Imagem escaneada do cérebro em atividade. O ego soberano, com todas as suas armas e medos, seus ressentimentos do passado e preocupações com o futuro, simplesmente não existia mais FOTO_SCIENCE PHOTO LIBRARY
Uma viagem de psilocibina
Eu tinha decidido me entregar a esse grande cogumelo
Michael Pollan | Edição 145, Outubro 2018
Tradução de Rogerio Galindo e Rosiane Correia de Freitas
Minha segunda viagem psicodélica começou ao redor de um altar, no meio de um loft no subúrbio de uma pequena cidade na Costa Leste dos Estados Unidos. No altar, orando, havia uma bela mulher com cabelos louros compridos repartidos ao meio e maçãs do rosto proeminentes, que só menciono porque mais tarde apareceriam durante sua transformação em índia mexicana. Sentada diante do altar de frente para mim, Mary recitava uma reza dos nativos americanos, longa e elaborada, de olhos fechados. Ela invocava o poder de cada um dos pontos cardeais, dos quatro elementos, dos reinos animal, vegetal e mineral, a cujos espíritos implorava que me ajudassem na minha viagem.
Meus olhos também estavam fechados, mas de vez em quando eu não resistia e dava uma espiada para assimilar a cena: o loft cor de abóbora com seus vasos de plantas e símbolos de fertilidade e de poder feminino; o tecido peruano roxo bordado que cobria o altar; e a coleção de itens espalhados por ele, que incluía uma ametista no formato de coração, um cristal roxo sobre o qual havia uma vela, pequenas taças cheias de água, uma tigela com quadrados de chocolate meio amargo, os dois itens “sagrados” que ela me pediu para levar (um Buda de bronze que um amigo trouxera de uma viagem ao Oriente e o medalhão estampado com uma psilocibina e a frase de William Blake que o cientista Roland Griffiths me dera em nosso primeiro encontro) e, bem à minha frente, um prato antigo decorado com motivos florais do tempo da vovó, onde estava o maior cogumelo Psilocybe que já vi. Era difícil acreditar que eu estava prestes a comer um inteiro.
O altar lotado também continha um galho de sálvia e uma cepa de pau-santo, a aromática madeira da América do Sul que os índios queimavam em rituais, além da asa negra de um corvo. Em vários momentos da cerimônia, Mary queimou a sálvia e o pau-santo, usando a asa para “empurrar” a fumaça na minha direção – guiando os espíritos ao redor da minha cabeça. A asa fazia um som sobrenatural quando ela a sacudia perto da minha orelha, o som assustador de uma ave que chega desconfortavelmente muito perto da gente, ou de um espírito maligno sendo expulso de um corpo.
Tudo isso deve parecer ridiculamente piegas, eu sei, mas a convicção com que Mary conduzia a cerimônia, junto com o aroma das plantas queimadas e os sons da asa sacudida no ar – mais o meu próprio nervosismo a respeito da viagem –, tudo isso produzia um encantamento que me permitiu pôr em suspenso a minha incredulidade. Eu tinha decidido me entregar a esse grande cogumelo e a Mary, a guia a quem confiei minha psique nessa viagem, e a cerimônia contava tanto quanto a química. Nesse aspecto, ela agia mais como xamã do que como psicóloga.
Mary foi recomendada por um guia que entrevistei na Costa Oeste, um rabino que se interessou pela minha educação psicodélica. Com a mesma idade que eu, ela foi treinada pelo aluno número 80 e tantos de Timothy Leary que entrevistei, mas que achei excêntrico demais para mim. Alguém pode pensar o mesmo de Mary, na teoria, mas alguma coisa no jeito dela, em sua sobriedade e evidente compaixão me deixava mais à vontade na sua presença.
Mary praticou todo tipo de terapia new age, da cura energética à psicologia espiritual, passando pela constelação familiar[1] antes de ser apresentada, quando tinha 50 anos, à medicina psicodélica (“Ela criou algo que unia todos esses outros trabalhos que eu vinha fazendo”). Até então, Mary só tinha usado compostos psicodélicos uma vez e havia muito tempo: na sua festa de 21 anos na universidade. Um amigo deu a ela um pote de mel com psilocibina. Mary foi imediatamente para o quarto, comeu duas ou três colheradas, e teve “a mais profunda experiência de estar com Deus. Eu era Deus e Deus era eu”. Amigos que estavam na festa no andar de baixo vieram bater à porta do quarto, mas Mary já estava longe.
