O cão se aproxima. Faço-o saber que tenho conhecimento da sua essência. O animal segue, indiferente. Mal sabia que a guerra se avizinhava, bem mais ousada e exaustiva ILUSTRAÇÃO: ANTON MARRAST
Velocidade máxima
Os surtos e as sucessivas internações de uma jovem bipolar
Helena Gayer | Edição 99, Dezembro 2014
“O Araketu/O Araketu/Quando toca/Deixa todo mundo/Pulando que nem pipoca.” Lá vou eu, dançando axé atrás de um carro de som. Equilibrada em cima de uma sandália de salto alto e com um vestido curto de linho, requebro em meio à multidão.
Ao sair de casa, meu destino não era bem esse, mas a música me envolve e minha mente já alterada se rende àquele clima. Quando o êxtase passa, retomo meu verdadeiro rumo: sigo para um retiro espiritual numa igreja evangélica. Percorro várias quadras e sou bem recebida. Pelo menos é o que registra minha percepção de psicótica em pleno surto.
Os jovens ficariam alojados no salão da igreja durante todo o feriado de Carnaval. Chego sem mala, com uma indumentária nada condizente com a situação, mas desconsidero tais evidências. Acabam me arranjando trajes mais decentes. Na minha vertigem, permaneço alheia naquele ambiente, que acabaria por se mostrar um tanto quanto hostil.
Lembro de acompanhar os cânticos com mais entusiasmo do que o protocolo recomenda. Talvez por isso, e outras coisas mais, o pastor tenha me indicado a porta de saída, como se escorraçasse um cão sarnento prestes a contaminar suas ovelhas. Posta na rua em plena madrugada e sem um tostão, vago noite afora.
Então surge um homem, um filho da besta. Consciente da minha demência, ele me conduz a seu barraco e me tranca num quarto minúsculo repleto de imagens baratas de santos. Posso ouvi-lo conversar no cubículo vizinho com uma mulher mais velha, cuja presença não o impede de tentar abusar da minha fraqueza. Ele me leva para debaixo do mosquiteiro que cobre sua cama e tira minha calcinha. Tenta me penetrar, mas contraio com tanta força a região entre as pernas que suas estocadas são infrutíferas. Irritado, o homem me guia por entre os barracos e, pela segunda vez numa mesma noite, alguém me aponta o caminho frio e deserto da madrugada.
Entregue novamente à sorte, procuro por abrigo. Vejo um posto de gasolina aberto e fico por lá até o dia clarear. Lembro de dar voltas e voltas em torno de uma mesa, correndo atrás do frentista. O rapaz sorri, mas não permite que eu o toque. Estou com frio, ele me empresta sua camisa de flanela. Depois de tantos demônios na longa madrugada, tenho a sorte de encontrar um anjo bom.
Amanhece. Num lapso de consciência, lembro o número do telefone de casa. Ligo de um orelhão próximo, a voz da minha mãe é um bálsamo. Vou de táxi ao encontro dos meus pais e seguimos para o hospital psiquiátrico.
Na sala de espera, subo num dos bancos duros e gelados e me ponho a cantar, julgando-me um anjo encurralado. Mesmo em surto, sei que a liberdade termina ali. Mais um período de internação pela frente. Sem qualquer direito à defesa, sou trancafiada numa cela onde só há uma cama de ferro e um colchão. Desesperada, grito até perder a voz e, exausta, defeco no chão. De joelhos, procuro por comprimidos nas frestas entre o chão e a parede, e acabo por encontrar vestígios da passagem de outra alienada. Mas não consigo engolir os comprimidos… E se ainda houver uma chance para mim?
O pastor que me expulsou liga para saber o que havia ocorrido, mas não ousa fazer uma visita para me abençoar. Desde aquele retiro, nunca mais voltei a frequentar uma igreja.
Quando soube que era bipolar, experimentei mais fascínio do que apreensão ou qualquer outro sentimento. Nem mesmo uma bombástica crise em Florianópolis, com direito a humilhação e cadeia, conseguiu atenuar minha admiração por um cérebro tão poderoso. O rito praticamente anual de refazer a vida após as internações só alimentava o encantamento por me sentir especial. Ignorando as perdas ao longo do caminho, eu me aferrava à sensação de eterna juventude.
Na verdade, essas impressões geravam sentimentos contraditórios: se me julgava única, também experimentava o preconceito e a exclusão. Era uma predestinada, mas uma predestinada solitária, cujo único desejo era construir um mundo melhor.
