Rema é uma mallu, gíria para os nascidos em Kerala, estado no sudoeste da Índia, parte da antiga rota das especiarias. Aqui encontrou semelhanças com palavras e comidas de sua terra FOTO: ACERVO PESSOAL
Uma mallu no Brasil
Jornalista indiana vem pesquisar saúde pública e encontra nossos males e nossas delícias
Rema Nagarajan | Edição 74, Novembro 2012
REMA NAGARAJAN é uma indiana de 40 anos, longos cabelos negros, o contorno dos olhos realçados a lápis e o nariz aquilino adornado por um brinquinho. Jornalista do Times of India, veio ao Brasil como bolsista da Fundação Nieman, da Universidade Harvard, para estudar in loco o SUS (Sistema Único de Saúde) e o programa Bolsa Família. É autora de uma série de reportagens sobre o suborno de médicos indianos por companhias farmacêuticas. Suas revelações contribuíram para a aprovação de uma lei que proíbe os médicos de receber presentes dessas empresas. Em conversas com autoridades públicas de saúde e cientistas, nas comunidades ribeirinhas do Amazonas, em favelas do Rio e de São Paulo, Rema conheceu o país mais do que muitos brasileiros. Identificou muitas semelhanças e diferenças entre Índia e Brasil. Ficou fascinada com o gosto da tapioca e perguntou: “Por que não temos isso lá?”
RIO DE JANEIRO, DOMINGO, 22 DE JULHO_Eu estava empolgada para voltar ao Rio. Já tinha conhecido a cidade no início de julho, quando a visitei com primos que moram em São Paulo e com a minha mãe, que veio ao Brasil em férias. Agora era outra história: eu exploraria o Rio de Janeiro por minha conta e risco. Estava insegura ao tomar o táxi no aeroporto rumo ao quarto que aluguei pelo site Airbnb, mas deu tudo certo e cheguei rápido. O lugar era arejado e ensolarado. A proprietária, Viviane Ponti, falava um inglês impecável. Ela me levou para comer galetos e linguiças deliciosos. De lá, fomos a um shopping onde vi tapiocas tão apetitosas que fiquei com água na boca, mesmo de barriga cheia. Achei fascinante o modo como a farinha, quando aquecida, se funde para formar uma espécie de panqueca.
Na volta para casa, escrevi e-mails em busca de entrevistas. A Fundação Oswaldo Cruz é meu foco no Rio. Decidi estudar o Sistema Único de Saúde e o Bolsa Família porque achei que assim poderia contribuir para o debate sobre a melhoria da rede de proteção social na Índia. Embora tenha um PIB per capita bem maior que o da Índia e 85% de sua população seja urbana (na Índia 70% ainda vivem no campo), o Brasil é, como a Índia, um país em desenvolvimento e democrático. Além disso, tem melhorado seus índices de saúde e reduzido a pobreza.
SEGUNDA, 23 DE JULHO_Da janela do meu quarto dá para ver o Cristo Redentor e, da cozinha do apartamento, vejo o Pão de Açúcar e um pouco da Baía de Guanabara enquanto preparo meu chá. Não consegui marcar nenhuma entrevista para hoje, o que me deixou um pouco aflita. Viviane sugeriu que fôssemos a uma feira livre. A chance de comer tapioca me atraiu. São tantas opções de recheios doces e salgados… Só resisti porque ela me falou sobre uma barraquinha de pastel no fim da feira e decidi esperar. Valeu a pena: o pastel de carne seca estava delicioso. Logo que terminei a última mordida, vimos uma barraquinha de tapioca. Minha força de vontade ruiu: eu tinha que comer uma! Pedi com recheio de coco e leite condensado. Divina! Por que não temos isso na Índia?
TERÇA-FEIRA, 24 DE JULHO_Com um mapa em mãos, fui até a estação Botafogo do metrô encontrar Pedro Costa, da ONG ActionAid, que me levaria para visitar famílias atendidas pelo Bolsa Família. Pedro foi pontual, desmentindo o que eu ouvira sobre os habituais atrasos dos cariocas.
Pegamos um táxi e fomos direto para a Cidade de Deus. Depois de tanto ouvir falar das favelas cariocas eu conheceria uma. Minha primeira reação foi pensar que, se isso era uma favela, então as coisas não são tão ruins assim. A Cidade de Deus é muito semelhante aos bairros populares que em Nova Delhi são chamados de colônias ilegais. Visitamos o posto de saúde local. Achei parecido com qualquer outro prédio do governo, inclusive os da Índia: feio e com uma arquitetura quadradona. Muita gente na fila, esperando para ser atendida.
Saindo do posto, entramos na favela para visitar as famílias. Uma após outra, elas contavam histórias de como é complicado viver quando se é pobre. Mas o que mais me impressionou foi o fato de as mulheres terem filhos muito cedo e os pais dessas crianças serem na maioria ausentes. Avós na casa dos 30 anos, com filhas de 16 que já são mães. Pudera, com a Igreja contra o aborto. As mulheres usavam roupas justas e curtas, sobretudo as adolescentes. Até meninas tinham uma aparência erotizada. Isso me pareceu um problema, mas talvez seja porque eu venho da Índia, que é tão conservadora.
Da Cidade de Deus tive que correr para minha primeira visita à sede da Fiocruz. Vi tantas fotos do castelo em estilo mourisco pela internet que até me emocionei ao chegar perto. Pena que as cúpulas das torres estavam cobertas para restauração. Lá me levaram para um tour pelo campus, e reparei que ao lado do castelo havia uma favela enorme [Manguinhos] na beira de um canal de esgoto imundo. Muito pior que a Cidade de Deus.
