ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Vai uma prece aí, freguesa?
Drive-thru da oração soluciona qualquer problema, menos o trânsito.
Tomás Chiaverini | Edição 46, Julho 2010
Neste enregelado anoitecer de junho, ao volante de seu moribundo Fiat Uno, Maria Lopes, de 57 anos, é só desolação. As bijuterias que vende para garantir o sustento foram furtadas de sua casa, ela acaba de sair da delegacia, não tem esperanças de que a justiça terrena interceda a seu favor e, perfeitamente derrotada, se vê presa num congestionamento descomunal na Vila Mariana, em São Paulo – especificamente, no trecho mais largo da Domingos de Morais.
De repente, nesse mar vermelho de luzes de freio, lá vem coisa. Um rapaz parece caminhar bem em direção a Maria. Como um Moisés pós-industrial que partisse o oceano de carros, ele ergue um cartaz acima da cabeça: “Nunca diga não para uma oração.” Frequentadora ocasional de templos evangélicos, Maria não poderia estar mais de acordo. Jamais recusaria um tête-à-tête com o Criador, ainda mais na atual conjuntura.
Cem arrastados metros adiante e o seu agonizante Unozinho é cercado por um coletivo de jovens evangélicos que agitam os braços e distribuem panfletos. Outros tantos metros e já não resta dúvida: o Senhor chama. Apenas que, enjoado de se fazer anunciar por arbustos em chamas, pombas alvíssimas ou trovões tonitruantes, dessa vez Ele optou por uma singela faixa que duas belas jovens fiéis seguram com circunspecção: DRIVE-THRU DE ORAÇÃO – RECEBA UMA E ORAÇÃO SEM SAIR DO CARRO…
Outro rapaz agora para ao lado do Fiat e pergunta: “Vai uma oração, senhora?” Maria nem pensa. Com notável destreza, dá seta e entra na rampa que leva a uma pequena tenda branca, erguida diante do recém-inaugurado templo da igreja Universal na Vila Mariana.
PARE, ORE, SIGA, diz o adesivo colado no toldo, obra do pastor Osvaldo Volpini, o homem de Deus responsável por aquele templo. Ele está na melhor quadra de sua vida. Aos 33 anos, tem o vigor da mais cristã das idades. Seu cabelo é escovinha e ele veste jaqueta de tactel e calça de microfibra. Exala otimismo e felicidade, um homem convicto da precisão de sua obra.
Na verdade, parcialmente sua. A ideia original do drive-thru de oração veio do bispo Renato Cardoso, que implantou o sistema na Universal de Houston, no Texas. Foi lá que surgiu, nos idos de 1931, a primeira lanchonete drive-thru de que se tem notícia. Modesto, Volpini explica que sua contribuição se resumiu a transplantar a iniciativa para o Brasil. “Eu estava olhando a fachada desse templo, quando Deus me deu essa ideia”, explica. A iniciativa deve ser estendida a todas as unidades do Brasil que tiverem espaço adequado.
O serviço está ativo há cerca de um mês – das 18 às 21 horas, para aproveitar o generoso horário de pico paulistano – e mobiliza umas dez pessoas, entre pastores e obreiros. A esses últimos cabe atrair os motoristas. Sem ligar para o frio de 14 graus, eles se metem por entre os carros, desviam dos motoboys e às vezes chegam a atrapalhar o trânsito.
A maioria dos motoristas, por sua vez, parece ter algum receio de retaliações divinas, pois raramente se ouve uma buzina, o que não significa, em absoluto, dar canja para o assédio. Em geral, os obreiros são recebidos com caretas e cabeças que dizem não. No entanto, há quem se arrisque a ludibriá-los, como aquele motorista que desce o vidro, faz que ouve, diz que gostaria, sim, de orar e está até precisando, mas aí o sinal abre e ele acelera, sem maiores considerações com a palavra do Senhor.
Há casos de sucesso, claro. Com orgulho, o pastor conta que já orou até para umbandista. A maioria dos que desviam o carro para a tenda, entretanto, já é membro da Universal, como Maria Lopes. Assim que ela estaciona o carro sob o toldo, o pastor se aproxima e pergunta se ela está enfrentando algum problema específico.
Geralmente as reclamações são de ordem financeira, campo em que a Universal desenvolveu uma expertise própria, muito dinâmica, como prova sua programação na tevê. De todo modo, os religiosos do drive-thru estão preparados para dar uma mãozinha seja qual for a aflição. Nesta noite, rezaram para curar uma cefaleia, um sangramento uterino e uma surdez inexplicável. Somente pedidos para fazer fluir o trânsito não são atendidos.
Sempre ao volante, Maria Lopes relata brevemente as suas desventuras. O pastor unge a testa da motorista com óleo, depois espalma a mão direita na cabeça dela, espalma a esquerda no para-brisa, fecha os olhos e espera até que a conexão wireless com o Todo-Poderoso se estabeleça: “Meu Deus!”, exclama, “ela me disse que acabou de ser roubada, mas o Senhor pode muito bem restituir, meu Pai do Céu! E fazer, meu Deus, com que aquilo que ela perdeu, ela venha a recuperar! Porque o Senhor é dono do ouro e da prata, meu Deus!”
Em seguida, atestando com o rabo de olho as condições precárias da charanga pilotada por Maria, o pastor faz um adendo providencial: “Aproveito para orar por este carro, Senhor! Para que o Senhor livre este veículo do roubo, da bala perdida e do sequestro!” Pronto. Em menos de cinco minutos Maria é liberada para voltar ao congestionamento. Garante que está aliviada e tem certeza de que essa prática oração lhe devolverá a mercadoria roubada.
Antes de ligar o Fiat, pergunta se precisa pagar e é informada que não, de jeito nenhum. “Se quiser fazer uma doação, tudo bem, mas no culto”, explica o pastor. Até as 20h30, Volpini e sua equipe terão atendido 39 motoristas, incluindo quatro taxistas, dois carteiros e um repórter da Folha de S.Paulo que precisa voltar ao jornal com provas de que a Universal cobra pelas preces.
A poucos instantes de fechar a tenda, um obreiro aproveita para abordar um derradeiro taxista: “Senhor, o semáforo está fechado. Então o senhor entra aqui, recebe uma prece e em 30 segundos sai lá na frente. Vai ultrapassar toda essa fila de carros.” O homem olha para a frente, olha para os lados, calcula prós e contras e resolve acatar a sugestão. É apenas um motorista paulistano e, como tal, a essa altura deve estar com as ambições na lona. Avançar uns metros já dá para chamar de bênção.