Oscilando entre a alta e a baixa autoestima, em constante acompanhamento psiquiátrico, vivo minha bipolaridade de forma espontânea e sonhadora, numa opção que me poupa do medo e da vergonha, mas também afunila as perspectivas de futuro. A cada situação constrangedora gerada pelas crises, é preciso retomar do zero. Foi assim por dez internações.
Nunca precisei de drogas para me entregar ao deslumbramento ilimitado. Minha química explosiva possibilitava vivências que variavam do éden aos mais negros abismos. Até hoje não consigo discernir o momento em que tudo isso veio à luz, mas acredito já ter nascido com essa sina.
Lembro, ainda pequena, do prazer ao sentir-me sufocada pela fumaça da grama cortada que meu pai costumava queimar. Perder-me em meio àquela nuvem cinza-clara me proporcionava uma sensação de mistério e risco, e eu me deixava conduzir para onde minha mente me transportava.
Em momentos de hipomania, acordava para dançar na sala enquanto todos dormiam. Rodopiava ao som de uma música imaginária, o corpo vibrava com força e energia, numa aceleração desconcertante. Sempre quis ser bailarina. E dançava na madrugada, sentindo o universo ressoar em meus músculos. Quando percebia que estava sozinha, num cômodo vazio, sem música, sem plateia, acordava do delírio e voltava para a cama, com o sentimento de missão cumprida. De manhã eu me levantava sem que ninguém tivesse se dado conta do meu desvario.
Desde as primeiras crises na adolescência até agora, o que perfaz um período de mais de trinta anos, ingeri cerca de 40 mil comprimidos. Quando eu tinha 14 anos, meus pais se separaram – à tristeza que experimentei, seguiram-se crises sérias de depressão, intercaladas por momentos de hipomania. Consulto um psiquiatra que me receita remédios controlados. Não lembro dos resultados da medicação, mas não esqueço a abordagem sensual do doutor durante a consulta.
Dizem que um livro pode mudar uma existência, e comigo não foi diferente. Aos 19 anos, leio Do Jardim do Éden à Era de Aquarius, título sugestivo e pretensioso, que me leva a imaginar ter encontrado uma solução, quando na verdade virá a se mostrar uma cilada. O estrago foi tão descomunal e fora de controle que resultou na minha primeira internação, aos 21 anos.
Verão de 1988. Uma amiga me convida para acampar em Florianópolis. Meus pais consentem e embarco de mala e cuia. Não posso acreditar, é muita beleza: a vegetação me arrebata, o mar me inunda com sua água transparente. Estamos num ônibus lotado subindo e descendo morros e mais morros. Todo mundo apertado mas feliz, afinal de contas estávamos trafegando pelo paraíso.
Desembarcamos em Garopaba. Até aí, tudo bem, minha mente ainda funcionava – em termos. Porém, ao chegar à praia Retiro dos Padres, em Bombinhas, o processo de mania começa a se desencadear. Minha amiga não percebeu a alteração, mas o frenesi evolui e não durmo mais, não como, como se estivesse drogada. Havia várias praias onde eu poderia alucinar, e foi exatamente o que fiz. Minha preferida era a Quatro Ilhas. Mar aberto, ondas fortes e o Submarino Amarelo.
Era um bar apinhado de jovens bronzeados e bem vestidos, música o tempo todo. Paisagem maravilhosa, gente bonita, clima agradável – este é o tripé que, somado às ideias do livro, me faz acreditar estar na era de Aquarius. Quase todas as noites vamos lá, e não demora para que eu me sinta em casa. À medida que a crise avança, passo a frequentar o local sozinha e minha amiga já não tem noção do meu paradeiro.
Fico interessada em dois rapazes, acho que os proprietários do lugar, um loiro e o outro moreno. Um olhar daqui, outro dali, e o moreno me leva a um trecho da praia um pouco afastado. Nós nos deitamos na areia, ele me acaricia, percebe que não visto nada sob a roupa – por farra, minha amiga e eu havíamos combinado não usar calcinha – e tenta ir até o fim. O medo de engravidar me trava. A mesma cautela faria com que eu escapasse ilesa de situações semelhantes no futuro e evitasse ter um filho de um estranho que nunca mais veria. O rapaz goza ao meu lado e vai embora, me deixando na areia gelada.
Começa a roleta-russa. Já não tenho o menor senso de autoproteção; pelo contrário, quanto maior a escuridão da noite, mais intensa e mágica a sensação de risco.
