ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
“Velhinhos como eu”
Um ex-ministro interino canta no YouTube
Manuela Ferraro | Edição 190, Julho 2022
Era um tanto a contragosto que o paulista Antônio Carlos Tatit Holtz costumava cantar a Marselhesa, aos 7 anos de idade, acompanhado por um tio no piano, em meados da década de 1940. Soltar o gogó como coroinha da igreja ou entoar os hinos brasileiros de frente para os colegas na escola também eram atividades que não lhe agradavam. Mas, aos poucos, ele descobriu o prazer da música, graças ao incentivo da família e às aulas de piano na adolescência.
Durante a época da faculdade, tomou gosto pelo canto. Nas noites frias das férias de julho em Itararé, sua cidade natal, saía pelas ruas com dois companheiros para fazer serenatas – e foi assim, com boleros e sambas-canções, que acabou conquistando o coração de Graciema Pimentel, com quem é casado até hoje. Amigos também recorriam ao talento do rapaz para alegrar aniversários. Em uma festa, ao mostrar suas habilidades vocais, ele recebeu um elogio do cantor Agostinho dos Santos, expoente da MPB na época, que lhe entregou um cartão da Rádio Gazeta e o incentivou a se profissionalizar. “Nunca usei aquele cartão, porque queria ser engenheiro”, conta Tatit Holtz, que faz 86 anos neste mês.
Ele se formou em engenharia civil pela USP e dedicou-se com afinco à profissão. Trabalhou quase vinte anos na Eletrobras, onde foi diretor e conselheiro. No último ano do governo Sarney (1985-90) foi nomeado secretário-geral do Ministério de Minas e Energia. Quando o ministro Vicente Fialho se ausentava, era ele quem assumia como interino.
Na aposentadoria, Tatit Holtz passou a levar as netas para as aulas de canto na Paideia, uma escola de música de Curitiba, onde vive com a família. Em 2018, decidiu retomar o hábito da juventude e se matriculou na instituição. Estudou técnicas vocais, praticando com canções francesas, inglesas e brasileiras. Depois de alguns meses, levou seu timbre de barítono aos palcos pela primeira vez, no Espaço Cultural Capela Santa Maria. Foi aplaudido com entusiasmo por sua interpretação de Gente Humilde (de Garoto, Vinicius de Moraes e Chico Buarque). “É um regozijo que sinto até hoje”, afirma Tatit Holtz.
O engenheiro-cantor descreve sua época no Ministério de Minas e Energia como “atribulada”. A Constituição de 1988 estava sendo implementada e impactou enormemente o setor energético. “Precisávamos equilibrar as finanças com uma inflação galopante. Decidir o que poderia ser garimpado na Amazônia e que combustíveis a Petrobras iria produzir. Um monte de abacaxis, mas aprendi bastante”, recorda. No currículo, ele coleciona também experiências internacionais, tendo trabalhado para a Organização Latino-Americana de Energia (Olade), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Organização dos Estados Americanos (OEA), entre outras entidades.
Em fevereiro de 2021, o governo Bolsonaro publicou uma medida provisória que abriu o caminho para a privatização da Eletrobras, chancelada meses depois pelo Congresso. O presidente e o ministro da Economia, Paulo Guedes, também defendem a desestatização da Petrobras. Tatit Holtz não tem opinião formada sobre o assunto. “Quando entrei na Eletrobras, ela era praticamente um banco que financiava projetos de energia. Mas mudou bastante, e a dinâmica do mundo também. Teria que estudar para saber qual é a melhor solução”, diz.
Ele anda mais preocupado com sua carreira musical. No início do ano passado, foi convidado por uma escola de francês para participar de uma live sobre a chanson française – e surgiu daí a ideia de divulgar suas performances no YouTube.
Primeiro, ele gravou em estúdio algumas das músicas que cantava nas serenatas, como presente de aniversário para sua mulher. Depois, vieram vídeos mais elaborados, feitos com a ajuda dos amigos nos arranjos e de um de seus filhos, responsável por inserir a imagem do pai em cenários virtuais. Cantando Speak Low (de Kurt Weill e Ogden Nash), Tatit Holtz aparece num confortável apartamento em Londres, com vista para a cidade à noite. Na interpretação de Esta Tarde Vi Llover (do mexicano Manzanero), canta de terno em frente a uma lareira, na sala de um castelo medieval. Um terceiro vídeo mostra apenas o seu rosto entre ondas do mar e, depois, ao lado de uma vela acesa, em um tributo ao compositor francês Michel Legrand.
Un Parfum de Fin du Monde, outra canção de Legrand, embala o seu vídeo favorito. Dessa vez, foi outro filho que inseriu Tatit Holtz digitalmente nas calçadas da Nova York dos anos 1960, em um dueto com Julia Alexandre Saggin, sua professora de canto.
Tatit Holtz tem 29 vídeos no canal e acumula 109 seguidores. É um número modesto para os padrões do YouTube, mas os fãs são efusivos nos comentários. “Ficou muito bom. Parece trilha de James Bond”, escreveu um seguidor a respeito de uma das homenagens a Legrand. “Meu propósito é mostrar que, mesmo depois de aposentado, qualquer um pode começar a se educar e desfrutar de outro tipo de atividade além da que exerceu durante sua vida profissional”, explica o cantor na descrição da página.
Três anos antes de se aposentar, Tatit Holtz foi diagnosticado com um câncer na próstata. O tumor foi retirado, e a doença não reapareceu. Na ocasião, o médico disse, baseado sabe-se lá em que cálculos, que o cantor teria mais dezessete anos de vida. “Esses dezessete anos acabaram em 2012. E eu ainda estou aqui”, celebra.
O episódio aumentou sua gana de não perder tempo. Nem a pandemia fez com que parasse de cantar. No isolamento, continuou fazendo aulas em vídeo e confessa que gostou, já que pode repetir os exercícios gravados até se sentir seguro. Ele acha que a internet amplia horizontes e permite uma educação de qualidade, mesmo dentro de casa. E aconselha: “Velhinhos como eu que pararam de cantar, voltem a fazê-lo. Não nos faltam mais instrumentos para isso.”