Ele estava usando calça e jaqueta jeans, e por baixo uma blusa rendada branca. Era meio cheinha, tinha seios pesados e quadris largos. Os cabelos eram loiros e mais ou menos compridos, e a pele era pálida com umas poucas sardas. Os olhos eram grandes, azuis e provocadores. Quando senti seu perfume, também pesado, e ela me entregou a jaqueta, senti meu pau endurecer outra vez ILUSTRAÇÃO: DW RIBATSKI_2016
Uma temporada nos confins
Lá ninguém sabia quem eu era, lá eu podia fazer o que bem entendesse
Karl Ove Knausgård | Edição 117, Junho 2016
Voltar para casa foi uma sensação boa. Foi o primeiro lugar que pude chamar de meu, e eu aproveitava até mesmo as tarefas mais triviais, como pendurar minha jaqueta ou guardar o leite na geladeira. Claro, eu já tinha morado por um mês no pequeno apartamento do hospital psiquiátrico Eg naquele verão, foi para lá que minha mãe me levou de carro quando nos mudamos da casa onde havíamos morado durante os últimos cinco anos, mas aquele não era um apartamento de verdade, apenas um quarto num corredor cheio de outros quartos onde nos velhos tempos moravam as enfermeiras solteiras, daí o nome “Galinheiro”, e o trabalho que eu tinha feito tampouco era um trabalho de verdade, só um emprego temporário sem nenhuma responsabilidade verdadeira. E além de tudo o hospital ficava em Kristiansand. Para mim era impossível me sentir livre em Kristiansand, eu tinha laços demais com pessoas demais, tanto reais como imaginárias, para que pudesse fazer o que eu gostaria naquela cidade.
Mas em Håfjord seria tudo diferente!, pensei enquanto levava a fatia de pão à boca e olhava para a rua. O reflexo das montanhas no outro lado se partia como num caleidoscópio graças aos movimentos da água mais abaixo. Lá ninguém sabia quem eu era, lá não havia laços, nenhum padrão estabelecido, lá eu podia fazer o que bem entendesse. Passar um ano escrevendo às escondidas, construindo uma coisa em segredo. Ou simplesmente levando a vida numa boa e guardando dinheiro. Não tinha muita importância. O mais importante era que eu estava lá.
Servi leite no copo e o esvaziei em longos goles. Coloquei-o no balcão com o prato e a faca, guardei as coisas na geladeira e fui para a sala, onde liguei a máquina de escrever na tomada, botei os fones de ouvido, aumentei o volume ao máximo, coloquei uma folha no cilindro da máquina, centralizei o texto e digitei o número 1 no alto da página. Olhei para a casa do zelador. Um par de botas de borracha verdes estava largado em frente à porta. Uma escova com cerdas vermelhas estava apoiada contra a parede. Havia pequenos carrinhos de brinquedo sobre a areia e o cascalho que recobriam o trecho em frente à entrada. Entre as duas casas cresciam musgo, líquen, um pouco de grama e umas árvores magras. Eu tamborilava os dedos contra as bordas da mesa no ritmo da música. Escrevi uma frase. “Gabriel está no alto da gandra, olhando para o loteamento com uma expressão insatisfeita no rosto.”
Acendi um cigarro, preparei um bule de café, olhei para o vilarejo e para o fiorde e também para as montanhas do outro lado. Escrevi mais uma frase. “Ao lado dele está Gordon.” Cantei o refrão. Escrevi. “Ele sorria como um lobo.” Empurrei a cadeira para trás, apoiei os pés em cima da mesa, acendi mais um cigarro.
Era um bom começo, não?
Peguei O Jardim do Éden de Hemingway e folheei um pouco o livro prestando atenção na linguagem. Eu tinha ganhado o livro de Hilde dois dias antes como um presente de despedida na estação de trem de Kristiansand, quando eu estava indo a Oslo para tomar o avião para Tromsø. Lars estava junto, e também Eirik, o namorado de Hilde. Além deles havia Line, que seguiria comigo até Oslo para se despedir lá.
Só naquele momento percebi que havia uma dedicatória na guarda do livro. Hilde escrevera que eu tinha um significado especial para ela.
Acendi um cigarro e continuei sentado, olhando para a rua enquanto pensava naquilo.
O que eu podia significar para Hilde?
Ela me via, dava para notar, mas assim mesmo eu não sabia o que ela via. Ser amigo dela era ter alguém que cuidava de tudo para mim. Mas o carinho que reside na compreensão também diminui quem o recebe. Para mim não era um problema, mas de qualquer forma eu percebia.