A última vez que saio acompanhada se transforma numa emboscada. A caminho do Submarino, uma garota do camping e eu encontramos um sujeito tão bêbado e trôpego que havia estacionado o carro num barranco. Decidimos acompanhá-lo à cabana em que se hospedava. Ele tenta abrir a porta, não consegue. Pego a chave e entramos. O lugar era espaçoso e estava vazio, mas havia sinais de outros hóspedes. Saímos em direção a Bombinhas para caminhar um pouco, no intuito de aliviar o porre do sujeito. Tranco a porta e guardo a chave.
Chegando à praia, arrastamos para a água um pedalinho e, empoleirados, seguimos os três pedalando sem destino. De repente, o cara tenta me agarrar. Em vez de reagir, prefiro me atirar na água. O jeans encharcado exige um esforço redobrado de minhas pernas e braços, tenho a sensação de me arrastar. Nesse meio tempo, o bêbado me persegue com o pedalinho, parece querer me atropelar. Finalmente meus pés tocam o chão. Sem olhar para trás, abandono a praia, o homem e a amiga. Naquele momento, ainda não havia percebido que a chave tinha ficado comigo.
A partir daí, meu delírio se agrava. Acredito ser uma mulher linda em luta constante contra o Mal. O processo se inicia de forma sutil. Estou na praia, em frente ao Submarino, um cão caminha em minha direção. Minha mente envia sinais de que a crise está vindo e não é coisa pouca. Tenho certeza de que aquele animal é a encarnação do demônio. Começo a entabular uma conversa silenciosa. Em muitas outras ocasiões ocorreria o mesmo: as pessoas não percebem minha insanidade, meus diálogos são internos.
A praia estava deserta, era muito cedo. O cão se aproxima, passa por mim e se afasta. Eu o metralho com olhares e pensamentos, acuso-o de ser uma entidade maligna. Faço-o saber que tenho conhecimento da sua essência, ignorada pelos demais. Tudo isso em poucos minutos. O animal segue, indiferente, mas para mim a batalha está vencida. Mal sabia que a guerra se avizinhava, bem mais ousada e exaustiva.
As chuveiradas do camping próximo ao Submarino me revigoram, a água e o sabonete me reabastecem de energia, a compensar as noites em claro e as longas caminhadas. Em crises futuras também seria assim: estar limpa, cheirosa e com os cabelos molhados era o que me dava forças para continuar nas lutas contra o Mal – que inevitavelmente me conduziam a um abismo.
Perto dos chuveiros ficam as barracas e ali acabo conhecendo um rapaz que se envolve comigo. Entre sucos e banhos de mar, um dia eu o convido para ir à cabana da qual eu tinha a chave. Ele topa, certo de que aquele era meu alojamento.
Vamos para a cabana. No andar superior encontro uma mala com dólares. Passo umas notas para ele, para que compre algumas roupas. Escolho uma sandália, uma pulseira, calça e blusa brancas. Por coincidência, o tamanho das peças é o meu.
Tudo parece funcionar como num passe de mágica.
Saímos, pegamos uma carona e seguimos para uma festa. Me lembro de um homem, um mendigo, que pedia uns trocados para quem entrava. Era alto, magro, o cabelo castanho-escuro, a pele clara. Eu o encaro. Ele percebe a insistência do meu olhar. Minha mente viaja alto e mais uma vez se inicia o processo de luta contra o Mal.
Sim, aquele homem era a encarnação do Maligno. A cada instante meu olhar é mais mortífero, mas desta vez a vítima reage. Quando menos espero, ele me dá uma bofetada. Meu acompanhante não percebe nada, aceito a agressão de forma silenciosa. O mendigo me olha como se dissesse: “Toma, vadia!” Entro na festa, mas não me sinto vencida.
Não lembro do que aconteceu naquele lugar, devo ter dançado alucinadamente. Só recordo a volta: era de dia, eu e o rapaz, mortos de cansaço, sacolejávamos dentro de um ônibus. Cochilamos e perdemos o ponto, tivemos de descer em Mariscal, uma praia depois de Quatro Ilhas. O cara se zanga por eu ter dormido, me culpa por precisarmos enfrentar um trajeto longo. Fica ainda mais furioso quando me oferece cocaína e eu recuso. Ele havia comprado um tanto e pretendia revender. Apesar de toda a raiva, não se afasta de mim e voltamos a Quatro Ilhas.
O cansaço da noite anterior é agravado pela fome e pelo sol. Andamos sem conversar, rumo à cabana. Tudo parece tranquilo, como um dia qualquer – muito calor, horário de almoço, pouca gente na rua. Enfio a chave na fechadura e a realidade dá uma guinada.