QUINTA-FEIRA, 26 DE JULHO_Voltei à Fiocruz e tive um encontro incrível com Paulo Buss, diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde. Buss admitiu que a cooperação entre a Índia e o Brasil é complicada, já que os dois países são bastante diferentes.
Depois corri para o laboratório Bio-Manguinhos – unidade produtora de imunobiológicos da Fiocruz – para encontrar seu ex-diretor, Akira Homma, e Andre Totino, gerente de novos negócios e marketing. Homma foi um dos profissionais que conseguiram transformar o Brasil em um país autossuficiente em vacinas. Logo que fomos apresentados, Totino apertou minha mão. Foi então que Homma avisou que os indianos não gostam de contato físico, e por isso costumam se cumprimentar com um namastê, unindo as próprias mãos na altura do peito e fazendo uma pequena reverência. Ao ouvir isso, Totino puxou a mão de volta como se tivesse sido picado por um mosquito, e eu quase caí na gargalhada.
É verdade que nós não somos muito afeitos ao contato físico, mas isso não significa que a gente não possa dar um aperto de mão. Além disso, eu já estava me acostumando ao jeito brasileiro de cumprimentar com beijos. No começo foi um pouco esquisito – nunca sabia ao certo quais eram as regras. Um beijo ou dois? Eu devia de fato beijar a pessoa ou apenas oferecer minha bochecha? Ler signos culturais pode ser uma tarefa bastante desafiadora.
Do Bio-Manguinhos, corri novamente para encontrar Carlos Morel, ex-presidente da Fiocruz e coordenador científico do seu Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde.Minha entrevista estava agendada para as 15 horas, mas só cheguei por volta das 15h20, morta de vergonha. Fica parecendo que sou a típica indiana sem nenhum respeito pela pontualidade. O doutor Morel foi fantástico comigo. Fico impressionada com esses tecnocratas de alto escalão que parecem comprometidos com o trabalho e têm uma visão muito clara para o seu país. Ele fez questão de ir buscar café para mim em vez de pedir a algum empregado, como é tão frequente no caso dos altos funcionários do governo indiano.
Em seguida, visitei o escritório de Ana Vieira, superintendente de Renda de Cidadania, do estado do Rio. Eu queria entender melhor o funcionamento do Bolsa Família e Ana falou sem parar por três horas. Sua crença no programa e na diferença que ele faz na vida das pessoas pareceu inabalável. Se eu não tivesse compromisso, acho que teríamos conversado o resto do dia. Mas saí de lá correndo porque tinha sido convidada para jantar na casa de Maria Inês Couto Oliveira, uma médica do SUS que foi membro da IBFAN (The International Baby Food Action Network), entidade que promove o aleitamento materno.
Ela e o marido prepararam um jantar delicioso, cheio de verduras e legumes – foi a refeição mais rica em vegetais que eu comi desde que cheguei ao Brasil. Contei para Inês que visitaria a Amazônia e ela resolveu me ensinar a dormir em redes, coisa que eu teria de fazer em minha viagem de barco na região. Fiquei comovida com sua preocupação.
SÁBADO, 28 DE JULHO_Conferi o mapa do metrô na internet e descobri como chegar até Ipanema. Precisava encontrar a jornalista Regina Zappa na entrada da estação às 10h30. Ela foi bolsista da Fundação Nieman em 1995. Regina e o marido me levaram para um longo passeio pela orla e depois pela impressionante Floresta da Tijuca, toda plantada pelo homem. Encontramos outra ex-bolsista da Nieman, da turma de 2006, e fomos para o BarUrca, famoso por suas empadas e pastéis. Sentamos no murinho baixo à beira da Baía de Guanabara, bebemos cerveja e comemos uma empada atrás da outra. Um calor gostoso do sol, brisa fresca do mar, comida deliciosa e amigos. O que mais eu podia querer? As empadinhas eram meu novo amor.
SEGUNDA-FEIRA, 30 DE JULHO_Esse era o dia em que eu me encontraria com uma pessoa sobre a qual tinha lido há cerca de quatro anos, ainda em Nova Delhi, sem nunca imaginar que um dia estaríamos juntas: a doutora Vera Cordeiro, da ONG Saúde Criança. No fim dos anos 80, Vera decidiu fazer algo pelas crianças que não conseguiam sair do ciclo de internações e reinternações no Hospital da Lagoa, onde ela trabalhava. O problema é que, depois de receberem alta, as crianças não tinham em casa uma estrutura mínima que possibilitasse sua recuperação.
Tivemos uma conversa de mais de três horas no escritório dela, no Parque Lage. Vera estava com uma de suas sucessoras, Cristiana Velloso, gerente operacional do Saúde Criança. Elas chamaram até a sala duas mães assistidas pelo programa para que me contassem sua experiência. O entusiasmo de Vera é contagiante. Ela tem mais de 60 anos e uma energia de alguém com metade dessa idade.
Depois da entrevista, enquanto caminhávamos para o restaurante do Parque Lage, pude admirar essa casa incrível. O imóvel pertencia a um empresário casado com uma cantora de ópera. Tem uma entrada majestosa, um jardim com árvores gigantescas e um pátio interno com uma piscina que reflete os balcões da mansão. O Corcovado, com o Cristo no topo, fica atrás do terreno: um cenário deslumbrante.
TERÇA-FEIRA, 31 DE JULHO_Fui conversar com Samira Guachalla, que eu conheci na Fiocruz, no escritório do doutor Morel. Nos encontramos no prédio da Fundação Getulio Vargas e caminhamos até um restaurante próximo. Ela está trabalhando em uma área nova que lida com acordos de partilha de risco na descoberta de novas drogas. Muito interessante. Às vezes me pergunto se sou muito nerd por me entusiasmar com esse tipo de coisa. Samira estava animada porque vou visitar Salvador, sua cidade natal, e prometeu me colocar em contato com Sue Menezes, uma amiga dela que mora lá. Como e quando eu poderei retribuir a gentileza de toda essa gente?
