre vestida de cinza, em alguém que a ditadura socialista obrigava a entregar à Stasi os exercícios de alemão de seus alunos. Sim, Frau M. foi muito mais vítima do que eu.

Também reconheci minha caligrafia e o alemão agora menos titubeante na fotocópia em papel tamanho A3 (o dobro de um A4, tipo ofício) de uma carta escrita por mim quatro anos mais tarde, em 27 de dezembro de 1988, para um conhecido de Munique, casado com uma pernambucana. Deve ter sido a única carta que enviei a ele. Na mensagem muito breve, agradeci um pacote que ele me enviara com lembranças de Natal (os ocidentais costumavam fazer essas remessas para os parentes do Leste, com produtos que não havia na RDA). Estiquei o assunto falando de minha mãe (que o conhecia) e, por fim, disse que esperava encontrá-lo no ano seguinte no Recife, para onde eu queria ir depois de formada, pois já estava “de saco cheio” da Alemanha, como escrevi. Terminei desejando-lhe tudo de bom em 1989.

Não é agradável ter uma correspondência interceptada a troco de nada, ou só porque o destinatário morava no lado inimigo, mas senti uma vergonha retroativa ao imaginar o espião epistolar abrindo a carta e lendo que eu estava “de saco cheio” de seu país, antes de fotografá-la e voltar a fechá-la cuidadosamente. Afinal, eu estava em Leipzig como convidada, estudava à custa do governo para o qual ele trabalhava, ninguém me obrigava a ficar lá e, ainda assim, eu era mal-agradecida.

A bisbilhotagem postal poderia ter me rendido problemas sérios alguns anos antes, em 1985, quando me prontifiquei a ser intermediária entre meu namorado, Stefan, e seu amigo Jörg, que estivera preso por requerer passaporte para o Ocidente. Um ano depois, Jörg foi expulso do país e saiu diretamente da prisão para a Alemanha Ocidental, sem poder se despedir da família. Um dia, Stefan me pediu para preencher o envelope de uma carta sua para o amigo, acrescentando meu nome como remetente. Ele achava que, assim, a correspondência não seria interceptada. O nome do destinatário, porém, foi suficiente para que a Stasi flagrasse a carta e Stefan fosse desmascarado, como descobri agora.

São duas páginas manuscritas relatando o caso. Em uma delas, um bom espaço está coberto por uma folha, sobreposta na hora da fotocópia, com os dizeres: “Anonimizado de acordo com a Lei dos Documentos da Stasi em proteção dos interesses de outras pessoas.” O espião, antes de assinar Hoppe (seu sobrenome verdadeiro), escreve: “Providências a serem tomadas: […] Averiguação do dossiê de C. (eventualmente adequada para abordagem).” Ou seja, a Stasi pensou em me ter como informante, possivelmente me chantageando por manter contato com uma pessoa banida pelo Estado – mas essa abordagem nunca aconteceu.

O episódio fez com que as cartas que Jörg escreveu a Stefan, mas indicando a mim como destinatária, também fossem interceptadas. Duas delas fazem parte do meu dossiê. O mais ridículo de tudo isso é que são cartas sobre assuntos banais, em que Jörg conta sobre um carro que tinha acabado de adquirir, um disco que comprou, a viagem que estava programando para as férias. A Stasi de fato precisava de muitos colaboradores para conseguir dar conta de tantos assuntos, de resto, inúteis.

 

Uma das viagens de Jörg depois de chegar à Alemanha Ocidental foi a Praga, para reencontrar, no feriado de 1º de maio de 1986, sua família e os melhores amigos, vindos da Alemanha Oriental. Era em Praga que as famílias e os amigos se reuniam, tanto por causa da localização favorável quanto por ser a então Tchecoslováquia um dos raros países que os alemães orientais podiam visitar. Passar dias de primavera em Praga era sempre tentador.

Acompanhei meu namorado naquele encontro com Jörg. E todos nós fomos acompanhados pela Stasi, como mostram algumas páginas de meu dossiê, indicando inclusive o número do quarto do hotel onde nos hospedamos. Para tanto, o serviço secreto contava com a colaboração de seus colegas tchecos (há um documento produzido em Praga). Aqueles dias ensolarados convidavam a sair às ruas e passear pelas áreas verdes da cidade, o que fazíamos, contentes, ignorando que um grave acidente nuclear havia ocorrido em Chernobil, na Ucrânia, uma semana antes, em 26 de abril (pois a notícia fora censurada na RDA), e que a Tchecoslováquia era um dos países mais atingidos pela poeira radioativa vinda da usina nuclear.