Na infância, na região de Boston, Mary foi uma católica fervorosa, até descobrir “que era menina” – o que a impedia de celebrar as cerimônias de que gostava tanto. A religiosidade de Mary ficou adormecida até ela provar o mel, que “a catapultou rumo a uma mudança imensa”, como ela me contou quando nos conhecemos. “Encontrei algo com que não me conectava desde criança.” O novo despertar da vida espiritual levou-a rumo ao budismo tibetano, e ela acabou fazendo os votos de iniciação: “‘Ajudar todo ser senciente em seu despertar e iluminação.’ Essa ainda é a minha vocação.”
E agora quem estava sentado diante dela na sala de tratamento era eu, o próximo ser senciente na fila, esperando ser despertado. Contei minha intenção: aprender o que pudesse sobre mim mesmo e também sobre a natureza da consciência – a minha própria, mas também a dimensão “transpessoal”, se é que essa dimensão existe.
“O professor cogumelo ajuda a ver quem realmente somos”, disse Mary, “ele nos leva de volta ao propósito que nossa alma tem aqui nesta vida.” Imagino como essas palavras devem soar para alguém que está de fora. Mas eu já estava habituado ao jargão new age, talvez por ter vislumbrado que havia algo potencialmente valioso para além das palavras batidas. Também estava impressionado com a inteligência de Mary e com seu profissionalismo. Além de me fazer assinar “um termo de anuência” padrão (me submeter à autoridade dela durante a sessão; permanecer na sala até que ela me desse a permissão para sair; nada de contato sexual; e assim por diante), ela também me fez preencher um detalhado formulário médico, um documento jurídico e um questionário autobiográfico de quinze páginas que me tomou boa parte do dia. Tudo isso fez com que eu me sentisse em boas mãos – mesmo que essas mãos estivessem balançando uma asa de corvo em volta da minha cabeça.
Contudo, sentado diante do altar, tive dúvidas se ia conseguir engolir o cogumelo todo. Ele tinha de 12 a 15 centímetros de comprimento, com um chapéu do tamanho de uma bola de golfe. Perguntei se podia esmigalhá-lo num copo de água quente, fazer um chá e tomar.
“É melhor estar totalmente consciente do que você está fazendo”, respondeu ela, “que é comer o cogumelo que veio da terra, uma mordida de cada vez. Examine primeiro, de perto, então comece pelo chapéu.” Ela me ofereceu a opção de acrescentar mel ou chocolate para ajudar a engolir; escolhi o chocolate. Mary disse que um amigo cultiva o Psilocybe e aprendeu o ofício anos antes num workshop do micologista Paul Stamets. Parece que nesse mundo só há um ou dois graus de separação entre as pessoas.
Quando o levei à boca, o cogumelo era seco como o deserto e tinha gosto de papelão com terra, mas alternar cada mordida com um pedaço de chocolate ajudou. Exceto a parte nodosa bem na base do estipe, comi tudo, o que chegou a 2 gramas. Mary planejava me oferecer outros 2 gramas durante a viagem, num total de 4. Era aproximadamente a dose dada aos voluntários nos experimentos da Universidade de Nova York e da Hopkins, o equivalente a quase 300 microgramas de LSD.
Conversamos calmamente por uns vinte minutos até que Mary notou minha face ruborizar e sugeriu que eu me deitasse e colocasse uma máscara de dormir. Escolhi óculos de plástico pretos e modernos, o que em retrospecto me pareceu um erro. O perímetro era todo forrado com espuma preta de poliuretano de modo que, ao abrir os olhos, o usuário se deparava com uma escuridão intensa.
Mary me disse que a chamada Máscara de Relaxamento Mindfold havia sido desenhada especialmente para esse fim pelo artista psicodélico Alex Grey.
Assim que ela colocou a primeira música – uma composição new age realmente insípida de um tal de Thierry David (um artista, como vim a saber mais tarde, cujos trabalhos concorreram três vezes a prêmios na categoria Melhor Álbum Chill/Groove) –, fui imediatamente lançado em um ambiente urbano noturno que parecia gerado por computador. Mais uma vez, o som gerava o espaço (“No início era a nota”, me lembro de ter pensado, me sentindo profundo), e o que classifiquei como música eletrônica de Thierry evocou uma cidade futurística despovoada, na qual cada nota formava pequenas estalagmites ou estalactites negras que juntas lembravam o material em alto-relevo de isolamento acústico usado para revestir estúdios de gravação. (A espuma preta que formava esse ambiente em alto-relevo, percebi depois, era do mesmo material que revestia meus óculos.) Andei sem grande esforço por essa noite digital como se estivesse imerso em uma distopia de videogame. Embora o lugar não fosse particularmente assustador e tivesse certa beleza, odiei estar ali e desejei ir para outra parte, mas aquilo parecia não acabar nunca, pareceu durar horas, sem que eu pudesse sair. Eu disse a Mary que não gostava de música eletrônica e pedi que ela colocasse outra coisa, mas embora o tom do sentimento tenha mudado com a nova música, eu ainda estava preso a esse mundo computadorizado sem sol. Ah, por que eu não podia estar ao ar livre? Na natureza? Como nunca gostei muito de videogames, isso parecia cruel, uma expulsão do jardim: sem plantas, sem pessoas, sem sol.
