Em abril de 2017, um navio maltês resgatou os dois únicos sobreviventes do naufrágio. As outras vítimas da tragédia – oito sul-coreanos e catorze filipinos – ainda não foram encontradas CORTESIA DO COMITÊ DAS FAMÍLIAS MV STELLAR DAISY
Verdade submersa
Uma jornalista sul-coreana em busca do Stellar Daisy, o cargueiro que afundou no Atlântico após sair do Brasil
Leonardo Pujol | Edição 136, Janeiro 2018
Numa tarde de outubro, Young Me Kim se dirigiu à base da Marinha brasileira, no Centro do Rio de Janeiro. Um assessor de imprensa a recebeu e conduziu até o Salvamar, núcleo que coordena as operações oceânicas de busca e salvamento. Três comandantes, vestidos com a típica farda branca, aguardavam a jornalista. Depois de cumprimentá-los, Kim – uma mulher de 47 anos, estatura mediana, cabelos castanhos e olheiras profundas – juntou as mãos em forma de prece e as ergueu à altura do coração. “Muito obrigada pelo que estão fazendo por mim, pela Coreia do Sul e pelo Stellar Daisy”, agradeceu, em inglês.
Com quase duas décadas de carreira, seis livros publicados e coberturas em mais de oitenta países, incluindo a Somália, o Iraque e outras nações em conflito, Kim é documentarista e realiza filmes para tevês sul-coreanas. Também trabalha como repórter numa revista semanal, a Sisa-IN, com tiragem de 70 mil exemplares e sede em Seul. Viajou para o Rio à custa da publicação na esperança de desvendar parte do mistério que cerca o navio Stellar Daisy. O cargueiro, com 321 metros de comprimento e 58 metros de largura, afundou no Atlântico há nove meses. Cinco dias antes do naufrágio, aportara no Brasil para apanhar 260 mil toneladas de minério de ferro, que transportaria até Qingdao, na China. A bordo, havia 24 tripulantes: oito sul-coreanos e dezesseis filipinos.
A embarcação emitiu o último sinal de socorro a 3 300 quilômetros de Montevidéu e 2 600 quilômetros da costa fluminense. Como a região está sob a responsabilidade do Uruguai, o país coordenou a operação de salvamento. Mandou uma embarcação de apoio logístico para o local e pediu ajuda tanto à Argentina, cuja Marinha cedeu uma corveta, quanto à Força Aérea Brasileira, que enviou dois aviões. Navios mercantes que cruzavam a área foram igualmente convocados. Em 1° de abril, um dia após o afundamento, o capitão de um cargueiro maltês, o Elpida, comunicou a posição de duas baleeiras – botes salva-vidas de casco rígido. Estavam à deriva, viradas e danificadas. O cargueiro também avistou dois botes infláveis. Um se encontrava vazio. O outro levava dois sobreviventes filipinos resgatados pelos marinheiros mercantes.
Com 250 tripulantes e um helicóptero, a fragata Rademaker, da Marinha brasileira, chegou à região uma semana depois. Foram seus ocupantes que recolheram as baleeiras avistadas pelo Elpida. Perto delas, acharam uma mochila, uma boia e um tênis. Levados para o Rio, os objetos acabaram recolhidos por um representante da Polaris Shipping, armadora sul-coreana responsável pelo Stellar Daisy.
O alerta de busca continuou durante todo o mês de abril, mas as Forças Armadas logo deixaram o rastreamento. Apenas navios mercantes – 25, no total – receberam a incumbência de avisar as autoridades caso descobrissem algo. A operação se mostrou bem mais modesta que a desencadeada em favor do submarino argentino ARA San Juan, desaparecido no último dia 15 de novembro. À época, pelo menos doze países se mobilizaram, disponibilizando aviões, corvetas, pesqueiros, barcos científicos e petroleiros. Um mês e meio após o sumiço do Stellar Daisy, o alerta foi encerrado, sem que se encontrassem o navio e os demais tripulantes. Nas Filipinas e na Coreia do Sul, o episódio despertou grande comoção pública, à semelhança da que o ARA San Juan causou na Argentina.