Corri de volta para casa para me trocar. Caí na bobagem de vestir um sari – não pergunte o porquê, mas sinto falta de usar saris. Uma amiga passou para me buscar e fomos até o Centro do Rio, num lugar chamado Trapiche Gamboa. Incrível! Era um armazém colonial em ruínas que foi reformado. Uma mulher de voz poderosa cantava um samba. Como sempre, não resisti e saí experimentando tudo que me aparecia de novo. Bebi um drinque feito de cachaça e leite de coco. Forte e cremoso demais. Para acompanhar, pedimos um escondidinho de carne seca. Estou em lua de mel com a carne seca. Na Índia estamos acostumados a comer carne muito bem cozida, e por isso não gosto de pedir bifes por aqui. Eles costumam vir malpassados (quando não sangram no prato). O escondidinho me parece uma invenção perfeita. Seria legal ensinar para as pessoas de Kerala o que elas estão perdendo ao servirem mandioca apenas assada ou cozida.
Mandioca é uma das coisas que nós de Kerala herdamos dos portugueses de passagem por lá depois de Vasco da Gama. Quando ele desembarcou em Kerala, em 1498, a Europa buscava uma rota marítima para chegar às especiarias. Séculos depois, por volta de 1800, os ingleses já tinham expulsado os portugueses de quase todo o território indiano, exceto de Goa. Mesmo assim, frutas e vegetais circularam entre Kerala e as colônias portuguesas por mais de 300 anos. Dizem que foram os portugueses que levaram para a Índia a pimenta malagueta, sem a qual os indianos não saberiam viver. Palavras portuguesas como “mesa” e “janela” foram incorporadas à linguagem de Kerala, o malayalam. Para um mallu – gíria indiana para os nativos de Kerala –, o Brasil é uma terra cheia de ecos familiares, especialmente nos sabores.
SÃO PAULO, SEXTA-FEIRA, 3 DE AGOSTO_Fiz uma visita pelo exuberante campus do Instituto Butantan. O lugar parece com vários outros institutos similares na Índia, exceto pelo fato de que lá eles estão caindo aos pedaços, enquanto o Butantan está em ampliação. Foi um dia de sorte: na porta do escritório do professor Jorge Kalil, encontrei o doutor Isaías Raw, ex-presidente do instituto e o grande responsável pelo Butantan ser o que é hoje. Aos 85 anos, esse senhor de língua afiada já havia criticado a Índia por não vacinar todas as suas crianças e a indústria farmacêutica por suas estratégias ardilosas. “Lá na Organização Mundial da Saúde me chamam de falastrão”, ele me disse, visivelmente satisfeito com o apelido.
Na Índia, só metade da população recebe as vacinas básicas. Temos um sistema de saúde público, mas o setor privado é muito maior e a saúde não é considerada um direito do cidadão. A infraestrutura do sistema público indiano não acompanhou o crescimento da demanda. Nos anos 80, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial pressionaram o governo para que cortasse investimentos e cobrasse taxas dos usuários. Tratamentos 100% gratuitos não existem mais. O atendimento no serviço público custa bem menos do que na rede privada, mas, mesmo assim, muitos não podem pagar. Hoje o governo tenta de novo montar um sistema de saúde universal, como era o objetivo após a independência do país, em 1947.
TERÇA-FEIRA, 7 DE AGOSTO_Visitei um posto de saúde próximo ao Butantan. Parecia muito simples, mas limpo. O lugar é organizado, com uma recepção que registra os pacientes logo na entrada e os encaminha para o médico, uma farmácia com remédios gratuitos, um assistente social e até uma terapeuta que orienta mães com dificuldade para amamentar. A doutora Ramya Reddy me mostrou o centro e me apresentou a todos. Ela é de origem indiana, e seus pais vieram para o Brasil no fim dos anos 80. Já estou me acostumando à reação das pessoas quando descobrem que eu vim lá da Índia para conhecer o Brasil: “Que legal!”
Saímos para conhecer as redondezas, ciceroneados por uma ex-agente de saúde. A região é dividida em cinco áreas, com um médico responsável por cada uma. Há casas ricas e pobres, mas é claro que os ricos não deixam os agentes de saúde entrar, exceto em campanhas de controle da dengue ou em situações específicas. É a mesma história na Índia quando os funcionários do Censo visitam as casas dos ricos.
O posto de saúde mantém registros de quantos pacientes da área estão de cama e precisam de visitas regulares. Fiquei impressionada com a intimidade dos médicos e agentes com as famílias que eles atendem. Mas mesmo nesse sistema há atrasos nos tratamentos, já que um centro feito para atender 50 mil pessoas cuida de uma população cerca de três vezes maior.
Percorremos a pé a vizinha favela do Rio Pequeno. Grande parte da favela foi construída em torno de um rio que agora é um esgoto gigante. O lugar é muito úmido, o que causa doenças como a tuberculose. Eu estava enganada: as favelas daqui são tão ruins quanto as da Índia. O fato de terem casas feitas de tijolos não as torna melhores. Pena que eu não pude levar minha câmera fotográfica, já que aquela é uma área dominada por traficantes.
Ao deixar o posto de saúde, fui me encontrar com Eugenio Scannavino Netto, fundador da ONG Projeto Saúde e Alegria, a primeira a equipar barcos e transformá-los em hospitais itinerantes na Amazônia. Eugenio é excêntrico e sonhador, como costumam ser as pessoas que conseguem fazer o que os outros julgam impossível. Falamos sem parar enquanto eu bebia uma caipirinha de maracujá. Gostosa, mas continuo preferindo as de caju ou limão.