Não que explorar o mundo computadorizado fosse desinteressante. Assisti, impressionado, às notas musicais se transformarem, uma a uma, em formas palpáveis na minha frente. A música irritante era a divindade que presidia o lugar, uma força gerativa. Mesmo a música new age de spa tinha o poder de lançar padrões fractais no espaço, que cresciam e se ramificavam e multiplicavam ao infinito. Estranhamente, tudo no meu campo visual era preto, mas em muitos tons diferentes e fáceis de ver. Eu estava cruzando um mundo gerado por algoritmos matemáticos, e isso dava a ele certa beleza alienada, sem vida. Mas de quem era esse mundo? Não meu, e comecei a pensar: de quem é esse cérebro em que estou? (Por favor, que não seja o do Thierry David!)
“Isso pode facilmente tomar uma direção assustadora”, pensei, e então uma pequena onda de ansiedade começou a se formar. Relembrando as instruções de voo, eu disse a mim mesmo que não havia nada a fazer além de me entregar e me render à experiência. Relaxe e se deixe levar pela corrente. Isso não era nem de perto igual às viagens anteriores, nas quais permaneci mais ou menos capaz de dominar minha atenção, de direcioná-la e mudar o canal mental à vontade. Não, era mais como estar preso no carrinho da frente de uma montanha-russa cósmica, seguindo precipitadamente por uma trajetória que determinava momento a momento o que ia aparecer no meu campo de consciência.
Na verdade, isso não é de todo preciso: tudo que eu tinha que fazer era tirar os óculos, e a realidade, ou pelo menos algo impreciso baseado nela, iria se reconstituir. E foi o que fiz, em parte para satisfazer minha vontade de ver que o mundo ainda existia, mas sobretudo porque precisava muito urinar.
A luz do sol e as cores inundaram meus olhos, e bebi tudo avidamente, procurando na sala objetos bem-vindos e significativos da realidade não digital: paredes, janelas, plantas. Mas tudo tinha um novo aspecto: brilhava intensamente com a luz. Percebi que talvez devesse voltar a pôr os óculos, o que pelo menos em parte domesticou a cena, mas apenas em parte: os objetos continuavam a enviar suas partículas de luz na minha direção. Levantei com cuidado do colchão, apoiando-me primeiro em um dos joelhos, e então, meio bambo, fiquei em pé. Mary me segurou pelo cotovelo, como se eu fosse um idoso, e juntos cruzamos a sala. Evitei olhar para ela, sem saber o que ia ver no seu rosto ou demonstrar no meu. Na porta do banheiro ela soltou meu cotovelo.
Do lado de dentro, o banheiro era uma rebelião de luzes faiscantes. O arco de água que produzi foi de fato a coisa mais linda que já vi, uma cascata de diamantes despencando numa piscina, rompendo a superfície em bilhões de tilintantes fractais de luz. Isso continuou por uma agradável eternidade. Quando fiquei sem diamantes, fui até a pia e joguei água no rosto, evitando ver meu reflexo no espelho, o que parecia psicologicamente arriscado. Caminhei de forma instável até o colchão e deitei.
Com a voz suave, Mary perguntou se eu queria um “extra”. Respondi que sim e sentei para receber. Mary estava de cócoras a meu lado, e, quando finalmente olhei para o rosto dela, vi que tinha se transformado em María Sabina, a curandeira mexicana que deu Psilocybe a R. Gordon Wasson[2] num porão sujo em Huautla de Jiménez, sessenta anos atrás. Seu cabelo era preto, a pele parecia esticada sobre as proeminentes maçãs do rosto, envelhecido, e ela usava um vestido branco e simples, de camponesa. Peguei o cogumelo seco da mão morena e enrugada da mulher e olhei em outra direção enquanto mastigava. Achei que não devia dizer a Mary o que acontecera com ela. (Depois, quando contei, ela ficou lisonjeada. María Sabina era sua heroína.)