Eu não merecia Hilde. Fiz de conta que merecia, e o mais estranho foi que ela acreditou, porque não tinha nenhum problema em compreender essas coisas. Hilde era a única pessoa que eu conhecia que lia livros de verdade, e a única pessoa que também escrevia. Fomos colegas por dois anos e desde o início eu havia notado sua presença, Hilde tinha uma disposição irônica e às vezes até rebelde em relação às coisas que eram ditas na sala de aula que eu nunca vira numa garota. Ela desprezava a mania que as meninas tinham de se enfeitar, de sempre querer parecer educadas, a infantilidade muitas vezes fingida, mas não de um modo agressivo ou amargo, ela simplesmente não participava daquilo, era uma garota gentil e carinhosa, com uma essência suave, mas também dotada de certa rispidez, de um elemento obstinado um tanto incomum naquele contexto, que me levou a olhar para ela com uma frequência cada vez maior. Hilde era pálida, tinha sardas pálidas nas bochechas, cabelos avermelhados, era magra e de aparência frágil, entendida como o oposto da robustez, o que numa personalidade um pouco menos independente e marcante talvez despertasse nas pessoas o impulso de cuidar dela, mas não era o que acontecia, muito pelo contrário, era Hilde quem cuidava das pessoas que se aproximavam dela. Muitas vezes ela usava uma jaqueta militar e um jeans azul, que em termos políticos eram símbolos da esquerda, mas no que dizia respeito à cultura ela pertencia ao outro lado, porque era contra o materialismo e a favor do espírito. Para Hilde, o que vinha de dentro estava acima do que vinha de fora.
Hilde havia se transformado em minha confidente. Era a pessoa mais próxima de mim. Comecei a frequentar sua casa, conheci os pais dela, às vezes jantava com a família e dormia por lá. O que eu fazia com Hilde, às vezes na companhia de Eirik, às vezes quando estávamos apenas só nós dois, era conversar. Sentados com as pernas cruzadas e uma garrafa de vinho no apartamento de subsolo onde ela morava, com a escuridão da noite nas janelas, conversávamos sobre os livros que tínhamos lido, sobre questões políticas, sobre o que a vida nos reservava e o que podíamos fazer. Hilde era muito séria, era a única pessoa da minha idade que tinha essa característica, e ela também percebia esse detalhe em mim, mas ao mesmo tempo ria muito e nunca se afastava muito da ironia. Poucas coisas me agradavam mais do que estar lá, na casa deles, com Hilde e Eirik e às vezes Lars, mas ao mesmo tempo aconteciam na minha vida outras coisas incompatíveis com essas situações, o que me deixava com uma sensação permanente de consciência pesada: se estava bebendo nas baladas e dando em cima das garotas, eu ficava com a consciência pesada em relação a Hilde e a tudo que eu representava para ela; se estava na casa de Hilde conversando sobre a liberdade ou a beleza ou o significado da vida, eu ficava com a consciência pesada em relação às pessoas com quem eu saía, ou em relação ao que eu representava para elas, porque a hipocrisia que eu, Hilde e Eirik tanto criticávamos também estava em mim. Minha orientação política era de extrema esquerda, a ponto de quase cruzar a fronteira rumo ao anarquismo, eu detestava as unanimidades e os estereótipos e, como todos os outros jovens da cena alternativa de Kristiansand, desprezava o cristianismo e todos os imbecis que acreditavam naquela doutrina e frequentavam encontros com pastores carismáticos e estúpidos.
Mas eu não desprezava as garotas cristãs. Não, por um ou outro motivo eram sempre elas que me atraíam. Como explicar uma coisa dessas para Hilde? Mesmo que sempre tentássemos ver além da superfície, com base na premissa fundamental e tácita de que a verdade e a essência encontravam-se um pouco mais abaixo, e sempre tentássemos ao máximo encontrar um significado, mesmo que por vezes fosse apenas o reconhecimento de uma ausência de significado, era justamente na superfície bela, reluzente e sedutora que eu queria viver, era justamente meu desejo pela falta de sentido que eu buscava saciar – em suma, me sentia atraído pelos bares e pelas festas, onde eu só queria beber até perder a consciência do que eu estava fazendo e cambalear de um lado para o outro em busca de garotas que eu pudesse comer, ou pelo menos bolinar um pouco. Como explicar isso para Hilde?
Não havia como, então não expliquei. Em vez disso abri uma nova seção no subterrâneo da minha vida. Era a seção de bebedeiras e promiscuidade, que ficava logo ao lado da seção de reflexão e introspecção, separada apenas por uma pequena mudança de personalidade não maior do que uma cerca de jardim.