QUARTA-FEIRA, 8 DE AGOSTO_Visitei o escritório da ONG Saúde Criança na Santa Casa de São Paulo. Fiquei impressionada com o aspecto de limpeza e eficiência do lugar. Claro que estou comparando o que vejo aqui com hospitais públicos e superlotados da Índia, que são muito piores. Talvez essa comparação não seja das mais justas, visto que a Santa Casa está mais para as alas do All India Institute of Medical Sciences, um dos melhores centros de saúde indianos. Mesmo aqui, porém, os médicos reclamam de salários defasados e da falta de recursos para tratar todos os pacientes. Eles não percebem a sorte que têm por trabalharem em um sistema em que uma pessoa pode entrar em um hospital sem um centavo no bolso e ainda assim ser atendida. Não dá para culpá-los: é sempre difícil valorizar o que já conquistamos.
QUINTA-FEIRA, 9 DE AGOSTO_Fui até a Livraria Cultura e me surpreendi ao ver que o livro River of Smoke [Rio de Fumaça], de Amitav Ghosh, estava sendo exibido com destaque na seção de importados. Depois vi que a livraria também tinha livros de Aravind Adiga. Nunca imaginei que encontraria esses autores indianos por aqui. Quer dizer, quanto a Adiga não estou tão surpresa assim, seus livros são mesmo feitos para agradar… estrangeiros (quase usei o termo “ocidentais”, mas o Brasil, afinal, não é tão ocidental assim).
Eu estava procurando livros de Jorge Amado em inglês. O vendedor me trouxe Gabriela, Cravo e Canela. É o melhor livro dele? Eu precisava de umas dicas. Liguei para Cibele Aldrovandi e ela disse que era, e que a história virou uma novela de televisão muito popular. É isso o que define um livro como bom?
Cibele me convidou para almoçar amanhã num restaurante dos hare krishnas. Fiquei curiosa para saber o que os caras da ISKCON (International Society for Krishna Consciousness) andam fazendo por aqui. Cibele é um exemplo perfeito de como as coisas têm funcionado para mim no Brasil: através de uma rede de relacionamentos. Quando eu ainda estava em Boston, conheci Paulo Rogério, que tem um site dedicado a cobrir assuntos da comunidade negra em Salvador. Paulo, por sua vez, me apresentou a Jaqueline Lima Santos, que estava em Harvard fazendo uma pesquisa sobre hip-hop. Através de Jaqueline cheguei a Cibele, uma antropóloga pesquisadora de arte budista que visitou a Índia várias vezes.
SEXTA-FEIRA, 10 DE AGOSTO_O Gopala Hari é como uma Índia em miniatura. O complexo inclui uma loja de especiarias e dois restaurantes indianos, todos ligados ao movimento Hare Krishna de São Paulo. Cibele contou que já tinha participado de escavações arqueológicas na Índia e falava das danças indianas com reverência. Às vezes você precisa ver seu próprio país pelos olhos de uma pessoa de fora para perceber o quão fantástico ele é.
À tarde tive uma reunião com o secretário de Saúde paulista, doutor Giovanni Cerri. Ele foi muito sincero a respeito dos problemas que afetam o sistema. Apesar de todo o discurso sobre igualdade, a verdade é que os ricos acabam abocanhando mais do que devem da saúde pública. Isso acontece de dois modos: de um lado, eles deduzem despesas médicas particulares de seus impostos. De outro, recorrem ao SUS quando precisam de procedimentos complexos que os planos se recusam a bancar.
MANAUS, SEGUNDA-FEIRA, 13 DE AGOSTO_Cheguei ontem e me hospedei no apartamento de Andreza Andrade, funcionária do Instituto Socioambiental. Ela é meio indígena pelo lado da mãe e luta com afinco pelos direitos dos índios. Hoje acordei com o barulho dos papagaios que voavam ao redor da casa. Olhando da varanda, a paisagem me lembrou Kerala (só faltam os coqueiros). Adoro o clima quente e úmido. Andreza e eu fomos de carro até o centro da cidade. Reparei que as ruas estavam cheias de lixo e de água acumulada. Pareciam mais sujas que as das outras cidades brasileiras, embora não conseguissem competir com a sujeira das ruas indianas.
O escritório de Andreza fica bem perto da praça principal de Manaus, logo depois do Palácio Rio Negro. Ela é bem cuidada e não permite a entrada de veículos. Deixamos nossos notebooks no escritório e caminhamos pelo mercado em direção ao cais. Fiquei fascinada com as frutas da região. Uma delas, o sapoti, também existe na Índia e tenho certeza de que foram os portugueses que levaram para lá porque em Kerala nós o chamamos de sapota.
No cais, o sol forte castigava e nós suávamos em bicas. Finalmente encontramos os rapazes que vendiam bilhetes para a viagem de barco até Santarém. Andreza me disse para escolher um bom quarto no convés de cima, e eu me espantei com o preço: 400 reais! Um segundo depois, o vendedor baixou o preço para 350 reais. Me senti prejudicada por não saber português para barganhar. Tenho certeza de que o bilhete teria custado muito menos a um brasileiro, mas acabei pagando os 350.
TERÇA-FEIRA, 14 DE AGOSTO_Quando chegamos para o meu embarque, o cais estava uma confusão. Um sujeito se materializou do nada para nos guiar. Andreza disse que nós teríamos de pagá-lo. Para trafegar por aquela bagunça até que valia a pena. Além disso, ele carregou minhas coisas até o barco. Pediu 20 reais, mas Andreza disse que era caro demais. Acabei pagando 10.
