ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Uma noite brasiliense
O consultor, o advogado, o juiz, o parlamentar e a Lava Jato
Daniela Pinheiro | Edição 103, Abril 2015
No começo de uma noite de março, esparramado numa poltrona na varanda de sua casa no Lago Sul, em Brasília, o consultor político analisava a conjuntura nacional. “Noventa por cento da população detestam a Dilma ou o PT. Quando você bate nela, você fica uns 15% mais bonzinho”, comentou. “É essa a estratégia do PMDB. Uns 70% detestam o Renan Calheiros e o Eduardo Cunha. Se eles batem nela, vão melhorando a imagem.” Segundo o consultor, a jogada era essencial para o partido, que tinha planos de voo alto gestados com o derretimento do mandato de Dilma Rousseff. Mas sobretudo para os dois políticos, que precisavam se descolar do escândalo. Tanto Cunha, presidente da Câmara, como Calheiros, do Senado, foram acusados de receber propina do esquema de corrupção na Petrobras.
“A ideia é enlouquecer o Brasil”, continuou. “É botar em prática o ‘Lama para Todos’. E aí aparece o estadista, o novo guia, aquele que vai pedir a moralização do Brasil.” No caso, ele disse, o arauto do resgate moral só pode sair dos quadros arraigados do PMDB. “O problema é que o Renan tem uma birra com o Michel”, disse, referindo-se ao vice-presidente da República. “Aí, o Eduardo Cunha pode crescer”, comentou.
Há trinta anos atuando como um dos mais argutos observadores da vida brasiliense, o consultor continuou. “O discurso será o de ‘Vamos zerar tudo o que estava errado’, ‘Vamos consertar o país’. E a culpa, é claro, será do ‘sistema’”, afirmou. O Lama para Todos já estaria em curso.
Naqueles dias, Calheiros ameaçara criar uma CPI do Ministério Público. “Tem aquela obra absurda da sede da procuradoria em Brasília. Obra no Brasil é diferente quando é na procuradoria? Não é.” Também havia a lista do banco HSBC, que envolvia numa nuvem de fraude financeira parte dos grã-finos brasileiros. “Aí, se você vaza a lista, você pega a elite paulistana, o que embola tudo.”
Nos dias que se seguiram, o Lama para Todos corroborava a previsão do consultor. Calheiros, pregando o enxugamento de ministérios e dos cargos comissionados, pediu menos desperdício e falou contra o aparelhamento do Estado. Cunha também fez a sua parte: não passou um dia sem infernizar a vida do governo, impondo derrotas sucessivas a Dilma.
Eram nove e meia da noite. No jardim repleto de obras de arte, a lua cheia refletia na piscina. O consultor havia aberto um vinho tinto, mas seguia na água mineral. Falou-se que a possibilidade de impeachment estava sendo debatida intramuros. Dias antes, peemedebistas haviam se reunido na casa de Renan Calheiros. Entre eles, o senador Eunício Oliveira e o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga. Às tantas da conversa, sobreveio a dúvida sobre quem assumiria a vaga caso a presidente caísse. Um defendia ser Temer, mas dizia que haveria eleições gerais dois anos depois. Outro apostava que elas viriam em noventa dias. Houve polêmica e a turma consultou um advogado, que lhes disse que, se houvesse uma denúncia de crime de caixa dois em benefício da candidatura petista na eleição de 2014, toda a chapa seria cassada – o vice aí incluído. Mas, caso a acusação fosse de crime de responsabilidade restrito à presidente, Temer poderia assumir o cargo.
“Impeachment parece improvável, mas não impossível”, vaticinou o consultor. “Aliás, seria a melhor coisa a se fazer agora. Michel para presidente!”, ironizou. Eram quase onze da noite e ele ainda tinha reuniões pela frente. “Dias piores virão”, disse ao se despedir.
A poucos quilômetros, era intenso o movimento no Piantas. Reinaugurado havia poucos meses, o restaurante se tornou um dos redutos da nata política local. “Aqui tem jardim e dá para fumar”, explicou o advogado, o preferido dos políticos do cerrado à floresta amazônica, que tem clientes citados na Lava Jato.
As mesas do jardim, com ombrelones e luzinhas discretas, estavam ocupadas por parlamentares, uma jornalista com sua fonte, um casal de namorados e uma mesa de amigas.