Mas tinha uma coisa que eu precisava fazer antes de pôr os óculos de novo e deitar, um pequeno experimento que contei a Mary durante a viagem. No meu estado, eu não tinha certeza se conseguiria, mas descobri que mesmo no meio da viagem era possível me trazer para algo semelhante à normalidade por alguns momentos.
Eu tinha no meu notebook um vídeo curto de uma máscara girando, usado num teste psicológico chamado ilusão da máscara côncava. Enquanto a máscara gira no espaço, o lado convexo se move para revelar o verso côncavo, e algo incrível acontece: a máscara oca parece saltar para se tornar convexa de novo. Esse é um truque produzido pela nossa mente, que presume que todo rosto é convexo, e então automaticamente corrige o que parece um erro – a menos que, como um neurocientista me disse, você esteja sob a influência de uma substância psicodélica.
Essa capacidade de autocorreção é uma marca da nossa percepção, que em uma mente adulta e sã se baseia tanto naquilo que já sabemos quanto nos dados brutos dos sentidos. Na vida adulta, a mente se torna muito boa em observar e testar a realidade e desenvolver previsões sobre o que pode otimizar nosso uso de energia (mental ou de outros tipos) e com isso nossa sobrevivência. Então, em vez de começar do zero para construir uma nova percepção a partir de cada novo pacote de dados brutos entregues por nossos sentidos, a mente pula para a mais sensata conclusão com base na experiência do passado combinada a uma pequena amostra dos dados. Nossos cérebros são máquinas de previsão otimizadas pela experiência, e, quando se trata de rostos, têm muita experiência: rostos são sempre convexos, portanto essa máscara oca tem um erro de previsão a ser corrigido.
Essas inferências bayesianas (o nome vem de Thomas Bayes, o filósofo inglês do século XVIII que desenvolveu a matemática da probabilidade, na qual essas previsões mentais se baseiam) são úteis na maior parte do tempo, acelerando nossa percepção e poupando esforço e energia, mas também podem nos prender em imagens preconcebidas da realidade que são simplesmente falsas, como no caso da máscara em rotação.
No entanto, parece que a inferência bayesiana deixa de existir em algumas pessoas: esquizofrênicos e, segundo alguns neurocientistas, pessoas sob altas doses de psicodélicos, pois nenhum deles “vê” dessa maneira previsível e convencional. (O mesmo vale para crianças pequenas, que ainda não construíram o banco de dados necessário para previsões confiáveis.) Isso levanta uma questão interessante: é possível que as percepções de esquizofrênicos, de pessoas viajando sob o efeito de compostos psicodélicos e de crianças sejam, pelo menos em alguns casos, mais precisas – menos influenciadas pela expectativa e, portanto, mais fiéis à realidade – do que as de adultos sãos e sóbrios?
Antes de começarmos a sessão, deixei o vídeo aberto no notebook e o reproduzi. A máscara na tela, cinza contra um fundo preto, era claramente o produto de uma animação computadorizada e também indiscutivelmente consistente com o estilo visual do mundo em que eu estava. (Durante minha sessão de integração com Mary no dia seguinte, ela sugeriu que essa imagem no meu notebook pode ter evocado o mundo computadorizado e me prendido nele. Poderia haver uma demonstração melhor do poder do cenário e do ambiente?) Quando o rosto convexo girava para revelar o verso côncavo, a máscara se tornava convexa de novo, só um pouco mais devagar do que antes de eu comer o cogumelo. Estava claro que a inferência bayesiana continuava operacional no meu cérebro. Tentei novamente mais tarde.
Quando voltei a pôr os óculos e deitei, fiquei decepcionado ao me ver outra vez no mundo computadorizado, mas alguma coisa tinha mudado, sem dúvida resultado da dose extra. Antes eu navegava por aquela paisagem como eu mesmo, vendo a cena de uma perspectiva que reconhecia como minha, com minhas atitudes intactas (altamente crítico da música, por exemplo, e ansioso pela possibilidade de surgimento de demônios); agora eu via aquele “eu” familiar começar a se desmontar à minha frente, primeiro aos poucos e depois ruindo de uma só vez.
“Eu” agora tinha me tornado um amontoado de pequenos papéis não muito maiores que um post-it, e eles estavam sendo espalhados pelo vento. Mas o “eu” que observava essa catástrofe aparente não tinha nenhum desejo de correr atrás dos pedaços e empilhar meu antigo eu novamente. Na verdade, não tinha desejos de tipo nenhum. Quem quer que eu fosse agora, essa pessoa estava tranquila com o que viesse a acontecer. O fim do ego? Sem problemas, na verdade era a coisa mais natural do mundo. Então olhei e me vi lá fora de novo, dessa vez espalhado pelo ambiente como tinta, ou manteiga, recobrindo de leve uma ampla extensão do mundo com uma substância que reconhecia como sendo eu.