No barco me levaram até minha “suíte”: uma lata de sardinha com beliches e um banheirinho. Nada de janelas. Fomos logo montar a rede no convés superior do barco, que já estava tomado de gente. Andreza colocou a rede com facilidade enquanto eu olhava. Sem ajuda, eu seria como um cão diante de um coco inteiro, como diz um ditado malayalam. As pessoas me olhavam com curiosidade. Acho que tenho essa cara de quem não se encaixa no ambiente, embora, por outro lado, a minha aparência bem que poderia ser de uma nativa.
Me despedi de Andreza e o barco partiu quase às duas da tarde. Eu saía da cabine quando uma garota me parou e perguntou em inglês se eu era indiana. Assim conheci Adrian e Lígia, um suíço e uma brasileira que se conheceram há dois anos em Viena e decidiram viajar o mundo juntos. Curiosa como sou, enchi os dois de perguntas. A noite caiu revelando um céu de arrepiar, cheio de estrelas que nunca vemos na cidade grande. Adrian me mostrou onde ficava o Cruzeiro do Sul, uma constelação que só aparece neste hemisfério e, portanto, eu nunca veria da Índia.
QUARTA-FEIRA, 15 DE AGOSTO_Na hora do almoço, atracamos em um cais e fiquei fascinada pela maneira como a comida era vendida aos passageiros. Os vendedores usavam garrafas cortadas ao meio e amarradas em bastões para recolher o dinheiro sem que ele fosse soprado pelo vento. Logo abaixo ficavam os pacotinhos de comida, presos em ganchos. A regra era depositar o dinheiro na garrafa e pegar seu pacote, e foi isso que eu fiz. Aproveitei para comprar banana frita, já que a mallu que trago dentro de mim não pode resistir a uma banana.
Na parada em Óbidos, já no Pará, policiais federais entraram no barco para conferir se alguém transportava drogas. Eles estavam fortemente armados. Acho que em todo lugar do mundo a polícia é desprezada pelo cidadão. Dava para sentir o ressentimento misturado com desdém e medo. Ou imaginei coisas? Os passageiros esperavam do lado de fora enquanto a polícia vistoriava as bagagens. Um sujeito alto e sem uniforme conferiu minha suíte. Ele falou comigo em um inglês perfeito. Conferiu meu passaporte, deu uma olhada superficial na minha cabine e saiu me desejando boa viagem. Me pergunto se ele é sempre tão educado assim.
SANTARÉM, QUINTA-FEIRA, 16 DE AGOSTO_ O doutor Fábio Tozzi me buscou às 8 horas no hotel para me levar ao maior hospital da cidade, uma instituição pública com capacidade para 129 leitos. Andamos pela pequena cidade de aparência limpa e familiar. Fico pensando que todas as cidadezinhas dos países em desenvolvimento têm a mesma cara, exceto, é claro, pelos municípios completamente miseráveis do estado de Uttar Pradesh, na Índia.
Fábio arrumou uma van para me levar até o escritório do Projeto Saúde e Alegria. Magnólio de Oliveira, que foi palhaço por 25 anos, me explicou como o grupo usa humor e entretenimento para ensinar às comunidades ribeirinhas os cuidados básicos com a saúde. Lá também conheci Caetano, irmão de Eugenio Scannavino. Ele passou por cima de sua apertada agenda de compromissos para me levar para almoçar. Deixei que escolhesse meu prato e não me arrependi. Começamos com uma cerveja paraense chamada Cerpinha e bolinhos de piracuí com tucupi, um molho amarelo extraído da raiz da mandioca. Delicioso! Como prato principal, um pirarucu defumado com castanha-do-pará e uvas-passas. Se alguém tivesse me dito para misturar peixe com coisas doces, eu teria achado uma péssima ideia, mas a mistura caiu bem.
No fim da tarde, Fábio voltou a me pegar no hotel e fomos de carro até Alter do Chão, a 38 quilômetros de Santarém. Foi uma viagem linda, cercada do verde da floresta. Na casa de Fábio em Alter do Chão, dividi um quarto com uma enfermeira que viajaria com ele para ajudá-lo a abrir um novo hospital em Juruti. Fiquei encantada pela filha pequena dele, Luara. Ela falava comigo sem parar, como se eu soubesse português.
ALTER DO CHÃO, SEXTA-FEIRA, 17 DE AGOSTO_Fábio e a enfermeira partiram para Juruti me dizendo que eu deveria ir até a praça na cidade se quisesse usar a internet. Em vez disso, fui tomar banho de rio com Luara. Ela nadava enquanto eu ficava sentada na borda, aproveitando a água fresca. Luara me olhava com pena por eu não saber nadar. Até tentou me ensinar, dizendo “olha, olha”, enquanto mostrava os movimentos que eu deveria repetir para conseguir flutuar.
SÁBADO, 18 DE AGOSTO_Saímos em um dos barcos do Projeto Saúde e Alegria. Fazia um dia maravilhoso. O céu azul competia com as águas ainda mais azuis do rio Tapajós. Vi belas praias fluviais. Levamos 45 minutos só para cruzar o rio. Ao chegarmos à outra margem, o barco não conseguiu atracar muito perto da areia, então tivemos que descer com água na altura dos joelhos carregando nossas coisas.
Boim é uma pequena comunidade de 130 famílias. Nossa reunião seria feita em um prédio comunitário de lá. Eu observava enquanto a equipe da ONG preparava o espaço para a reunião, colocando garrafas e copos de água em um canto, conferindo como estavam os banheiros, abastecendo-os com papel higiênico que eles mesmos haviam trazido. Pessoas de seis comunidades diferentes estavam lá, esperando o começo da reunião. Com sua voz rouca, Magnólio assumiu o comando e pediu que cada um se apresentasse para quebrar o gelo. Dava para notar que sua experiência como palhaço era útil. Assim como o bobo da corte do rei Lear, ele usava sua condição de humorista para fazer piadas com as pessoas sem que elas se sentissem ofendidas.