Por volta das onze e meia, dois ministros do Supremo Tribunal Federal que haviam jantado juntos – ambos julgando os pedidos de liberdade de acusados na Lava Jato – ficaram sob o luar interagindo com alguns presentes que se levantaram para cumprimentá-los. Um ministro do Tribunal de Contas, que está de casamento marcado, contou uma piada apontando para o advogado. “Esse aqui é o rei do disque 4 da Lava Jato”, falou, sem que ninguém entendesse. “É assim: lavagem, disque 1; formação de quadrilha, disque 2; corrupção, disque 3; todas as anteriores, disque 4.”
Os juízes do STF caíram na gargalhada. Um deles – alertado por mim de que não se tratava de uma entrevista – arriscou falar sobre os boatos de impeachment. “Não, não é o caso”, disse, balançando a cabeça em negativa. “É hora de todos se unirem para um bem maior, para um propósito de nação”, afirmou. Mas seria possível? Ele cerrou os lábios, levantou os ombros e fez uma careta de interrogação.
Sentado em uma das mesas redondas, o advogado hesitava em pedir vinho branco ou tinto. Sem se decidir, passou em revista os, segundo ele, pecados da Operação Lava Jato. “Tem muita irregularidade e arbitrariedade feita pelo Moro”, disse em referência ao juiz Sergio Moro, responsável pelas denúncias contra os envolvidos. A primeira delas, conforme o advogado, estava na origem da investigação. “O Youssef não poderia fazer duas delações premiadas”, argumentou. Em 2003, durante as investigações de crime financeiro na privatização do Banestado, ele já havia colaborado com a Justiça. “Mas o pior foi que ele delatou todos os concorrentes, tirou todo mundo do mercado e logo depois voltou a operar sozinho, na maior tranquilidade”, comentou. “Ou seja, dedou e voltou a delinquir. É como se o juiz deixasse ele se arrepender duas vezes.” Outra razão seria o fato de o próprio Sergio Moro ter se dado por impedido por já ter investigado Youssef anteriormente. “Mas isso sumiu da discussão.”
Seu celular tocou. Era o ex-presidente José Sarney, que o convocava com urgência. Roseana Sarney estava citada na Lava Jato. “Desculpem, tenho que ir.” Antes de sair, comentou: “Se o Ricardo Pessoa falar o que sabe, e parece que já está falando, acaba o Brasil.” Referia-se ao dono da construtora UTC, que também havia decidido colaborar fazendo delação premiada. “Não vai sobrar um”, exclamou o advogado.
Passava da meia-noite e o Dudu Bar tinha clima de fim de festa. Em uma mesa de frente para a rua, quatro congressistas em mangas de camisa conversavam aos sussurros. Naquela tarde, dois deles haviam sido denunciados pelo Ministério Público por envolvimento na Lava Jato.
Um, que usava camisa azul e bebia a surpreendente mistura de vinho branco com uísque, foi considerado pela Justiça um dos principais cabeças do esquema. O outro, que estava de listrado e exibia a pronúncia pastosa conforme a noite avançava, foi citado como “parte menor” do esquema. Por uma coincidência – não tão surpreendente –, na ponta da mesa estava o consultor político.
Mais uma vez o tema era o impeachment. Havia quem defendesse a medida. Um parlamentar do Piauí se disse contra. “Impeachment você não controla, ninguém sabe o que pode virar isso aqui”, argumentou. Comentou-se que dois impeachments em pouco mais de vinte anos deveria ser uma situação inédita no mundo. “Isso é botar o país no lixo”, disse o piauiense.
O parlamentar de listrado falava alto, com a voz arrastada. “Isso tudo é porque tenho dinheiro. É perseguição.” Ninguém deu bola para o comentário. Depois, ele contou que seu pai havia “chorado muito” quando viu o nome do filho na lista da Lava Jato. “Absurdo”, vociferou.
Um Mercedes conversível estacionou e chamou a atenção do grupo. Era o advogado que havia acabado de voltar da casa de Sarney. Marcara uma reunião com um profissional de seu escritório para rediscutir certa estratégia de defesa. O relógio acusava uma da manhã. Por um momento, os sete presentes se sentaram na mesma mesa.
Pouco depois, outro denunciado apareceu para conversar em particular com o consultor. Sentaram-se duas mesas adiante. Foi quando o parlamentar de listrado resolveu ir embora. A mesa ficou apreensiva. Quiseram saber se ele estava com motorista, já que não tinha condições de assumir o volante. “Vai que ele bate num lava a jato”, brincou um deles, provocando gargalhadas.
Eram duas da manhã. O grupo dava sinais de que a madrugada seria longa. Em tempos de Lava Jato, a noite em Brasília estava só começando.