De repente surge polícia de tudo que é lado. Na cabana, os legítimos ocupantes. A dona das roupas que eu vestia me chama de vagabunda, um homem que parecia ser seu marido me pega pelo pescoço e me levanta no ar. Tenho a sensação de que pretende me estrangular, mas ele me solta.
A mulher arrebenta a pulseira e exige que eu tire suas roupas. Obedeço e coloco a parte de baixo do meu biquíni preto e uma blusa decotada também preta que eu tinha deixado na cabana. Era assim que costumava me vestir, os pés descalços. Os policiais me retiram dali. Somos algemados e conduzidos a uma viatura. O rapaz cospe em mim.
O pior é que a polícia havia encontrado o restante da cocaína que ficara na cabana. A essa altura, minha ilusão de ser onipotente já estava um pouco abalada, mas não inteiramente. Quando chego à delegacia, sou trancafiada numa cela pequena. Faminta, exijo um x-salada. Trazem um x-bacon e, na minha alucinação, chego a imaginar que o bacon era o Mal. Devoro o sanduíche, mas cuspo o bacon no chão.
Perguntas e mais perguntas. De onde vocês vieram? Onde conseguiram o pó? Minha cabeça gira, penso que vai se separar do corpo no momento em que o policial começa a roçar uma faca no meu pescoço. Choro desesperada. O homem insiste, inquirindo e me ameaçando. Declaro que a única coisa de que tinha conhecimento era que o rapaz havia comprado a droga, para uso próprio e talvez revenda. Era tudo o que eu sabia.
Sou fotografada de frente e de perfil, e então liberada. Não sei o que é feito do rapaz. Minha amiga vai me buscar na delegacia. Desconheço como soube de toda a história e até mesmo da minha prisão. Voltamos para o camping como se tudo continuasse normal. Ela parece não registrar o que acontece comigo.
Volto a frequentar o Submarino Amarelo, praticamente não saio de lá, até que uma noite me ponho a esbravejar com uma cliente, na qual vislumbro uma entidade maligna. Dessa vez o dono se irrita e me bota para fora. Estatelada no chão, imóvel, não digo nada, não reajo. As pessoas ao redor me olham. Peço que chamem a polícia.
Quando os policiais chegam, me encontram ainda por terra. Eles me reconhecem e me levam para o camping. Minha amiga está lá, mais surpresa do que nunca. Os policiais me deitam na barraca e dizem que só preciso descansar, como se isso fosse possível para uma bipolar em plena mania. Por instantes fico quieta. A amiga se afasta e aproveito para sair.
Ando sem cessar nas sombras da noite, nos becos mais escuros, sem noção de risco. Ando até o amanhecer. Minha amiga me encontra num morro, os pés cheios de cortes e espinhos. Ela me diz para voltar e em resposta eu quebro seus óculos, com o intuito de destruir o Mal.
Meu pai vem me buscar. Seis horas de viagem. Volto para Canoas, minha cidade. Mas fico pouco tempo em casa, minha alteração de humor é gritante. Sou levada ao hospital psiquiátrico e pela primeira vez tenho a experiência de ser amarrada a uma cama. É o terror, o começo de um calvário que parece interminável.
Por mais que tentasse, não conseguia entender como tinha ido parar lá. Mulheres ensandecidas, aos gritos. A histeria é tanta que não dá margem para consolo ou solidariedade: cada uma digere o cárcere com um nó de medo e solidão na garganta. Por vezes tenho a impressão de que estou diante de um prenúncio do inferno. Lembro do enfermeiro que baixa minhas calças, aplica uma injeção dolorosa e me empurra até o quarto das loucas. Que direito ele tem de me medicar sem ao menos me dizer o que está adicionando à minha corrente sanguínea?
A droga faz efeito e acabo me deitando na beirada de uma cama sem colchão. Antes urino no piso, não tem banheiro no quarto. Fico deitada, encolhida como uma concha, ouvindo os gritos das mulheres. O sono, ou a anestesia, vem aos poucos, e não sei por quanto tempo eu durmo. Alguém chega e me retira daquele lugar. Foi com certeza um alívio, mas ainda não era a liberdade. O período de hospitalizações e privações mal começara e, com ele, iniciava-se meu aprendizado forçado.