Logo todos os membros das comunidades trabalhavam juntos desenhando o mapa da região. Era um trabalho fascinante porque as pessoas dominavam o lugar onde viviam, em comunidades de vinte ou trinta casas. Os desenhos eram detalhistas: informavam quais casas tinham tanques de água e pomares e quem era o dono. O mapeamento de comunidades afastadas é um trabalho que a ONG está fazendo há mais de um ano e que deve ser concluído até o final de 2012. O objetivo é traçar um panorama da região e saber quais são exatamente os recursos que essas pessoas têm disponíveis.
O centro comunitário onde nos reunimos também funcionava como um Telecentro. Todos os jovens dali tinham contas no Facebook e usavam a internet para conversar com amigos e ler e-mails. Depois da reunião, demos uma volta pela cidade que acabou me transportando de volta a Kerala. Em frente ao posto de saúde, um dos nativos me ofereceu uma fruta que chamou de jambo. Surpresa infinita: era o jambakka que eu comia na infância, apenas com uma cara um pouco diferente.
DOMINGO, 19 DE AGOSTO_Acordei animada para sair a bordo do Abaré, o barco do Saúde e Alegria que motivou minha ida a Santarém. Às 7 horas já estávamos prontos para embarcar. Junto comigo estavam Fábio e três jovens médicos: Pablo Scheroki, um clínico-geral do Exército todo uniformizado, Carlos Sinimbú, cirurgião pediátrico do Hospital Regional, e um terceiro de cujo nome não me lembro. Tivemos que esperar nas docas até que os cilindros de oxigênio chegassem, o que só aconteceu às 9 horas. Enquanto esperávamos, Pablo reclamava que, se fosse no Exército, alguém seria preso por causa daquele atraso. Os militares são iguais em todo o mundo: sempre acham que no Exército as coisas funcionam melhor.
Essa não era uma viagem de turismo: pacientes que precisavam ser operados esperavam em Mentai, a aldeia onde o Abaré atracou. Uma igreja foi transformada em ala de pós-operatório. Lá dentro, andaimes sustentavam redes que serviriam como leitos. Os pacientes ficavam em bancos encostados nas paredes, enfiados em camisolas azuis descartáveis enquanto esperavam sua vez. Um salão comunitário abrigava as tendas cirúrgicas, com unidades de esterilização e todo o aparato necessário. Ao redor, meia dúzia de pequenos geradores de energia abasteciam as tendas. Dois rapazes cuidavam dos geradores. Todos ali eram voluntários da Associação Expedicionários da Saúde e não recebiam um tostão pelo serviço.
Era isso que eu estava ansiosa para ver e para escrever a respeito. Pablo me ajudou bastante traduzindo as perguntas indiscretas que eu fazia às pessoas. Ele ficava até vermelho quando eu perguntava quanto as pessoas ganhavam, questionava sobre suas famílias. Nós, jornalistas, muitas vezes não percebemos o quanto esse tipo de pergunta soa esquisito para os outros. Pablo ficava o tempo inteiro se explicando, dizendo que ele era apenas o tradutor. Só faltava dizer: “Não tenho culpa, foi essa indiana esquisita que perguntou.”
SALVADOR, TERÇA-FEIRA, 21 DE AGOSTO_Cheguei à Bahia completamente grogue. O táxi demorou duas horas para chegar ao hotel, tamanho era o engarrafamento que pegamos no caminho. Paulo Rogério, o amigo que conheci em Boston, veio me buscar às 12h30, junto com Keila, amiga dele. Juntos, passeamos pelo centro histórico.
Era tanta coisa para ver: antigos edifícios em estilo colonial português como a casa do governador; o elevador de 138 anos que liga a Cidade Alta à Cidade Baixa; o moderno mas não tão bonito edifício da prefeitura; a praça com a estátua de Zumbi dos Palmares. Fiquei constrangida por nunca ter ouvido falar de Zumbi, um homem que defendeu um reino de 30 mil pessoas que escaparam da escravidão. Que história incrível de resistência. Deveria estar no currículo de todas as escolas do mundo pela lição de tenacidade e de busca pela liberdade.
No almoço depois do passeio, pedimos suco de umbu, moqueca de camarão e peixe, acompanhada por arroz e farinha. Divino! Agora sim eu encontrei o meu tipo de comida, frutos do mar com muito molho. Fomos em seguida a um shopping encontrar uma amiga de Paulo que dava aulas sobre o sistema de saúde na Escola Bahiana de Medicina. Karine Santana era apaixonada pelo SUS. Ela me explicou como o sistema estava sendo sucateado por interesses do setor privado e pela má gestão dos fundos. E ela não falava da boca para fora: estava grávida e pretendia dar à luz pelo SUS.
QUARTA-FEIRA, 22 DE AGOSTO_Paulo me buscou no hotel para irmos até a Liberdade, berço do movimento negro. O bairro é densamente povoado, pobre e com poucos serviços públicos. Logo que cheguei, vi um policial parecendo que ia para a guerra, com uma arma enorme nas mãos e várias menores presas no cinto. Em seguida, vi outros dois policiais equipados como o primeiro. Olhar para eles não passava nenhuma sensação de segurança. Paulo me explicou que eles estavam ali por causa do tráfico de drogas, e que os policiais costumam tratar mal a população, especialmente jovens negros. “Ninguém mexe com eles porque podem colocar drogas no teu bolso e te prender”, disse.