Segurando uma filmadora, Kim alternou o foco entre os três comandantes brasileiros, que se revezavam para explicar a missão de salvamento. No fim da entrevista, o capitão da Rademaker, Gustavo Sant’ana Coutinho, deslizou sobre a mesa um folheto cuja capa exibia a foto da fragata, acompanhada da mensagem: “Protegendo nossas águas.” Kim pegou o folheto e o beijou. “Muito obrigada, muito obrigada”, repetiu, em lágrimas.
No dia seguinte, tomamos um táxi em direção a Mangaratiba. O município fluminense, que margeia a Baía de Sepetiba, abriga o TIG – Terminal da Ilha Guaíba –, onde o Stellar Daisy ancorou pela última vez. O porto é de uso exclusivo da mineradora Vale, que não nos autorizou a visitá-lo. Kim, no entanto, deu de ombros. Mal chegou à cidade, saiu em busca de um barqueiro que a levasse o mais perto possível do terminal. Um rapaz magro e bronzeado que pilotava uma espécie de canoa com motor de popa se incumbiu da tarefa. A jornalista quis saber se o barqueiro ouvira falar do Stellar Daisy. “O navio que afundou?”, perguntou o jovem. Ela assentiu. “Andaram comentando umas coisas. Parece que foi sobrecarga, né?”
Assim que o porto da Vale despontou na paisagem, a repórter mirou a câmera para o Bengang, navio de tamanho similar ao desaparecido. Todo ano, cerca de 200 cargueiros como aquele encostam no TIG e zarpam lotados de minério de ferro. Em 2016, por exemplo, o terminal escoou 46,1 milhões de toneladas. A matéria-prima vem de Minas Gerais – mais especificamente, do Quadrilátero Ferrífero – em trens com até 134 vagões. Uma poeira ocre salpica o porto inteiro. “Quando venta muito, o minério se espalha e suja tudo, inclusive a água”, disse o piloto gritando, competindo com o barulho do motor.
O giro ao redor da ilha durou pouco mais de meia hora. Em terra firme, Kim agradeceu o rapaz e se afastou. Debruçada num corrimão, observou o mar por alguns minutos. “As pessoas morreram a troco de nada”, murmurou, mais uma vez com os olhos úmidos. “A Polaris tinha que ser penalizada.”
O filipino Renato Daymiel, de 45 anos, compartilha a mesma opinião. Ele – que me escreveu pelo Facebook, de sua casa em General Santos, no sul das Filipinas – é um dos sobreviventes do Stellar Daisy. O outro, Jose Marie Wite Cabrahan, recusou-se a dar entrevista. Pai de um casal, Daymiel ingressou no mercado marítimo em 2000, tão logo concluiu um curso de mecânica. Trabalhou por onze anos num pesqueiro, até trocar os peixes pelo petróleo e se tornar primeiro-oficial de máquinas num navio-tanque. Em 22 de novembro de 2016, debutou no Stellar Daisy.
Na ocasião, o cargueiro deixou Cingapura com a missão de buscar o minério da Vale e conduzi-lo à China. O trajeto era habitual para a embarcação – que nasceu em 1993, no estaleiro da japonesa Mitsubishi Heavy Industries. Batizada originalmente de Sunrise III, destinava-se ao transporte de petróleo. Em 2007, a Polaris Shipping a adquiriu, reformou-a e a rebatizou, adaptando-a para o carregamento de minério a granel. Nesse tipo de transformação, que objetiva prolongar a vida útil dos cargueiros, o tanque central é dividido em vários compartimentos. Já os tanques laterais são usados para comportar a água de lastro, que garante a estabilidade do navio descarregado. Desde a reforma, o Stellar Daisy ancorou 29 vezes no Rio, Espírito Santo e Maranhão.
Em 22 de dezembro de 2016, Daymiel aportou no Terminal da Ilha Guaíba. Três dias depois, no domingo de Natal, zarpou em direção à China – percurso que consumiria cinco semanas. Em sua estreia no Stellar Daisy, o filipino pegava no batente de segunda a sábado, das 8 às 17 horas, sob as ordens do engenheiro-chefe. Tinha a incumbência de reparar tubos, bombas e motores da sala de máquinas.