Mas quem era esse “eu” capaz de ver essa cena de sua própria dissolução? Boa pergunta. Não era eu, exatamente. Aqui, os limites da linguagem se tornam um problema: para conseguir explicar por completo essa divisão que abriu minha perspectiva, eu precisaria de um novo pronome de primeira pessoa. O que estava observando a cena tinha um ponto de vista e uma forma de consciência muito distintos do meu eu habitual; de fato hesito em usar o “eu” que denota a consciência atuante, pois era algo muito diferente da minha primeira pessoa usual. Enquanto o “eu” sempre foi um sujeito encapsulado nesse corpo, aquele não parecia estar preso a corpo algum, embora eu agora tivesse acesso à sua perspectiva. Essa perspectiva era extremamente indiferente, neutra em todas as questões de interpretação, e não se perturbava mesmo diante do que poderia ser visto, não sem razão, como um desastre pessoal não mitigado. Contudo, o que é “pessoal” tinha sido obliterado. Tudo o que antes eu era e tudo que se chamava eu, esse eu construído em seis décadas, fora liquidificado e disperso pela cena. O que sempre tinha sido um sujeito pensante, sensível, consciente e baseado no aqui era agora um objeto no espaço. Eu era tinta!
O ego soberano, com todas as suas armas e medos, seus ressentimentos do passado e preocupações com o futuro, simplesmente não existia mais, e não havia mais ninguém para lamentar seu desaparecimento. Mas algo tomou seu lugar: essa consciência nua e incorpórea, cujo olhar vagava pela cena de sua própria dissolução com uma indiferença benigna. Eu estava presente na realidade, mas como algo diferente do meu eu. E mesmo que não mais existisse um eu para sentir exatamente, havia um tom de sentimento, que era calmo, aliviado, contente. Havia vida após a morte do ego. E isso era ótimo.
Quando repenso essa parte da viagem, às vezes acho que essa consciência duradoura pode ter sido a “Onisciência” que Aldous Huxley descreveu durante sua viagem com mescalina em 1953. Huxley nunca explicou de fato o que queria dizer com o termo – exceto ao falar da “ampla sabedoria inerente à Onisciência” –, mas ele parece estar descrevendo uma forma de consciência universal, compartilhável, não presa a um único cérebro. Outros chamaram isso de consciência cósmica, Sobrealma, Mente Universal. Supostamente ela existe fora de nossos cérebros – como propriedade do Universo, da mesma forma que a luz ou a gravidade, e tão difusa quanto elas. E igualmente constitutiva. Certos indivíduos em determinados momentos ganham acesso a esse modo de percepção, o que lhes permite perceber a realidade à luz dessa consciência aperfeiçoada, pelo menos por algum tempo.
Nada na minha experiência me levou a acreditar que essa nova forma de consciência se originou fora de mim; parece igualmente plausível, e com certeza mais crível, presumir que foi um produto do meu cérebro, assim como o ego que ela substituiu. Mas isso por si só me parece uma dádiva notável: o fato de podermos abandonar tanta coisa – os desejos, os medos e as defesas de uma vida inteira! – sem sofrer uma completa destruição. Isso talvez não seja surpresa para budistas, transcendentalistas ou meditadores experientes, mas com certeza era novidade para mim, que nunca senti nada além do meu próprio ego. Poderia existir outro chão no qual fixarmos nossos pés? Pela primeira vez desde que embarquei nesse projeto, comecei a entender o que os voluntários dos experimentos sobre ansiedade e câncer tentavam me dizer: como uma viagem psicodélica lhes oferecia uma perspectiva em que era possível encarar de modo objetivo as piores coisas da vida, inclusive a morte, e aceitá-las com tranquilidade.