O posto de saúde da Liberdade parecia mais deficiente do que os outros que eu tinha visitado, mas talvez fosse porque era dia de vacinação e o lugar estava abarrotado de mães e filhos. A política de imunização é de fato um sucesso no Brasil.
Paulo me levou para visitar o escritório do Ilê Aiyê, o mais antigo bloco africano da Bahia. Perto dali ficava a casa de Maria Felipa, uma mulher negra que lutou contra os portugueses e cujo papel histórico estava começando a ser reconhecido. Apesar da população majoritariamente negra, a Bahia é dominada por uma elite branca. Isso ficava claro quando eu olhava para os cartazes eleitorais: pouquíssimos rostos negros para um estado de maioria africana.
Com Cristiane Lima, agente de saúde, entramos na comunidade para conhecer pessoas que eram atendidas pelo Bolsa Família. De novo, era gente pobre, mas com celular, tevê de tela plana e uma casa minimamente decente. A situação não é muito diferente da que vejo na Índia, exceto pelas condições de moradia. As favelas indianas têm casas muito mais precárias, mas igualmente cheias de televisores e celulares.
Uma das moças que recebe a Bolsa Família ficou desconfiada e no início insistiu para que fôssemos embora, mas, ao longo da conversa, a desconfiança se desfez. Foi substituída pela típica simpatia brasileira: a moça nos convidou para irmos até sua casa, que era pequena e cheia de crianças. Lá, nos ofereceu refrescos e conversou bastante. Saí com um presente: uma pipa feita pelo dono da casa.
No almoço, comemos bobó de camarão com arroz e pimenta malagueta em conserva. Em malayalam, usamos a palavra malagu, bem parecida com “malagueta”.
QUINTA-FEIRA, 23 DE AGOSTO_Paulo e eu fomos até a favela de Sussuarana, uma das mais perigosas de Salvador. Lá fomos recepcionados por Enderson Araújo, que edita um jornal comunitário chamado Mídia Periférica. O posto de saúde de Sussuarana é o pior que já vi no Brasil. Estava caindo aos pedaços. Mesmo assim, várias mães levaram seus filhos por causa da campanha de vacinação. Quando nos aproximamos, uma mulher veio nos dizer que o posto não tinha remédio para tratar a filha dela, que estava com o pé ferido. Essa mãe estava grávida e já tem dez filhos.
Paulo comprou os remédios de que ela precisava e depois fomos todos ao posto de saúde. Lá, descobrimos que já fazia cinco anos que eles não tinham um médico plantonista, apenas um ginecologista que vinha algumas vezes por semana. O centro de Sussuarana era um exemplo gritante de como o SUS está longe do idealizado. Um novo posto de saúde já deveria ter sido aberto na região, mas estava aguardando a inauguração.
Enderson nos levou para dentro da favela, onde encontraríamos outra família beneficiária do Bolsa Família. Passamos por caminhos íngremes e tortuosos até chegarmos à casa de Edina Maria Pereira, que tinha onze filhos. Um dos meninos era portador de necessidades especiais e vivia num abrigo. A filha mais velha tinha mais de 20 anos e o garoto mais novo, menos de 5. Essa foi a primeira e única família brasileira que eu conheci que disse não ter comido nada naquele dia. Suas únicas rendas eram os 286 reais do Bolsa Família e ajudas eventuais do pai, que não vivia com eles.
De lá fomos visitar a redação do Mídia Periférica. A história de Enderson é incrível: um jovem rapaz que escapou da tentação de cair no tráfico e se tornou a voz de sua comunidade. Uma salinha atrás de uma pequena loja fazia as vezes de escritório. O jornal é semanal, diagramado no Microsoft Office com fotos de celular e impresso em uma jato de tinta comum. São 100 cópias distribuídas gratuitamente entre os moradores.
SÁBADO, 25 DE AGOSTO_Sue Menezes, a amiga de Samira, me chamou para ver uma apresentação de capoeira no Pelourinho, na academia do mestre Bimba. Chegamos lá cedo demais e resolvemos dar um passeio pelo centro histórico. Tirei fotos com baianas, como fazem todos os turistas, e conheci a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco. Muito interessante, mas igrejas no Brasil são como os fortes no Rajastão: tem tantas que uma hora você se cansa.
À noite, fui jantar na casa de Keila. Preparei para a família dela um peixe cozido ao curry acompanhado de arroz. Os pais dela foram muito gentis. Ficaram espantados com a quantidade de alho, gengibre e cebola que eu coloquei na comida. Mesmo assim, limparam o prato, o que deixou a cozinheira muito lisonjeada.
SEGUNDA-FEIRA, 27 DE AGOSTO_Fui até o Instituto de Saúde Coletiva conversar com a doutora Inês Dourado. Ela parecia feliz em me ver, mas tinha pouco tempo. Todos estavam correndo por causa da conferência sobre HIV, que aconteceria em São Paulo dali a três dias. Inês me contou que os médicos brasileiros estavam abalados devido ao protesto que houve em Washington durante uma conferência internacional sobre Aids. O programa brasileiro de combate ao HIV – sobretudo a parte de prevenção – não foi bem avaliado. Tenho ouvido isso em todo canto: essa sensação de que o combate ao HIV no Brasil perdeu a força. “Tivemos que ouvir os americanos querendo nos ensinar como conduzir nosso programa de saúde pública. Foi tão ridículo”, ela deixou escapar. Brasileiros simplesmente detestam ouvir ordens de americanos.