Perdi a conta das vezes que fomos a Praga, durante os cinco anos de minha estada em Leipzig. A primeira foi em 1984, depois do Natal, para passar o Ano-Novo. Eu havia comunicado minha saída da Alemanha Oriental às autoridades, inclusive para que pudesse voltar, mas ninguém me dissera que, como brasileira, era preciso também ter o visto tchecoslovaco. Foi assim que, chegando à fronteira, de trem, ao ser abordada pelos temidos guardas fui convidada a sair do vagão. Passava da meia-noite. Deixaram a mim e Stefan esperando num banco frio de uma antessala sem aquecimento por umas duas horas, até que um carro da polícia da fronteira nos levou a Praga, onde poderíamos pegar um trem para Berlim, em busca do visto.

Essa viagem, como várias outras, está documentada e será eternizada no Arquivo Nacional alemão. Nas pastas, há detalhes inclusive sobre o que levávamos na bagagem, quantas coroas tchecas tínhamos na carteira, o que respondíamos quando interpelados, com descrições como: “S. manteve-se calmo e afirmou que De Hollanda [sic] era sua namorada.” Também está documentada uma viagem que Stefan e eu fizemos à Hungria, dessa vez acompanhados de dois brasileiros cujos nomes, de tão mal transcritos, não consegui identificar.

As várias fotocópias referentes às viagens a Praga – a maioria com dados sem qualquer utilidade imaginável produzidos na fronteira (com registro na ida ou na volta), quase todas encontradas no dossiê de meu namorado, mas com referências a mim – me proporcionam lembranças felizes de viagens a dois. Ou com amigos, como Manuela Sambo e Daniel Sambo-Richter, que seguem unidos em Berlim, depois de contemplados com toda sorte de interferência estatal por se manterem juntos. As fichas me proporcionam até a boa lembrança de uma Praga que não existe mais, posto que agora submetida ao turismo voraz das multidões e tendo como atração principal Franz Kafka (antes solenemente ignorado), mesmo que somente uma pequena parte dos visitantes seja capaz de citar o título de um livro dele.

As folhas de meu dossiê (em cuja margem direita superior quase sempre se lê streng geheim, ou seja, top secret, à la James Bond), que muito me fazem lembrar e pouco têm a me dizer, também explicam as longas esperas a que me submetiam, todas as vezes que o trem parava na fronteira, entre as cidades de Bad Schandau e Děčín. Ao partirmos de Leipzig já sonados, rumo a Praga, no meio da madrugada éramos acordados com os gritos dos guardas da fronteira que anunciavam, acendendo as luzes do vagão, sem qualquer sutileza: Passkontrolle!, o que queria dizer: checagem dos passaportes, dos vistos, das bagagens consideradas suspeitas, dos rostos apreensivos. Uma estratégia era sempre fingir um cochilo, o que podia indicar despreocupação, mas também pouco caso com relação à presença das autoridades. Era preciso ser certeiro nos gestos, algo que fui aprendendo aos poucos, com a experiência.

Ao depararem com um passaporte sui generis como o brasileiro, os policiais da fronteira faziam algumas perguntas, saíam com o documento do trem, para voltarem um tempo depois. Era o momento em que, numa saleta mal aquecida e mal iluminada, perdida na escuridão que delimitava dois países socialistas, eram preenchidas as fichinhas à máquina de escrever ou à mão, que depois, muito depois, encheriam os sacos e pastas do Arquivo Nacional alemão. É o que me permito imaginar, não sem motivo.

 

Assim como estranho não receber de volta, com o dossiê, várias cartas enviadas ou recebidas do exterior, inclusive algumas que escrevi à minha mãe e nunca chegaram ao seu destino, estranho a falta de registro de minhas viagens ao Ocidente e ao outro lado de Berlim, entre cuja população estavam infiltrados muitos informantes da Stasi. Em relação às cartas extraviadas para minha mãe, simplesmente passei a enviá-las a uma amiga dela no Recife, que a avisava sempre que chegavam notícias minhas. Fiz isso durante meses, até que voltei a mandar a correspondência para o endereço habitual. Quanto às viagens, lembro-me de uma em especial que achei que seria devidamente registrada pelo serviço secreto alemão. Mas não foi.