Na verdade, essa compreensão chegou um pouco mais à frente, na última parte da viagem com psilocibina, quando a experiência se tornou mais sombria. Depois de passar o que pareceram horas no mundo computadorizado – pois minha noção de tempo se perdeu por completo –, registrei o desejo de voltar à realidade e urinar outra vez. Mesmo esquema: Mary me guiou até o banheiro pelo cotovelo, como se eu fosse um idoso, e me deixou lá para produzir outra safra de diamantes. Porém, dessa vez, arrisquei me olhar no espelho. O que me olhou de volta foi uma caveira humana, a não ser pela mais fina e pálida camada de pele esticada sobre ela, firme como a pele de um tambor. O banheiro era decorado com arte popular mexicana, e na mesma hora a cabeça/caveira me trouxe à mente o Dia dos Mortos. Com suas cavidades profundas e uma veia relampejante ziguezagueando de um lado até a parte de baixo da têmpora, reconheci essa cabeça cinza/caveira como a minha própria, mas ao mesmo tempo como a de meu falecido avô.
Isso era surpreendente, porque nunca tive muita afinidade com Bob, o pai do meu pai. De fato eu o amava por tudo que nele parecia diferente de mim – ou de qualquer outra pessoa que conheci. Bob era extraordinariamente alegre e parecia ser um homem simples incapaz de pensar mal de alguém ou ver o mal no mundo. (Sua esposa, Harriet, contrabalançava amplamente a generosidade de espírito dele.) Bob teve uma longa carreira como vendedor de bebidas, fazendo rondas semanais nas boates da Times Square para uma empresa que todo mundo, exceto ele, sabia ser de propriedade da máfia. Ao chegar à idade que tenho hoje, ele se aposentou e passou a pintar cenas lindamente ingênuas e abstrações com cores espetaculares; eu havia trazido uma delas para a sala de Mary, junto com uma aquarela de Judith, minha mulher. Bob era um homem genuinamente feliz e sem angústias que viveu até os 96 anos, pintando telas cada vez mais coloridas, abstratas e livres à medida que aproximava o seu fim.
Vê-lo tão vividamente no meu reflexo foi arrepiante. Poucos anos antes, ao visitar Bob numa casa de repouso no deserto do Colorado onde ele logo morreria, vi um homem que sempre estivera em forma e cheio de vigor (até os 80 anos ele manteve o hábito diário de plantar bananeira) contraído e abandonado numa pequena cama, parecendo um parêntesis de pele e ossos. Os músculos esofágicos necessários para engolir não funcionavam mais, e ele estava preso a um tubo de alimentação. A essa altura, sua situação era triste em muitos aspectos, mas por alguma razão me fixei no fato de que ele não voltaria a sentir o gosto da comida passando pelos lábios.
Joguei água fria no rosto que compartilhávamos e caminhei hesitante de volta para Mary.
Arrisquei olhar de novo para ela e dessa vez fui recompensado com a visão de uma mulher jovem arrebatadora, novamente loura, mas agora na plenitude radiante da juventude. Mary era tão linda que precisei desviar o olhar.
Ela me deu mais um pequeno cogumelo – o quarto grama – e um pedaço de chocolate. Antes de pôr os óculos, tentei fazer o teste da máscara giratória uma segunda vez… e foi um completo fracasso, nem confirmando nem descartando a hipótese. Quando a máscara começou a girar, aos poucos revelando seu verso, tudo se dissolveu numa geleia cinza que escorreu pela tela do notebook antes que eu pudesse determinar se a máscara dissolvida era convexa ou côncava. Fazer experimentos psicológicos durante uma viagem não é uma boa ideia.
Pus meus óculos e afundei de volta no que agora se tornara um ambiente desértico, rachado e ressequido, repleto de artefatos e imagens fúnebres. Ossos e caveiras embranquecidos e os rostos de mortos conhecidos passaram por mim, tias, tios e avós, amigos, professores e meu sogro – enquanto uma voz me dizia que eu não tinha chorado adequadamente por eles. Era verdade. Nunca lidei de fato com a morte de ninguém na minha vida; sempre havia algo no caminho. Eu poderia fazer isso aqui e agora, e foi o que fiz.
Olhei intensamente para cada rosto, um depois do outro, com uma piedade sem fim, mas sem nenhum medo. Exceto em um momento, quando cheguei à minha tia Ruthellen e vi, apavorado, o rosto dela se transformar no de Judith. Ruthellen era artista, como Judith, e ambas foram diagnosticadas com câncer de mama na mesma época. O câncer matou Ruthellen e poupou Judith. Então o que Judith estava fazendo aqui entre as mortes não lamentadas? Estaria eu me protegendo dessa possibilidade todo esse tempo? Com o coração completamente aberto, as defesas se desmanchando, as lágrimas começaram a fluir.
