Quatro ângulos de um "martelo" encontrado no mais antigo sítio arqueológico do mundo FOTO: HARMAND ET AL._NATURE
Uma oficina de 3,3 milhões de anos
O martelo pode ter surgido antes do gênero humano
Bernardo Esteves | Edição 105, Junho 2015
Na manhã de 9 de julho de 2011, a arqueóloga francesa Sonia Harmand liderava uma expedição para explorar as imediações do lago Turkana, no Quênia. Estudiosa das ferramentas de pedra feitas pelos ancestrais dos humanos modernos, ela suspeitava que pudesse encontrar ali artefatos muito antigos: a datação dos sedimentos vulcânicos que ocorriam na região havia mostrado que eles tinham alguns milhões de anos de idade. Harmand é investigadora da Universidade Stony Brook, em Nova York, e do CNRS, o centro nacional de pesquisas da França. Naquele ano, ela passara a coordenar a missão arqueológica no Quênia iniciada em 1994 por Hélène Roche, sua orientadora de doutorado.
Em meio à paisagem homogênea daquele pedaço da África, frequentado esporadicamente por pastores com suas ovelhas e povos nômades, o comboio de veículos que levava a equipe acabou se perdendo. O grupo parou para se orientar e avistou uma área promissora para prospecção. Minutos depois, arqueólogos do time já haviam notado na superfície dezenas de pedras que pareciam ter sido talhadas de propósito. Só não tinham ideia de que estavam prestes a escavar o mais antigo sítio arqueológico do mundo.
Os resultados da investigação preliminar do sítio, batizado de Lomekwi 3, foram publicados no fim de maio na revista Nature. Os autores sustentam que as peças encontradas durante o trabalho de campo eram lâminas, martelos e outros instrumentos produzidos deliberadamente por uma espécie extinta de primata, possivelmente ancestral do Homo sapiens, há 3,3 milhões de anos, numa época em que o gênero humano nem sequer havia surgido. O material é 700 mil anos mais velho que as mais antigas ferramentas conhecidas até então.
Na escavação de 13 metros quadrados, Harmand e seus colegas encontraram 29 artefatos ensanduichados entre as camadas de cinzas vulcânicas. Recolheram também mais de uma centena de outras prováveis ferramentas encontradas na superfície. Ao menos parte dos objetos achados soltos parece ter pertencido ao conjunto que estava enterrado. Num dos casos, descobriram uma lasca na superfície que se encaixava perfeitamente numa pedra maior que estava embaixo da terra.
A maior parte das 149 peças descritas no artigo da Nature consiste em pedras grandes com as cicatrizes típicas deixadas pela retirada de lascas. Há outras ainda maiores, beirando os 30 centímetros, que faziam as vezes de bigorna, oferecendo uma superfície de apoio para o trabalho de outras ferramentas (elas guardam as marcas dos golpes recebidos).
Falando por telefone de Nairóbi, Sonia Harmand contou que desde o início teve a consciência de que estava diante de um achado importante. “Como estávamos em níveis sedimentares com mais de 2,6 milhões de anos, sabíamos que aquelas eram as ferramentas mais antigas do mundo”, disse a francesa. “Mas estávamos longe de achar que elas teriam 3,3 milhões de anos.”
A confecção de ferramentas já foi vista pelos especialistas como um traço que distingue o gênero humano dos demais primatas. A espécie paradigmática dessa transição foi encontrada na Tanzânia no início dos anos 1960 num sítio em que havia também milhares de ferramentas, e foi batizada por isso de Homo habilis. Mas a ocorrência mais antiga que se conhece do “humano hábil” data de 2,8 milhões de anos atrás – meio milhão de anos depois, portanto, das ferramentas de pedra do lago Turkana. Os fabricantes daqueles artefatos definitivamente não eram humanos. Pelo visto, havia martelo antes de haver gente.
O material encontrado pelos arqueólogos não trazia qualquer pista sobre a identidade de seus autores. Os principais suspeitos são os primatas da linhagem que deu origem aos humanos modernos e que estavam circulando à época por aquela região da África (a mesma em que provavelmente surgiu o Homo sapiens muito tempo depois, há coisa de 200 mil anos).
Um candidato natural é o Australopithecus afarensis: fósseis de mais de 300 indivíduos dessa espécie já foram encontrados na Etiópia, Tanzânia e Quênia. Com corpo peludo, braços compridos e rosto simiesco, o australopiteco era bípede e podia chegar a 1,50 metro de altura. O espécime mais emblemático é Lucy, nome dado ao esqueleto parcial de uma mulher que viveu há 3,2 milhões de anos.
Mas o criador das ferramentas pode pertencer também a uma espécie aparentada – o Kenyanthropus platyops – conhecida por um único crânio de rosto achatado encontrado no fim do século passado num sítio arqueológico a apenas 1 quilômetro de Lomekwi 3.
Seja qual for sua identidade, quem golpeou aquelas pedras parecia ter a intenção de transformá-las para atender a necessidades específicas. “Acreditamos que a principal finalidade para a qual eles talhavam as pedras era criar bordas cortantes, uma função que não existe em estado natural”, disse numa entrevista telefônica Hélène Roche. As ferramentas, continuou a pesquisadora, serviam provavelmente para algum uso ligado à alimentação, como cortar matéria animal ou vegetal. Mas tudo isso está na esfera da especulação. O grupo conduz uma análise microscópica que pode vir a identificar resíduos de matéria orgânica e trazer pistas sobre como eram usadas.
O artigo do grupo de Sonia Harmand foi bem recebido por seus colegas, a julgar pela opinião de especialistas independentes consultados pela imprensa mundial. Ninguém estranhou o achado que recuou em 700 mil anos a história da tecnologia. Parece paradoxal para quem acompanha as discussões dos estudiosos da ocupação das Américas, que brigam pela autenticidade de sítios que antecipariam a presença humana no continente em meros 10 mil ou 20 mil anos. Harmand acha natural que não haja a mesma resistência. “Estávamos preparados para isso”, afirmou. “As ferramentas mais antigas conhecidas até então eram sofisticadas demais para serem as primeiras, e essa descoberta era aguardada.”
Nem todos endossaram completamente os resultados. O pré-historiador francês Eric Boëda, especialista em tecnologia lítica que é colega de Harmand no CNRS e não participou da pesquisa, manifestou ressalvas em relação ao trabalho. “O material é velho e é lascado, isso é inegável”, concedeu. “Mas não há um número suficiente de peças estudadas e as análises não são convincentes.” Boëda se disse insatisfeito com o estudo da sedimentação e das ferramentas, que privilegiou o modo de fabricação, sem investigar suas características funcionais. “Não creio que os argumentos sejam definitivos.”
Parte das lacunas deve ser preenchida com a publicação de novos resultados da pesquisa, que ainda está em curso. “O trabalho da Nature não menciona nada do que encontramos em 2014”, disse Harmand. “Voltamos a campo e achamos muito mais peças, e além disso detalhamos as condições de sedimentação e preservação do sítio”, completou, alegando não poder dar mais detalhes. Em julho, o grupo retoma as escavações em Lomekwi 3.
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