SÃO PAULO, TERÇA-FEIRA, 28 DE AGOSTO_Já estou de volta ao escritório de Harvard. Peguei dicas de como lidar com as pessoas de Brasília com Marina de Moura, que leva alunos para lá o tempo todo. Conversando com Marina, comentamos sobre como os funcionários públicos brasileiros NUNCA agendam reuniões com antecedência e jamais respondem aos e-mails – ou só o fazem na última hora. Demos risada pensando no quanto isso choca os americanos. Eu não estava nada chocada: era a mesma coisa na Índia. Pessoalmente, a coisa muda de figura: as pessoas sempre dizem que só podem conversar por meia horinha, mas uma vez que você chega lá acabam te dando uma ou duas horas.
BRASÍLIA, QUARTA-FEIRA, 29 DE AGOSTO_Cheguei por volta das três da tarde e olhei da janela do hotel a paisagem plana e seca. A arquitetura dos prédios e a terra amarronzada dão à capital um ar de cidade alienígena caída do céu no meio do descampado.
Eu tinha um encontro marcado com o senador Eduardo Suplicy, o homem que certa vez apareceu no Senado vestindo uma chapéu de Robin Hood e que fez cover do Bob Dylan cantando Blowing in the Wind para governantes iraquianos. O mundo está ficando carente desse tipo de gente, sobretudo na política. Esperei pelo senador em seu escritório, lendo um texto dele sobre a garantia de renda mínima para todos os cidadãos. Ele logo adentrou a sala. Era um homem alto e digno, mais velho do que eu imaginava. Tentei imaginá-lo de chapéu verde e cantando Bob Dylan, mas não consegui.
Suplicy tinha um tom professoral ao falar. Me fazia perguntas e depois esperava pacientemente pela resposta. Sorria com indulgência diante da minha ignorância sobre os livros e ensaios a respeito de justiça e renda mínima. Depois de uma visita ao plenário do Senado, ele me convidou para jantar na casa dele. Durante a noite toda, falou sobre justiça social. Uma simpática cozinheira mineira nos serviu arroz, feijão, salada e filé de frango. Eu já estava cansada, mas ainda assisti a dois vídeos – um do arcebispo Desmond Tutu falando sobre renda básica e outro da viagem de Suplicy ao Iraque. Já era quase meia-noite quando nos despedimos.
Achei o senador uma pessoa muito agradável, sobretudo por seu jeito sonhador. Ele acredita que, um dia, todas as pessoas do mundo terão uma renda básica assegurada, o suficiente para a sobrevivência. Como jornalista cínica e desconfiada, não estou convencida de que isso seja possível.
QUINTA-FEIRA, 30 DE AGOSTO_Cheguei ao IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) às duas da tarde para encontrar especialistas em saúde, como Sérgio Piola, um dos responsáveis pela estruturação do SUS. Tive uma boa discussão com eles sobre o financiamento para a saúde. O economista Joseph Stiglitz estava certo quando, há muito tempo, me disse numa entrevista que, se a Índia permitisse que os planos de saúde tomassem conta do sistema, iríamos todos para o inferno. A experiência brasileira com planos de saúde privados também não parece nada boa. A abertura limitada do mercado se mostra uma opção mais razoável do que liberar o acesso para todo tipo de empresa inescrupulosa, como acontece nos Estados Unidos.
SEXTA-FEIRA, 31 DE AGOSTO_Me encontrei com o senador Cristovam Buarque. A conversa foi boa, mas ficou ainda mais agradável quando descobri que ele conhecia Kerala e minha cidade natal, Trivandrum. Imagine só, achar um senador que conhece um lugar no meio da Índia.
Mas faz sentido: Kerala tem um modelo de desenvolvimento discutido no mundo inteiro, por ser um estado 100% alfabetizado e com os melhores indicadores sociais da Índia. Seu IDH, índice de desenvolvimento humano, é ligeiramente maior do que o dos Estados Unidos: 0,920 contra 0,910. Especula-se que a abertura para o mundo durante os séculos em que Kerala prosperou como centro de comércio internacional tenha ajudado nesse desenvolvimento. Outro motivo é o pensamento de esquerda enraizado por lá. O foco na educação seria um terceiro fator.
O senador é obcecado pela educação. Para ele, é o caminho de saída da pobreza, e ele culpa o governo por não investir o suficiente no setor. Buarque acredita que o Bolsa Família ajuda a prevenir a pobreza extrema, mas não leva ninguém a sair dela. Só a educação poderia fazer isso, disse.
SEGUNDA-FEIRA, 3 DE SETEMBRO_Fui entrevistar Luís Henrique Paiva, da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania, do Ministério do Desenvolvimento Social. Fiquei emocionada quando Luís me disse que tentaria ajudar aquela mãe que conheci em Sussuarana e que sustentava onze filhos com 286 reais. Ela certamente tinha direito a um valor maior por ter tantas crianças. Contei-lhe que foi a única pessoa que eu conheci no Brasil que disse não ter comido nada naquele dia. Ele pareceu preocupado ao ouvir isso.
De volta ao hotel, conversei com Enderson pelo Facebook e pedi que ele ajudasse os funcionários do governo a encontrar aquela mãe. Enderson é um rapaz impressionante: ele usou o Google Tradutor para falar comigo em inglês. Perfeito!
SEXTA-FEIRA, 7 DE SETEMBRO_Era Dia da Independência do Brasil e me vi indecisa entre assistir aos desfiles na rua ou pela tevê. No fim das contas, minha preguiça venceu e fiquei no conforto do meu quarto de hotel. Vi a presidente Dilma e pensei que ela parecia ser uma pessoa inteligente. Fiz as malas para voltar ao Rio de Janeiro, aonde cheguei à tarde, morta de vontade de comer arroz com feijão. Viviane me levou de volta ao galeto, enquanto eu me programava para me despedir dos amigos e dos lugares favoritos na cidade. Dentro de poucos dias, embarco para os Estados Unidos. E, depois, de volta à Índia, finalmente.
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