É difícil explicar a sensação de sair de um hospício após longos meses de internação. Posso dizer que várias vezes me senti como se tivesse nascido de novo. Depois de dias e mais dias enclausurada e ingerindo toneladas de medicamentos, voltar ao mundo exterior provoca uma sensação ambígua, por vezes, assustadora. No momento da alta, os médicos diminuem a dose de remédios, e então o organismo se ressente. Tremores, suor frio, insônia. A rotina do hospital também fica impregnada no corpo, que passa a estranhar a própria casa. Mas com o tempo esses sentimentos se dissipam e sinto um prazer imenso por poder circular pelas ruas, pelos restaurantes, pela universidade.
No pescoço, ostento um colar negro composto de vários anéis, confeccionado por índios do Mato Grosso. Empréstimo do meu amigo Zé. Na mente, acalento o desejo de curtir a vida junto aos amigos da oceanologia na extensa praia do Cassino. Pego a estrada com o pressentimento de que algo grandioso está por acontecer.
Sou guiada por uma bússola mística. Meio que por instinto, deparo com uma festa de aniversário onde encontro alguns conhecidos. Não ter sido convidada era um detalhe irrelevante: me entroso no ambiente, pareço da casa. Na cozinha, encontro um grupo cheirando pó. Aspiro duas carreiras de uma vez só, como se estivesse acostumada. Mais natural ainda foi presentear a aniversariante com o colar predileto do meu amigo.
Com o ânimo redobrado pela cocaína, saio sozinha até achar um bar aberto. Dentro, três homens. Um deles me atrai por sua força e algo mais que não posso explicar, mas que me magnetiza. Entro e já vou sentando em seu colo. Por mais que o script pareça vulgar, minha mente entende aquele momento como um encontro puro e sincero. Ele não me repele, ao contrário, permite que me enrosque em seu pescoço. Ignoro os outros dois e fico encantada, entregue àquele ritual imaginário de pureza e sedução.
De repente, os três me botam num jipe. Sem noção do perigo, continuo a me aninhar nos braços do estranho, que em meu delírio era uma espécie de príncipe encantado. Chegamos a um sobrado e entro na casa com naturalidade. Pergunto onde é o banheiro e subo as escadas. Mesmo percebendo mãos ansiosas que me tocam por trás, continuo alheia. Fecho a porta e, sentada no vaso, me dou conta de que aqueles homens estão sendo inconvenientes.
Desço e então realmente compreendo o quanto eles seriam capazes de me molestar. Aos gritos, me mandam tirar a roupa. Fico em pânico. Sem muita escolha e temendo uma violência maior, me desnudo aos poucos, desejando que tudo aquilo retroceda. Fico só de calcinha diante de três homens desconhecidos e alucinados. Obrigam-me a deitar sobre uma grande mesa e aos berros exigem que me dispa de vez. Choro compulsivamente, na esperança de que a graça divina me liberte daquele martírio.
Minha estratégia desesperada surte efeito e sou escorraçada porta afora na noite escura. Mal atravesso o portão, a bússola metafísica reaparece para guiar meus passos. Como se nada tivesse acontecido, prossigo até o nascer do sol, que me libertaria dos seres noturnos e seus desejos profanos.
Certo dia corto o cabelo, que estava longo e ondulado. Empunho a tesoura com decisão, deixo apenas uma mecha sobre o olho esquerdo. Quase me arrependo ao ver os cachos no chão do meu pequeno apartamento, mas a loucura já detonara e não tinha mais volta. Vestida de preto, circulo pela rua noite e dia. A cada supermercado abasteço minha fúria com uma garrafa de vinho tinto. Desafio semáforos, carros e pessoas apenas com o olhar.
Meu primeiro destino é uma festa no cais do porto. Lá encontro uma colega do grupo das rádios comunitárias, que não disfarça seu espanto diante da minha aparência. Meu comportamento também havia mudado, eu me sentia poderosa, mais determinada. Na minha loucura, aquela roupa dark simbolizava segurança e energia.
No dia seguinte pego um ônibus e vou a Vila Cruzeiro, onde ministrava o curso de comunicação popular para um grupo de jovens em situação de risco. Minha visita foi rápida. Eu, dama de negro, cabelos curtos e óculos escuros; eles, surpresos com meu visual e atitudes, não fazem perguntas. Era minha despedida do projeto após três meses de envolvimento e paixão.