Line era cristã. Não de um jeito panfletário, mas mesmo assim era cristã, e a presença dela na estação de trem, perto de mim, fez com que eu me sentisse um pouco mal.
Seus cabelos eram pretos e crespos, as sobrancelhas marcadas e os olhos azul-claros. Ela se mexia de um jeito muito gracioso e tinha aquele tipo raro de independência que não procura a companhia dos outros. Gostava de desenhar e investia muito tempo nos desenhos, provavelmente tinha talento nessa área; depois de se despedir de mim ela começaria os estudos de estética numa faculdade. Eu não era apaixonado por Line, mas mesmo assim ela era uma garota legal de quem eu gostava demais, e às vezes quando tomávamos um vinho branco eu descobria em mim sentimentos bastante intensos por ela. O problema era que havia limites muito claros até onde ela podia ir. No decorrer das semanas que passamos juntos eu pedi e implorei duas vezes, quando estávamos dando uns amassos já meio sem roupa na cama dela ou no quarto onde eu morava no Galinheiro. Mas não, não era para mim que ela tinha se guardado.
“Me deixe fazer por trás, então!”, eu disse uma vez desesperado, sem compreender ao certo o que isso envolvia. Line se aconchegou em mim e me encheu de beijos. Poucos segundos depois senti aquela odiada contração na virilha, que melou minha cueca, e discretamente me afastei de Line, que, ainda tomada por aquele desejo de provocar, não entendeu que para mim o clima havia mudado completamente de um instante para o outro.
Line estava ao meu lado na plataforma com as mãos enfiadas nos bolsos de trás e uma pequena mochila nas costas. Faltavam seis minutos para o trem partir. Um pouco mais à frente as pessoas já estavam entrando nos vagões.
Quase não dava para acreditar que tudo havia se passado apenas dois dias atrás.
Larguei o livro de Hemingway e enquanto enrolava mais um cigarro e tomava um gole de café morno, li as três frases que eu havia escrito.
Peguei uma maçã na cozinha e me sentei mais uma vez junto à escrivaninha. Nas horas seguintes escrevi três páginas. Era uma história sobre dois garotos num loteamento, e na minha opinião estava boa. Talvez estivesse pronta com mais umas três páginas. Não seria nada mau escrever um conto inteiro no meu primeiro dia em Håfjord. Se continuasse naquele ritmo, já teria uma coletânea pronta no Natal!
Me vesti, passei alguns segundos em frente ao espelho do banheiro ajeitando a boina, tranquei a porta e comecei a descer a encosta. Um pouco mais abaixo era possível ver o mar além do fiorde e a linha do horizonte traçada contra o céu. Duas nuvens grandes e totalmente brancas pairavam imóveis mais ao longe. Do outro lado do fiorde um barco pesqueiro vagava rumo a terra. Aquele era o Fugleøyfjorden. A ilha evidentemente se chamava Fugleøya. Muito bem, devem ter pensado os primeiros humanos a chegar à região. Como vamos chamar esse fiorde? Fiskefjorden? Não, já demos esse nome ao fiorde anterior. Que tal Fuglefjorden? Claro! Muito bem pensado!
Continuei ao longo da estrada, deixei para trás o mercado de peixes, que estava totalmente vazio a não ser pelas gaivotas empoleiradas no telhado, e dobrei rumo à parte mais alta do vilarejo. Bem em frente à última casa a montanha se erguia a prumo. Não havia regiões intermediárias, como as que eu tinha me acostumado a ver nos cenários da minha infância, eram apenas lugares de limites pouco definidos que ou eram uma propriedade ou eram a natureza. Lá estava a natureza, e não era a natureza baixa e macia de Sørlandet, mas a natureza bruta, inóspita e castigada do Ártico, era nesse lugar que as pessoas de Håfjord entravam ao sair pela porta de casa.
Talvez fossem umas 100 casas.
Naquele lugar distante, ao pé das montanhas e à beira-mar.
Eu tinha a sensação de estar nos limites do mundo. De que não era possível ir mais longe. Mais um passo e eu estaria fora.
Meu Deus, como era fantástico poder morar num lugar assim!
Aqui e ali eu percebia movimentos por trás das janelas das casas. As luzes cintilantes das telas de televisão. Tudo parecia estar afundado no murmúrio das ondas que batiam contra a terra lá embaixo, ou antes envolto nele, porque o barulho era tão regular e tão constante que tudo parecia ser uma qualidade do próprio ar, como se não apenas pudesse ser frio ou quente, mas também alto ou baixo.