Em setembro de 1986, fui a Paris entrevistar Jorge Amado, velho amigo de minha família e muito admirado na RDA, para um trabalho na universidade, orientado por Klaus Schuhmann. O trabalho tratava da relação de amizade entre Amado e a escritora alemã-oriental Anna Seghers e de um livro dela, Travessia: Uma História de Amor, que tinha o Brasil como cenário. Sabendo que poderiam criar problemas na fronteira no meu retorno, com o material da conversa – fitas K-7 –, Schuhmann pediu ao diretor da faculdade um documento que atestasse meus objetivos acadêmicos. O papel A5 (metade de uma folha tipo ofício) timbrado, conservado por mim até hoje, diz o seguinte:

Declaração: Claudia Cavalanti [sic] é estudante do Departamento de Germanística e Estudos Literários. Ela foi designada para conversas com o escritor brasileiro Jorge Amado em Paris e está autorizada a transportar documentos acadêmicos e fitas k-7. [Seguem-se a assinatura e o carimbo do diretor, o professor doutor Claus Träger, e a data: 23 de setembro de 1986.]

Declarações, certificados e sobretudo autorizações são os subgêneros preferidos dessa corrente literária fundada pela burocracia do socialismo real. O escritor alemão Volker Braun – um autor eminente da RDA e um dos principais da língua alemã hoje –, no apêndice, publicado em 1998, de seu livro Unvollendete Geschichte (História inacabada, 1977), alerta que esses fragmentos de “literatura oficial”, escondidos pela Stasi até que fosse possível ter acesso a eles, a partir de 1991, deveriam ser manuseados “como no tempo em que foram escritos: com a ponta dos dedos. Eles são os excrementos do traseiro estatal, produzidos infamemente para justificar a vigilância e a degradação. Citá-los significa perpetuar essa degradação e negociar os conhecimentos obscuros, trancafiados justificadamente, como sendo saber real”.

Das muitas autorizações que precisei pedir naquele período, a mais importante foi solicitada por Stefan, meu namorado. O requerimento para ele se casar comigo foi pedido em maio de 1989, como me ajuda a lembrar o dossiê, com detalhes até então por mim desconhecidos, como a necessária aquiescência do departamento onde ele trabalhava na universidade. O casamento, mais do que um desejo mútuo, àquela altura tinha por objetivo facilitar a saída de Stefan da RDA. Não imaginávamos que, meses depois, o pedido se tornaria inócuo, com o fim da Guerra Fria, e, mais tarde, o retrato de uma história de todo acabada.

 

Depois da mudança de apartamento em São Paulo, Arthur e eu passamos ao momento mais difícil de ajuste à nova geografia doméstica: dispor os livros nas estantes, juntando a minha coleção e a dele, e tentando dar ao conjunto um sentido único e particular, mas ao mesmo tempo lógico, sem deixar de levar em conta as preferências literárias de um e outro. Ao arrumar os volumes, percebo como estive envolvida com o tema da queda do Muro de Berlim desde que resolvi solicitar meu dossiê, há quase dois anos. Reuni uma grande quantidade de livros a respeito desse tema na estante principal e uma pilha de impressos, que acomodei no armário ao lado. Ali ficará também o envelope com o dossiê da Stasi, fragmentos de uma vida acompanhada por intrusos.

Dias antes de eu me mudar, fui até a banca de Fernando para me despedir. Ele mantém seu negócio naquela esquina há vinte anos, mas me contou que agora precisará sair de lá, expulso da calçada por uma incorporadora que vai construir um arranha-céu no lugar do predinho e das casas que existem no local.

Também fui à banca para cumprir uma promessa: contar que eu recebera os documentos da Stasi. “E então, surpresas?”, Fernando quis saber. “Ah, não muitas, e pelo jeito ninguém conhecido me espionou de verdade: monitoraram minhas viagens a Praga, anotando até o quarto de hotel em que fiquei, interceptaram algumas cartas, guardaram alguns documentos da universidade…”, tentei enumerar, resumindo bem toda a história, por causa do incômodo que é conversar de máscara, em pleno verão da pandemia. “Nossa, parece livro do Ken Follett”, disse ele, sorrindo, e eu sei que sim – que ele sorria.

 


Versão reduzida e adaptada de um capítulo do livro A Vida dos Outros e a Minha, que a editora Cultura e Barbárie lança neste mês.

[1] A fim de preservar a intimidade de algumas pessoas, recorro, para designá-las, a prenomes fictícios (Enéas, Stefan e Jörg).

[2] Abitur é o certificado de conclusão de ensino secundário na Alemanha, que permite o ingresso em universidades.