Dispenso as vestes fúnebres e inicio outra viagem. Meu novo adorno é um sutiã meia-taça branco, uma saia verde-clara muito leve, desfiada em vários bicos irregulares, e sapatos pretos de saltos relativamente altos e grossos, como os de bailarinas de flamenco. Envolta numa paradoxal atmosfera de pureza e louca sensualidade, invado o prédio do Gasômetro, centro cultural de Porto Alegre. O som do salto pisando nas lajotas me arrebata para outra dimensão, me transfiguro em uma mulher linda e desejada.
Entro numa sala, vejo um grupo de pessoas reunidas em círculo. Sem pedir licença nem cumprimentar ninguém, miro um dos homens e começo a dançar ao redor dele. Ele não reage e vou me aproximando cada vez mais. Coloco minhas pernas entreabertas ao redor das dele, movo meu corpo de forma provocadora e levanto as mãos sobre a cabeça, num gesto de entrega. “O que é isto?”, grita uma mulher. Um guarda me retira dali.
Retorno ao apartamento para incorporar a última personagem daquele teatro. Vestida de vermelho e negro, me transformo numa entidade, mais especificamente a Pombagira. A roleta-russa começa a girar outra vez e estou completamente à mercê da sorte. Anoitece e saio. Não preciso ir muito longe. Numa lanchonete embaixo do meu prédio, três homens bebem. Eu me junto a eles como se fôssemos íntimos. A conversa flui, o tempo passa, o estabelecimento fecha as portas. Eu ainda a mil, querendo sempre mais, convido os três para subir. Lembro deles entrando, abrindo gavetas e armários, talvez procurassem drogas. Lembro de mim dançando, da luz do abajur, dos beijos de um deles. Imaginava que fossem anjos, embora não visse suas asas.
A maior manifestação da misericórdia divina foi permitir que tudo se apagasse de minha memória. Poupada dos detalhes sórdidos, acordo pela manhã como se nada tivesse acontecido. Ainda vislumbro o último sujeito vestindo a calça e indo embora. Levanto para trancar a porta, a chave estava do lado de fora. Deixo ela lá, minha vida já tinha sido arrombada, agora era tarde demais. Avisados por um amigo, meus tios vêm me acudir logo em seguida. Sou internada mais uma vez.
No hospício, observo aterrorizada uma ferida no pulso direito. Aids! As atitudes tresloucadas, a lembrança daqueles homens no apartamento e a perda de memória transformam minha mente num redemoinho de medos e sensações aterradoras. Encolhida num canto do salão, cercada por alienados e dependentes de álcool e drogas, rumino a evidência de estar sendo fulminada por uma punição atroz.
De repente um homem senta ao meu lado e pergunta se está tudo bem. Digo que não. Pergunto qual seria sua atitude se estivesse com Aids. Ele fala que seguiria sua vida normalmente. Seu olhar tão doce e sereno me acalma aos poucos. Graças à companhia dele consigo suportar o confinamento mais sofrido de minha vida. O resultado do exame HIV dá negativo. Minha ferida desaparece, nós dois nos aproximamos a cada dia.
Ele era casado, tinha filhos, mas estava disposto a deixar tudo por mim. Dizia que nunca havia encontrado mulher como eu, com quem podia conversar e ser ele mesmo. Sua presença me confortava, mas eu sabia que meus sentimentos em relação a ele não eram tão intensos. Eu simplesmente me deixava levar.
Nossos encontros ocorriam no pátio ou no salão, espaços compartilhados pelos internos. Ele sempre trazia um aparelho de som embaixo do braço. Suas músicas prediletas eram os pagodes românticos que pareciam dedicados a nós dois. Ficávamos um ao lado do outro, conversando e trocando olhares intensos. A cada distração dos enfermeiros, eu acariciava sua pele morena.
Ele era pedreiro e morava num dos bairros mais pobres da cidade. Eu nunca soube o que causou sua internação, mas ele dizia que iria mudar, que faria qualquer coisa para ficar junto de mim. Aquele sentimento me erguia gradativamente do fundo do poço. Nossa história repercutiu em todo o hospital, na ala dos homens já havia quem torcesse por nossa união.
Mas ela não aconteceu. Ele teve alta antes de mim e aguardou a minha saída. Chegamos a nos encontrar algumas vezes. Ele, sempre respeitador, carinhoso e siderado por mim. Nunca um homem me olhara com tamanho amor, respeito e admiração. Mesmo assim não correspondi a seu sentimento e um dia ele se afastou. Ele iluminou as trevas no meu sofrimento e lhe serei eternamente grata, esteja onde estiver.