Deixei de fora uma parte importante da minha viagem ao mundo subterrâneo: a trilha sonora. Antes de mergulhar na última parte da viagem, pedi a Mary que, por favor, parasse de tocar música de spa e colocasse algum clássico. Escolhemos a Suíte para Violoncelo nº 2, de Bach, gravada por Yo-Yo Ma. A suíte em ré menor é uma peça triste e concisa que ouvi muitas vezes antes, com frequência em funerais, mas que nunca tinha realmente ouvido até aquele momento.
Embora “ouvir” não faça justiça ao que aconteceu entre mim e as vibrações do ar provocadas pelas quatro cordas do violoncelo. Nunca antes uma peça musical me tocou tão profundamente. Embora chamar aquilo de “música” seja diminuir o que começava a fluir, e que não era nada além de um fluxo de consciência humana, algo em que se pode procurar o próprio sentido da vida e, caso você possa suportar, ler o último capítulo da vida. (Uma pergunta surgiu: por que não tocamos música como essa em nascimentos, assim como tocamos em funerais? E a resposta veio imediatamente: há muito da vida já vivida nessa peça, e uma pungência pela passagem do tempo que nenhum nascimento, nenhum começo, poderia suportar.)
Depois de quatro horas de viagem e 4 gramas de cogumelo mágico, foi nesse ponto que perdi qualquer habilidade que ainda me restava de distinguir entre sujeito e objeto, separar o que permaneceu de mim e o que era a música de Bach. Em vez do olho transparente de Ralph Waldo Emerson, sem ego e repleto de tudo o que viu, eu me tornei uma orelha transparente, indistinta do fluxo de som que inundava minha consciência até que não houvesse mais nada nela, nem mesmo um único minúsculo canto seco onde colocar um “eu” e observar. Aberto à música, me transformei primeiro nas cordas, sentindo na minha pele a fricção delicada da crina de cavalo do arco se esfregando em mim e depois a brisa do som passando enquanto cruzava os lábios do instrumento e seguia em direção ao mundo, iniciando sua viagem solitária pelo Universo. Então passei para o poço negro de ressonância dentro do violoncelo, o envelope de ar vibrante formado pelas curvas de seu telhado de abeto e das paredes de carvalho. O interior de madeira do instrumento formava uma boca capaz de uma eloquência sem paralelo – na verdade, capaz de articular tudo que um ser humano pudesse conceber. Mas o interior do violoncelo também formava uma sala onde se podia escrever e uma caveira na qual pensar, e agora eu era aquilo, simplesmente.
Então me tornei o violoncelo e lamentei com ele pelos vinte minutos ou mais que aquela peça levou para, bem, mudar tudo. Ou foi isso que pareceu; agora, com as vibrações cedendo, estou menos certo. Mas, enquanto aqueles momentos extraordinários duraram, a suíte de violoncelo de Bach teve o efeito inconfundível de me reconciliar com a morte – com as mortes das pessoas que agora estavam diante de mim, Bob e Ruthellen, o pai de Judith, Roy, e tantos outros, mas também as mortes que virão e a minha própria, já não tão distante. Ao me deixar levar por essa música tive uma espécie de treinamento para aquilo – para me perder, ponto final. Ao largar a corda do eu e me deixar escorregar para as águas mornas dessa beleza mundana – a música sublime de Bach, digo, e o arco de Yo-Yo Ma acariciando aquelas quatro cordas suspensas sobre um envelope de ar –, senti como se tivesse passado para longe do alcance do sofrimento e do arrependimento.
Esta foi a minha viagem de psilocibina, que relatei da forma mais fiel que pude. Enquanto leio essas palavras agora, dúvidas voltam com força total: “Tolo, você estava sob o efeito de drogas!” E é verdade, você pode pôr esse rótulo conveniente na experiência e jogá-la fora, para nunca mais ter que lidar com ela. Sem dúvida esse foi o destino de inúmeras viagens psicodélicas cujos viajantes não souberam muito bem o que fazer, ou às quais não conseguiram dar sentido. No entanto, embora seja verdade que o que me lançou nessa viagem foi uma substância química, também é verdade que experimentei tudo que experimentei: esses foram os eventos que aconteceram na minha mente, fatos psicológicos que não foram nem sem peso, nem voláteis. Ao contrário da maioria dos sonhos, essas experiências deixaram traços indeléveis e acessíveis.
No dia seguinte à viagem fiquei feliz pela oportunidade de voltar à sala de Mary por algumas horas para a “integração”. Eu esperava dar sentido ao que acontecera ao contar sobre a viagem e ouvir ideias dela sobre aquilo. O que você acabou de ler é o resultado desse trabalho, pois imediatamente após a viagem eu estava muito mais confuso do que agora. O que agora se lê como uma narrativa razoavelmente coerente destacando alguns temas começou como uma confusão de imagens desconexas e fragmentos de sentido. Pôr em palavras uma experiência que no momento foi de fato inefável e transformá-la em frases e depois em uma história é inevitavelmente um tipo de violência. Mas a alternativa é literalmente impensável.
