ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2013
Unidos pela perua
Um encontro de colecionadores do carro prestes a sair de linha
Nathalia Lavigne | Edição 84, Setembro 2013
Eduardo Gedrait Pires saiu de casa às sete da manhã no último domingo de julho. Ansioso para exibir sua Kombi verde-clara ano 1958, ele seguiu até a região do Mandaqui, Zona Norte de São Paulo, e estacionou antes de todo mundo. Quando um pequeno grupo já havia se formado, o advogado aproveitou o quórum para fazer uma verdadeira retrospectiva das mudanças sofridas pela tradicional perua.
“Em 1961, eles aboliram a ‘bananinha’ e puseram a seta. Em 1963, colocaram mais vidros atrás. Em 1967, mudaram o para-choque, que passou do modelo ‘almofadinha’ para aquele liso. Só em 1975 mudaram para essa Kombi parecida com a de hoje: lanterna grande e vidro inteiro na frente”, discorreu Pires, usando seu veículo modelo Standard como exemplo para apontar as transformações. O ápice se deu quando ele apontou para a arcaica “bananinha”, um acessório protuberante na lateral do carro, com formato semelhante ao da fruta, que fazia a função de sinalizador e saiu de linha porque colocava em risco pedestres menos atentos.
Eduardo Pires é o presidente do Sampa Kombi Clube, que fundou em 2011. A associação nasceu como uma forma de trocar informações sobre o Kombinationsfahrzeug (veículo combinado, na denominação original alemã), e tem hoje cerca de 300 membros. Desde meados de julho, a procura pelo clube aumentou. Tudo por causa dos rumores, enfim confirmados em meados de agosto, de que a Kombi deixará de ser produzida no final deste ano.
Além dos encontros promovidos em São Paulo no último domingo de cada mês, o Sampa Kombi Clube mantém um site e uma comunidade no Facebook com quase 14 mil seguidores. O perfil exibe peças publicitárias da década de 60, fotos e vídeos de Kombis e objetos temáticos, como almofadas, taças e até uma churrasqueira feita a partir de um modelo em miniatura. “Respondo a uns vinte e-mails por dia e preciso atualizar a página umas cinco vezes, senão não dou conta”, afirma Pires, um calvo precoce de 38 anos, com gosto pelas citações enciclopédicas.
Com 55 anos de estrada e um visual estacionado na década de 60, a Kombi é o modelo de carro mais antigo em fabricação no país. Embora muitos a considerem charmosa, sua roupagem ultrapassada é o motivo da aposentadoria: é quase impossível adaptar o projeto original para receber freios ABS e airbags, que serão obrigatórios em todos os carros saídos da fábrica a partir de janeiro de 2014.
Para marcar o fim da produção, a Volkswagen anunciou uma edição especial limitada no clássico modelo azul e branco, chamado de saia e blusa. Pires chegou a pensar em fazer uma vaquinha com os companheiros do clube para garantir uma no acervo, mas desistiu quando soube do preço: 85 mil reais (hoje, o modelo novo mais caro sai por pouco mais de 52 mil reais). “Vai ser difícil arrecadar esse valor”, lamentou.
No final de julho, muitos aficionados da Kombi ainda tinham a esperança de que a fabricante encontraria uma forma de adaptar o carro às novas exigências. Pires não tinha mais ilusões. “Hoje estive na fábrica da Volkswagen. São produzidas 115 Kombis por dia, contra 1 800 de outros modelos. Entende por que a Kombi vai sair de linha?”, escreveu-me, fatalista, em 23 de julho.
O envolvimento de Pires com a Kombi não é tão antigo. Ele só foi comprar seu primeiro veículo em 2010. Como fazia questão de um modelo anterior a 1975, levou sete meses procurando até se interessar por uma Standard bege, ano 1974, anunciada no Mercado Livre. Partiu na mesma semana para Batatais, a 355 quilômetros de São Paulo, e fechou negócio. Quando começou a restauração, viu-se diante de um desafio: “Ninguém sabia qual era o para-choque ou a lanterna original da Kombi 1974. Foi nessa época que pensei em criar o clube para facilitar o acesso a essas informações.”
O trabalho para deixar o carro tal qual havia saído da fábrica levou cerca de um ano e lhe custou 9 mil reais, o mesmo valor que pagou pelo veículo.
Numa noite de terça-feira, em agosto de 2011, um e-mail caiu como um raio na sua caixa de mensagem: era o anúncio de uma Standard, ano 1958. “Quase não acreditei que alguém pudesse estar vendendo uma 1958”, disse Pires, eufórico. Três dias depois, lá foi ele para a cidade de Rio Negro, no Paraná, atrás da Kombi – mais uma para restaurar, da calota ao capô. “Vendi a outra por 18 mil reais e paguei toda a reforma [da Kombi recém-adquirida]. Mas deixei tudo original, e hoje ela não vale menos de 100 mil reais.”
O modelo de 1958 é, de fato, uma peça rara no mercado de carros antigos. Faz parte da primeira série de Kombis produzidas no Brasil, quando metade das peças ainda vinha da Alemanha, e talvez seja o exemplar mais antigo em circulação.
Mas a preocupação com a originalidade não é comum a todos os fãs. No encontro daquele domingo, o carro de maior sucesso não foi a Standard 1958, mas uma 1972 vinho e bege de Edson Roberto Colombo. O interior da perua era uma exuberância só: estofamento em L no estilo limusine, aparelho de tevê de 23 polegadas e caixas de som de alta potência. O motor turbo dava o arremate para a descaracterização completa. A única coisa original era uma bonequinha de hula-hula exibida no painel, importada do Havaí.
Colombo é adepto das chamadas estilizações. Fanático por carros antigos, já chegou a ter quatro Kombis na garagem ao mesmo tempo. “Recebi uma herança em 2010 e saí comprando Kombi. Foi numa época em que o mercado deu aquele boom. Comprava customizada e vendia depois”, contou o metalúrgico.
Pensando por esse lado, a notícia do fim da fabricação não chegou a abalar as expectativas dos sócios do Sampa Kombi Clube. “Acho que o interesse pelo carro pode até aumentar”, previu Pires. Já Colombo preferiu se precaver. Há cerca de oito meses, tatuou a frente de sua Kombi 1972 no ombro esquerdo. Esta, pelo menos, não vai acabar nunca.