Certo dia resolvo cortar o cabelo mais uma vez, agora bem curtinho, tipo Sinéad O’Connor. Mudar a aparência tinha um significado, prenunciava grandes acontecimentos. Toso até os fios ficarem rentes ao couro cabeludo. Vou para Rio Grande, encontrar meus amigos da oceanologia. Apesar de já estar cursando jornalismo, os constantes retornos à minha praia são uma forma de reabastecer as energias. Todos comentam meu visual. A química de meu cérebro recebe a aprovação como um sinal verde.
Minha via-crúcis, cujo destino final é mais uma internação, começa por uma breve escala na casa do Gil, que arrastava um caminhão por mim. Mas ele estava de namorada e não foi tão bom anfitrião como nas outras vezes. Anoitece e estou a esmo, sem dinheiro para o ônibus. Surge um Fusca na rua de areia pouco movimentada. Peço carona, ou melhor, me atiro na frente do carro.
A porta se abre, revelando o interior escuro e a silhueta de um homem jovem. Entro, já imaginando que aquele era o Fusquinha de uns amigos, mas não. Totalmente perdida, sigo junto àquele desconhecido. Ele pensa que eu quero o que ele quer, no entanto está equivocado. A sensualidade que o surto psicótico eleva a mil não significa para mim, necessariamente, sexo. Eu me deixo levar e estacionamos à beira de uma praia.
Total escuridão, absoluto isolamento. Só então percebo sua excitação e o desespero me domina. Tento me esquivar, mas ele é forte. Resisto e consigo abrir a porta. Saio, peço socorro e, por uma força do destino, uma viatura da polícia se aproxima. Na verdade, os policiais nos seguiam, pois haviam suspeitado do carro. Levam-me dali e depois me liberam. O homem, assim como surgiu do nada, se foi para não sei onde.
Prossigo no meu delírio, numa vertigem que parece não ter fim. Passo dias e noites andando pelas ruas do balneário, varo as madrugadas, perco a noção de tempo. A imaginação completamente alterada faz com que me perceba como morta. Era como se eu tivesse saído do corpo e o observasse de fora. De certa forma, já me tornara um zumbi, não comia nem dormia. Por um momento, com a sensação de não estar viva, me atiro ao chão, na expectativa de que alguém venha resgatar meu suposto cadáver. Permaneço imóvel e espero.
De repente, mãos me apalpam a cintura, os seios, como querendo decifrar se sou homem ou mulher. O físico magro e os cabelos tipo Sinéad O’Connor confundem, ainda mais à noite. Carregam meu corpo inerte para uma barraca e ali me deixam por um tempo. Imagino que seja meu túmulo. Enfim encontro um descanso. No entanto, mais uma vez sou levada à delegacia, e mais uma vez liberada.
Desisto da ideia de ser um defunto. Varada de fome, procuro um posto de saúde, onde me oferecem um prato feito que devoro em minutos: ovo frito, arroz, feijão e bife. Energias abastecidas, sigo jornada, a imaginação se superando a cada passo. Chego a uma região pouco habitada, com pradarias e animais pastando. Vejo uma cerca e penso que, se ultrapassá-la, poderei assumir a forma de um cavalo. Observo minha futura família no pasto e reflito. Prevalece o bom senso e desisto.
Em busca de alguém que me resgate daquele pesadelo, me atiro no acostamento. Os carros passam e eu espero imóvel, a poucos centímetros da pista, como se estivesse desacordada, mas no fundo rezo, rezo muito. Um carro para, alguém se aproxima e vai embora. Continuo rezando. Um tempo depois chega outro carro e estaciona. A polícia, de novo. O guarda me toma em seus braços.
Finalmente alguém me liberta daquele ciclo de insensatez. Não conseguiria sair sozinha. Outra vez estou no posto de saúde, onde alguns parentes já procuravam por mim. Vou de ambulância para um hospital geral. Passo por um raio X para detectar algum traumatismo no crânio.
Nada. Minha fratura é na alma.
Pode parecer impossível que um bipolar tenha um discernimento mais elaborado da realidade, mas isso às vezes acontece. Depois de anos de análise, sei que fui uma espécie de antena parabólica que captou toda a crise familiar ocasionada pela separação de corpos dos meus pais. Se durante um tempo eu os culpei da minha condição, hoje eu os compreendo e posso perdoá-los pelo mal-estar que o fim de seu relacionamento me causou. Assumo a responsabilidade pela tristeza e pela alegria em minha vida.