Quando parei em frente à porta de casa olhei o relógio.
Eu tinha levado quinze minutos para dar a volta em todo o vilarejo.
Dentro daqueles quinze minutos eu viveria minha vida inteira durante o ano que tinha pela frente.
Senti um calafrio. No corredor, tirei as roupas de inverno. Embora soubesse que nada ia acontecer, tranquei a porta e a mantive trancada durante a noite inteira.
No dia seguinte eu não saí, fiquei em casa escrevendo e observando as pessoas que a intervalos irregulares surgiam e desapareciam na estrada lá embaixo, fiquei andando de um lado para o outro, pensando no que dizer quando as aulas começassem na terça-feira, elaborando na cabeça frases de abertura uma atrás da outra ao mesmo tempo em que pensava na melhor estratégia a adotar em relação aos alunos. A primeira coisa que eu precisava fazer era descobrir em que nível estavam. Será que o ideal seria começar aplicando provas de todas as matérias? E aí conforme os resultados dar a continuidade mais adequada? Não, as provas logo de cara pareceriam violentas demais e um tanto autoritárias, um pouco escolares demais.
Passar outras tarefas, talvez, como lição de casa?
Não. As aulas duravam muito tempo, então o melhor seria passar as tarefas ainda na escola. Assim eu poderia continuar a desenvolvê-las no dia seguinte.
Fui para o quarto e me deitei na cama, li um pouco dos dois livros que eu tinha comprado e, quando terminei, comecei a ler os artigos do periódico literário que havia trazido comigo de Oslo sem entender muito bem o que estava escrito. Eu conhecia a maioria das palavras, mas o significado exato delas parecia estar o tempo inteiro fora do meu alcance, como se dissessem respeito a um mundo desconhecido onde a linguagem do mundo conhecido não servisse mais. Porém, uma coisa se revelou naquelas páginas com mais força do que todas as outras, e era a descrição de um livro, Ulysses, que, de um jeito bastante particular, dava a impressão de ser absolutamente incrível. Imaginei uma torre enorme, que parecia brilhar de tão úmida, rodeada pela neblina e pela luz fraca e pálida do sol encoberto. Esse livro era considerado a obra-prima do modernismo, e por modernismo eu entendia carros de corrida baixos e velozes, pilotos com capacetes e jaquetas de couro, zepelins pairando acima de arranha-céus em metrópoles escuras e cintilantes, computadores, música eletrônica. Nomes como Hermann Broch, Robert Musil, Arnold Schönberg. Nesse mundo exaltavam-se elementos de culturas antigas e desaparecidas há muito tempo, como acontecia ao Virgílio de Broch e ao Odisseu de Joyce.
Eu não tinha pensado que aquele dia seria um domingo quando fui às compras na véspera, e por isso estava comendo fatias de pão com patê de fígado e maionese quando de repente a campainha tocou. Limpei a boca com as costas da mão e caminhei depressa até o corredor.
Do lado de fora estavam duas garotas. De cara reconheci uma delas. Era a garota que estava sentada do outro lado no ônibus que eu havia tomado para Håfjord.
Ela sorriu.
“Oi!”, disse. “Você está me reconhecendo?”
“Claro”, eu disse. “Você estava no ônibus comigo.”
Ela riu.
“E você é o novo professor aqui em Håfjord! Foi o que imaginei quando vi você, embora não tivesse certeza. Mas fiquei sabendo na festa de ontem.”
Ela estendeu a mão.
“Meu nome é Irene”, ela se apresentou.
“Karl Ove”, eu disse com um sorriso.
“E essa é a Hilde”, ela disse, virando o rosto em direção à outra garota, que também cumprimentei com um aperto de mão.
“Nós somos primas”, disse Irene. “Hoje estou de visita na casa da Hilde. Mas na verdade era só uma desculpa para vir conhecer você.” Ela riu. “Não. Estou brincando.”
“Vocês não querem entrar?”, perguntei.
As duas se olharam.
“Obrigada”, disse Irene.
Ela estava usando calça e jaqueta jeans, e por baixo uma blusa rendada branca. Era meio cheinha, tinha seios pesados sob a blusa, e quadris largos. Os cabelos eram loiros e mais ou menos compridos, e a pele era pálida com umas poucas sardas ao redor do nariz. Os olhos eram grandes, azuis e provocadores. Quando ainda no corredor senti o perfume de Irene, também pesado, e ela me entregou a jaqueta, porque não havia ganchos na parede, senti meu pau endurecer outra vez.