Mary havia desmontado o altar, mas sentamos nas mesmas cadeiras, de frente um para o outro ao redor de uma pequena mesa. Vinte e quatro horas depois, o que eu tinha aprendido? Que não tinha nenhuma razão para ter medo: nenhum monstro adormecido despertou no meu inconsciente e se voltou contra mim. Esse era um medo profundo que existia há décadas, desde um momento assustador num quarto de hotel em Seattle quando, sozinho e tendo fumado muita maconha, precisei reunir muita vontade para me impedir de fazer algo realmente louco e irrevogável. Mas aqui estava eu numa sala na qual baixara completamente a guarda, e nada terrível acontecera. A serpente da loucura que eu temia estar à espera não apareceu para me puxar para as profundezas. Isso significa que ela não existe, que sou psicologicamente mais forte do que imaginava? Talvez o episódio com Bob tenha a ver com isso: talvez eu fosse mais parecido com ele do que imaginava, e não tão profundo ou complicado como gosto de imaginar. (O reconhecimento da minha própria superficialidade se qualifica como uma revelação profunda?) Mary não estava tão certa: “A cada vez você traz um ‘eu’ diferente para a viagem.” Os demônios podem surgir na próxima vez.
Ter sobrevivido à dissolução do meu ego sem esforço e sem me transformar numa poça era bom, mas melhor ainda era descobrir que podia haver outra perspectiva – menos neurótica e mais generosa – a partir da qual assimilar a realidade. “Só isso já parece valer o ingresso”, disse Mary, e tive que concordar. Contudo, 24 horas depois, meu ego tinha voltado ao trabalho e estava vigilante, e, sendo assim, qual bem de longo prazo havia naquele vislumbre sedutor de uma perspectiva mais elevada? Mary sugeriu que, tendo experimentado uma forma diferente, menos defensiva de ser, eu poderia aprender, pela prática, a relaxar o comando bélico que o ego tem sobre minhas reações a pessoas e acontecimentos. “Agora você tem a experiência de outra forma de reagir – ou não reagir. Isso pode ser cultivado.” A meditação, sugeriu, era um modo de fazer isso.
Imagino que seja precisamente essa a perspectiva que permitiu a muitos voluntários que entrevistei superar medos e ansiedades, e, no caso dos fumantes, seu vício. Temporariamente livres da tirania do ego, com suas enlouquecedoras reações reflexivas e sua concepção limitada do interesse próprio, conseguimos experimentar uma versão extrema da “capacidade negativa” de Keats – a habilidade de existir em meio a dúvidas e mistérios sem instintivamente tentar encontrar certezas. Cultivar esse modo de consciência, com seu grau excepcional de ausência de ego (literalmente!), requer transcender nossa subjetividade ou – o que dá na mesma – ampliar nosso círculo a ponto de ele absorver, além de nós mesmos, outras pessoas e, além disso, toda a natureza. Agora eu entendia como os compostos psicodélicos podem ajudar a fazer exatamente esse movimento, da primeira pessoa do singular para o plural e além. Sob sua influência, nosso sentimento de interconexão – esse clichê – é sentido, se torna concreto. Embora essa perspectiva só possa ser sustentada por uma substância química por poucas horas, essas horas podem nos dar uma oportunidade de ver como isso é. E talvez de praticar o estar lá.
Deixei o loft de Mary em um alto astral, mas com o sentimento de que estava segurando algo precioso pelos mais finos e frágeis fios. Parecia duvidoso que eu pudesse manter essa perspectiva pelo resto do dia, que dirá pelo resto da vida, mas a tentativa parecia valer a pena.
Trecho do livro Como Mudar sua Mente, a ser lançado pela editora Intrínseca em novembro.
[1] A terapia de constelação familiar, criada pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, postula que nossos ancestrais exercem um papel oculto em nossas vidas e busca ajudar para que façamos as pazes com essas presenças fantasmagóricas.
[2] Robert Gordon Wasson (1898-1986) foi um botânico amador que fez significativas pesquisas a respeito de cogumelos. No pioneiro relato “Em busca do cogumelo mágico”, publicado na revista Life em 1957, ele descreveu sua experiência de ingestão de cogumelos alucinógenos do gênero Psilocybe.