Aprendi muito com os vários psiquiatras que frequentei. Um deles me fez entender que nem todas as famílias estão preparadas para lidar com alguém com um transtorno da intensidade do meu. Consigo perdoar minhas irmãs, que quase sempre se mantiveram distantes. Certa vez um médico chamou-as para uma reunião. Quando perguntou a elas se entendiam o que acontecia comigo, manifestaram total desconhecimento. E assim confirmei que minha jornada seria solitária.
Conciliar um distúrbio bipolar diagnosticado como severo com uma carreira profissional não foi tarefa fácil. Visitei orfanatos na adolescência, participei da Anistia Internacional, do movimento ambientalista, de iniciativas de comunicação comunitária e de educação junto a jovens em situação de risco – minha história foi marcada pelo voluntariado, uma vez que acreditava poder mudar o mundo e tinha a garantia do meu pai, sempre presente para ajudar a filha “doente”.
Depois de cursar um semestre de oceanologia, abandono a faculdade e presto jornalismo. Termino a graduação aos 29 anos, após catorze semestres, prolongados por internações praticamente anuais. Decido viver no interior, onde trabalho num jornal pequeno, mas a aventura não dura mais que uma edição. Ao tentar vender anúncios num restaurante para o mesmo tabloide, consigo emprego como garçonete. Nunca imaginei que fosse gostar tanto de servir mesas, atender pessoas e lavar pratos. Sigo quatro meses numa rotina que me dá prazer, quando tenho um surto. Depois da internação, tento voltar, mas encontro as portas fechadas.
Retomo o voluntariado e durante um ano participo de quatro entidades ao mesmo tempo, e assim mergulho no universo das questões sociais e da esquerda, sem, no entanto, me envolver com a política partidária. Mesmo assim acabo assumindo um cargo de confiança em Porto Alegre, na Secretaria de Educação do Estado, no qual permaneço por cinco meses.
Participo do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e da causa das rádios comunitárias. Com o objetivo de prestar um exame de mestrado e talvez algum concurso público, ingresso num grupo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que desenvolve projetos em galpões de reciclagem. Mas a essa altura, com 38 anos, começo a me apavorar diante da perspectiva de não ser capaz de me sustentar. Falo disso num grupo de saúde mental do qual participava e uma psicóloga incompetente diz que preciso recomeçar de baixo. Não bastasse, a empresa de meu pai quebra.
Não entro no mestrado. Decido trabalhar como faxineira no meu bairro, tarefa que enfrento com certa resignação e alegria. Cada peça de roupa esfregada num dia frio à beira de um tanque é uma lição de humildade e perseverança. Com o dinheiro contado, pago um cursinho preparatório para concursos públicos. Acabo conseguindo uma vaga gratuita num curso de massagem e retorno ao mundo do trabalho “digno”.
Desisti de me comparar aos outros, de tentar ser normal, de ser o que esperavam que eu fosse. Busquei a simplicidade e a autenticidade sem me levar por padrões. Eu já estava mesmo fora do padrão.
Não sei em que exato momento cruzei a ponte que me tirou da loucura, mas sei o que me trouxe à sanidade. Uma filosofia oriental me fez refletir sobre mim e sobre como interagir com as pessoas. Passaram-se dez anos desde minha última internação. Mais uma vez, um livro transformou minha vida. Foi ao ler A Arte de Lidar com a Raiva, do Dalai Lama, que aprendi que, se nem sempre podia interferir nas coisas que chegavam até mim, ao menos poderia controlar minha reação frente a elas. Depois de me libertar da raiva, vislumbro a possibilidade de enfrentar as adversidades pela disciplina da mente.
A partir daí sigo uma vida simples, sem projetos mirabolantes ou grandes expectativas. O melhor lugar é aqui e agora. É neste instante que posso viver, amar e ser eu mesma. Já não busco um mundo ideal, mas um mundo real e melhor a cada dia. Deixei para trás meus tempos de Joana d’Arc e encaro a vida com toda a sua simplicidade e beleza.
Na cama, confesso num sussurro que passei por crises e internações. Ele sorri e diz que está tudo bem: sua história também foi marcada por uma infância de traumas e uma adolescência rebelde. Já não estou mais só. Encontrei meu companheiro, meu anjo da guarda, que me aceitou como eu sou.
Andamos à noite pelas ruas de areia da praia do Laranjal ouvindo David Bowie e Prince no mesmo headphone. De repente, toca uma música dos anos 80. Penso como seria fácil surtar com aquelas estrelas, as árvores e a imensidão do mar. Mas meu marido me segura pela cintura, é a minha âncora. Ninguém nunca me quis tão perto assim, nunca desejei tanto ficar.
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