O mecânico não se recorda de nada anormal naquela primeira viagem. Tampouco na segunda e última vez em que trabalhou a bordo do cargueiro. O trajeto fatídico começou em 26 de março de 2017, quando o Stellar Daisy deixou a Ilha Guaíba. Por alguns dias, contou Daymiel, a embarcação enfrentou ventos fortes e um mar revolto. Na sexta-feira, 31 de março, porém, o tempo estava bom. Perto das 13h30, o filipino e dois colegas se encontravam na sala de máquinas. “De repente, senti um tremor. Poucos segundos depois, o motor principal desacelerou e o capitão anunciou que deveríamos ir para a ponte. Enquanto eu corria, notei que o navio adernava.”
Ao atingir o convés superior, o mecânico percebeu que a situação ficara pior: o cargueiro afundava velozmente pelo lado esquerdo da proa. Com um dos colegas, Daymiel tentou liberar uma baleeira, mas não havia mais tempo. Diferentemente do drama arrastado que o Titanic protagonizou em 1912, o Stellar Daisy naufragou em coisa de um minuto. Agarrado ao corrimão de um dos deques, o filipino submergiu com a embarcação. “Chorei e pedi perdão a Deus por meus pecados”, relembrou.
O afundamento do navio, entretanto, causou uma pressão que trouxe Daymiel de volta à superfície. Milagrosamente, o mecânico esbarrou num colete salva-vidas e numa roupa de imersão que flutuavam perto dele. Depois de se equipar, avistou uma baleeira virada. Com dificuldade, nadou até lá, subiu no casco e descansou. Tremia de frio. Entre uma onda e outra, viu dois botes infláveis. Se os alcançasse, poderia sobreviver, já que tais embarcações contêm kits emergenciais com água potável, comida, remédios e material de pesca.
Daymiel se lançou ao mar e nadou vigorosamente. Cansado, parou antes de alcançar os botes e berrou por ajuda. Ouviu, então, uma resposta. Era Cabrahan, que estava dentro de um deles. O mecânico reuniu forças para se deslocar até o colega. Nas horas seguintes, ambos ficaram à deriva, assoprando apitos na esperança de encontrar os outros 22 tripulantes. Ninguém apareceu.
À noite, acenderam uma lanterna, mas não conseguiram dormir em razão da náusea provocada pelo oceano inquieto. Quando o sol despontou, o Atlântico já apagara quase todos os vestígios do naufrágio. Naquela manhã, os marinheiros viram um navio no horizonte. Era o Elpida. Ficaram eufóricos. Gritaram, abanaram as mãos e acionaram um sinalizador. Em vão.
Mais ou menos uma hora depois, o Elpida ressurgiu e, desta vez, os avistou. Resgatados em bom estado de saúde, apesar do choque, Daymiel e Cabrahan foram levados para a África do Sul, onde um representante da Polaris Shipping os colocou num avião rumo às Filipinas.
“Por causa da revista em que trabalho e, sobretudo, dos parentes das vítimas”, explicou Young Me Kim em Mangaratiba, quando o taxista indagou por que ele se empenhava tanto em seguir os rastros do Stellar Daisy. “Eles precisam do máximo de informações.” A jornalista, que investiga o episódio desde setembro, pretendia não somente escrever uma reportagem para a Sisa-IN como produzir um documentário para o canal de tevê MBC. Até outubro, gastara 100 mil dólares com hotéis, alimentação, transporte e intérpretes em viagens pelo Uruguai, Brasil e Argentina. Planejava, ainda, visitar a França.
Ela repassava às famílias coreanas, via WhatsApp, todas as informações que levantava. Revoltados, os parentes dos desaparecidos montaram tendas na praça Gwanghwamun, no Centro de Seul, próxima à Casa Azul, a residência oficial do presidente da República. Tentam colher assinaturas com o intuito de pressionar o governo a realizar uma busca minuciosa na área do naufrágio. Por ora, não obtiveram sucesso.
Enquanto viajava pelo estado do Rio de Janeiro, Kim mencionou o caso do voo 447, o avião da Air France que caiu no Atlântico em 2009. “A França investiu em robôs subaquáticos durante dois anos até descobrir onde estavam os destroços e dar respostas às famílias. Por isso, vou para lá”, disse a repórter. “Quero mostrar à Coreia do Sul que existem maneiras melhores de tratar os nossos marinheiros.”
