IMAGEM: ANDRÉS SANDOVAL
Uma touca para Sofia
Como nadar de kanekalon
Fabio Victor | Edição 136, Janeiro 2018
Cansada do cabelo curto que a acompanhou durante quase todo o ano passado, Sofia Dionizio Silvério resolveu mudar. Em novembro, a garota de 12 anos incrementou o seu vívido rosto negro, em que brilham olhos da mesma cor e dentes branquíssimos, com tranças afro. Sua mãe, a contadora Maria Aparecida Dionizio Silvério, a levou ao salão Zelma Tranças, em Osasco, na Grande São Paulo, onde a família vive.
A casa é especializada no tipo de penteado que Sofia buscava. Uma funcionária aplicou-lhe fios de kanekalon, fibra sintética que, entrelaçada com os cabelos desde a raiz, resulta em madeixas volumosas. De tão usado, o kanekalon terminou por batizar esse tipo de trança, e virou um hit entre os penteados afro femininos.
As seis horas de trabalho da cabeleireira e os 280 reais pagos pelo serviço valeram a pena: Sofia adorou o resultado. Só tinha esquecido que, na semana seguinte, participaria de uma competição de natação para a qual se preparava havia meses. Quando chegou em casa, fez um teste com sua touca e se decepcionou: o acessório não dava conta da cabeleira nova.
“Quando ela viu que a touca não cabia, quase chorou”, contou sua mãe, que todos chamam de Cida. O pai de Sofia, um motorista apaixonado por esportes que estimulou os filhos a praticar atividades físicas desde cedo, tratou de tranquilizá-la – a menina havia de achar uma solução na internet. Ela buscou por “touca para cabelo afro” e, de fato, encontrou modelos para vender – na África do Sul. “Ou tiro a trança ou não participo”, angustiou-se.
Sofia entrou pela primeira vez numa piscina antes de completar 1 ano e nunca mais saiu. “O único esporte em que me considero boa é a natação”, disse quando foi entrevistada pela piauí, sendo prontamente corrigida pela mãe. “Ela também joga vôlei e dança muito bem.”
Aluna do 7º ano do ensino fundamental, Sofia treinava para nadar num torneio entre escolas adventistas, como o colégio particular onde estuda. Sua aflição tinha um componente adicional. “Pensei: ‘Já sou a única negra naquele bando de gente branca, ainda vou ser a única sem touca?’”
Cida largou-se com a filha em busca de uma solução no comércio de rua. Como um dos elásticos da nova trança havia se soltado, passaram antes no salão de Zelma para repará-lo. Quando a dona do lugar ouviu o relato da agonia que assaltava a família, falou-lhes de Maurício Delfino.
Com rosto redondo e olhos esbugalhados, Delfino é um administrador de empresas gordote e simpático que lembra o apresentador Fausto Silva, só que com a pele escura. Filho de mãe negra e pai branco, ele lembra como, nos almoços de domingo, as mulheres da família materna transformavam a cozinha em salão, esquentando pentes de ferro e outras traquitanas para alisar os cabelos.
Outra recordação viva é a das listas intermináveis de encomendas que os familiares lhe faziam quando Delfino viajava para o exterior. Queriam produtos voltados para a população negra, abundantes nos Estados Unidos, mas quase inexistentes por aqui. O administrador de 40 anos viu ali uma oportunidade de negócio.
Segundo uma pesquisa do IBGE divulgada em novembro de 2017, quase 55% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos. Embora essa fatia majoritária da população ainda ganhe muito menos que os brancos, no início deste século sua renda cresceu num ritmo maior que a dos brancos, tendência revertida com a crise dos últimos anos. Para Delfino, o potencial de mercado era evidente. “Existe uma demanda reprimida”, afirmou. “A população negra tem dinheiro e quer comprar, mas não há produtos para negros.”
O administrador começou a carreira como office-boy na Siemens e se especializou na área comercial. Em junho do ano passado, largou o emprego de consultor de suprimentos na Comgás, arrumou um sócio e mergulhou no projeto. Encasquetou com a dica de um amigo executivo: para se apresentar ao mercado, ele precisaria ter um produto realmente inovador.
Aí Delfino teve o estalo: a touca de natação. Não uma qualquer, mas uma touca de natação concebida “para cabelos afro, volumosos, cacheados, tranças rastafári ou dreadlocks”, conforme alardeia um folder da empresa que criou. Batizada de DaMinhaCor, a marca começa a vender a touca este mês, somente pela internet. Numa segunda etapa, deverá oferecer também cosméticos.
Delfino nasceu em Osasco e mora em Jandira, também na Grande São Paulo. Um amigo soube da sua ideia de produzir as toucas e levou-o ao salão Zelma Tranças, frequentado por clientes potenciais. A proprietária guardou a dica, e a tirou da cartola quando uma aflita Cida lhe narrou o suplício da filha.
Era um sábado à tarde. Sofia ainda estava com a mãe no cabeleireiro para arrumar o elástico da trança quando Zelma lhes passou o contato de Delfino. Cida mandou uma mensagem pelo celular, respondida de pronto. Não só ele tinha uma touca para a garota, como poderia levá-la ao próprio salão naquela tarde mesmo – para espanto da mãe. Dali a cerca de duas horas o empresário apareceu com uma touca de silicone de cor preta, que vendeu por 68 reais.
A pedido da piauí, a garota voltou a vestir o acessório durante uma conversa no escritório provisório da empresa – uma edícula nos fundos da casa do pai do sócio de Delfino, no bairro paulistano da Lapa. Animada com a ideia de dar uma entrevista, comprara uma roupa nova para a ocasião.
Sofia disse que achou a touca mais confortável que as convencionais. Mas também tinha ressalvas. “Entra um pouquinho de água, mas ainda é bem melhor que as outras de lycra”, afirmou. “É como se eu tivesse passado numa garoa.” Nada que comprometesse seu desempenho. Usando o acessório, a nadadora ganhou uma medalha de ouro no revezamento 4 x 25 metros livre, e outra de prata, nos 25 metros livre.