“Pode me dar a sua também”, eu disse para Hilde, que não tinha nada da presença da prima, e que me estendeu a jaqueta com um sorriso tímido e modesto. Pendurei-as nas costas da cadeira da escrivaninha e enfiei uma das mãos no bolso da calça para esconder o volume no meio das pernas. As duas garotas entraram, um pouco hesitantes.
“Minhas coisas ainda não chegaram”, expliquei. “Mas devem chegar logo.”
“É, ainda está um pouco triste por aqui”, Irene comentou com um sorriso.
As duas sentaram no sofá com os joelhos bem juntos. Eu me sentei na cadeira em frente, com as pernas cruzadas para esconder o volume no meio das pernas, que não havia diminuído em nada. Afinal, Irene estava sentada a um metro de mim.
“Quantos anos você tem?”, ela perguntou.
“Dezoito”, eu disse. “E você?”
“Dezesseis”, Irene respondeu.
“Dezessete”, disse Hilde.
“Então você acabou de sair do colegial?”, Irene perguntou.
Fiz um gesto afirmativo com a cabeça.
“Eu estou no 2º ano”, Irene continuou. “Estudo em Finnsnes. É um internato. Moro em um estúdio lá. Você pode me visitar, se quiser! Com certeza você vai acabar indo a Finnsnes mais cedo ou mais tarde.”
“Com certeza”, respondi.
Nossos olhares se encontraram.
Ela sorriu. Eu sorri de volta.
“Mas na verdade eu sou de Hellevika. É o primeiro vilarejo atrás de Håfjord. Fica do outro lado da montanha, a uns quilômetros daqui. Você tem carta de motorista?”
“Não”, respondi.
“Que pena”, ela comentou.
Ficamos um tempo em silêncio. Me levantei e peguei o cinzeiro e o pacote de tabaco e enrolei um cigarro.
“Posso fazer um também?”, Irene perguntou. “Os meus estão na jaqueta.”
Joguei o pacote para ela.
“Eu tive que rir ontem no ônibus para cá”, ela disse enquanto começava a enrolar o cigarro. “Fiquei com a impressão de que você estava prestes a descer pela janela!”
As duas garotas riram. Irene lambeu a cola e fechou a seda apertando o indicador contra o polegar, colocou o cigarro já pronto nos lábios e o acendeu.
“Esse lugar é muito bonito”, eu disse. “Mas não fazia a menor ideia de como seria. Para mim Håfjord era apenas um nome, ou talvez menos do que isso.”
“Por que você quis vir para cá?”
Dei de ombros.
“Na agência de empregos me deram uma lista com nomes e acabei escolhendo esse.”
Ouvi passos no andar de cima.
Olhamos todos para o teto.
“Você já conheceu a Torill?”, Irene perguntou.
“Mal e mal”, respondi. “Vocês se conhecem?”
“Claro. Aqui todo mundo se conhece. Em Hellevika e em Håfjord.”
“E em Fugleøya”, Hilde completou.
Tudo ficou em silêncio.
“Vocês não querem tomar um café?”, perguntei enquanto me levantava da cadeira.
Irene balançou a cabeça.
“Não, acho que já está na hora de ir. Você não acha?”
“Sim, já está na hora”, concordou a prima.
Nós nos levantamos, peguei as jaquetas que estavam na cadeira e me aproximei dela mais do que seria estritamente necessário para devolver a jaqueta. Encantado com os quadris revelados pelo contorno da calça justa, e também com as coxas, as panturrilhas e os pezinhos, com o pescoço e os seios pesados, com o nariz pequeno e os olhos azuis, ao mesmo tempo inocentes e provocadores, fechei a porta. Tudo não havia durado mais do que dez ou quinze minutos.
Entrei na cozinha para preparar o café e mais uma vez ouvi batidas na porta.
Era ela, dessa vez sozinha.
“Vai ter uma festa em Hellevika no fim de semana que vem”, disse. Esse foi meio que o motivo dessa visita, para fazer o convite. Você está a fim de ir? É uma boa maneira de conhecer as pessoas daqui!”
“Claro que estou a fim”, eu disse. “Se puder, com certeza apareço.”
“Se puder?”, ela me interrompeu. “É só entrar num carro! Todo mundo vai estar lá.”
Em seguida piscou para mim. Depois se virou e começou a descer o morro onde Hilde a esperava à beira da estrada mexendo no cadarço do sapato.
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Trecho do livro Uma Temporada no Escuro – Minha Luta 4, a ser lançado pela Companhia das Letras este mês.
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