Sem que o Stellar Daisy seja localizado, muito dificilmente se descobrirá o que o sepultou a 3 700 metros de profundidade. Até o momento, circulam apenas especulações. Houve sobrecarga ou outro tipo de falha no carregamento? O comandante errou ao escolher uma rota mais tempestuosa, indo pelo sul em vez de subir a costa brasileira até o Nordeste, distanciar-se e alcançar a África por águas mais tranquilas? Será que o minério transportado se liquidificou? Em contato com a água, principalmente a da chuva, a carga poderia ter se convertido numa massa fluida, semelhante à lama, e se deslocado nos porões, desequilibrando o cargueiro. A própria transformação do antigo petroleiro em navio de minério se encontra na berlinda: a reforma foi bem-feita ou gerou problemas estruturais?
O sobrevivente Renato Daymiel supõe que uma fenda se abriu no costado e permitiu a entrada de água no tanque de lastro. O incidente teria aumentado o peso do Stellar Daisy e explicaria sua inclinação antes de sucumbir.
As investigações do naufrágio couberam às Ilhas Marshall, país representado na bandeira que tremulava no mastro do cargueiro – embora o navio pertencesse a uma empresa sul-coreana. A prática, conhecida como “bandeira de conveniência”, revela-se comum na marinha mercante. Embarcações são registradas em países onde há impostos e burocracia menores, além da flexibilização de normas trabalhistas e de segurança. O governo filipino se limitou a emitir notas sobre o caso, e o da Coreia do Sul auxiliou nas investigações, mas de maneira comedida.
Respondendo a uma solicitação de entrevista, as autoridades marshallesas afirmaram, por escrito, que seguem apurando a tragédia “em profundidade”, inclusive com o apoio de “dois consultores marítimos”. O e-mail não ofereceu nenhum detalhe técnico nem uma previsão para o término das apurações.
Daymiel, Cabrahan e as famílias dos outros catorze filipinos a bordo receberam uma indenização da Polaris Shipping, cujo valor não foi divulgado. Já os parentes dos oito coreanos ainda negociam um acordo porque não reconhecem a morte dos tripulantes. Acreditam que eles continuam vivos em alguma ilha do Atlântico.
O plano de Daymiel, agora, é recomeçar em São Francisco, cidade da Califórnia onde sua mãe mora. Trabalhar de novo em navios, nem pensar. Está com trauma do mar.
Na saída de Mangaratiba, Young Me Kim pediu ao taxista que esticasse até Itaguaí, município da região metropolitana do Rio, por onde a Vale também realiza exportações. A repórter disse que precisava gravar mais imagens. “Ninguém na Coreia do Sul sabe direito o que é minério de ferro”, justificou. Depois do registro, se apressou para cumprir o último compromisso na cidade: entrevistar Carlos Müller, capitão de navio de longo curso que hoje atua como diretor de relações internacionais do Sindmar, o Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante. O encontro aconteceu à noite, na sede da entidade, um escritório com paredes azuis no 16° andar de um edifício comercial.
Durante duas horas, Kim e o sindicalista conversaram sobre o funcionamento e as normas do setor. Também mencionaram os desdobramentos do naufrágio. É que os cargueiros da Polaris Shipping passaram a ser questionados. Na semana seguinte à tragédia, o Stellar Unicorn, reformado tal como o Stellar Daisy, precisou atracar com urgência na África do Sul por causa de rachaduras no casco. Um mês depois, outro ex-petroleiro, o Stellar Queen, ancorou devido a rachaduras na área do tanque. Procurado pela piauí, o porta-voz da companhia, Paul Apostolis, afirmou que, após a catástrofe, a Polaris realizou uma “extensa investigação” na sua frota de dezoito navios ex-petroleiros. “Os que apresentaram qualquer fraqueza na estrutura foram levados para reparação”, escreveu. Recentemente, a empresa anunciou a compra de quinze novos cargueiros.
Quando a jornalista sul-coreana pediu a opinião de Müller sobre uma operação de busca ao Stellar Daisy semelhante à do voo 447, o capitão remexeu-se na cadeira, pôs os cotovelos em cima da mesa e cruzou as mãos. Com olhar pesaroso, respondeu que a logística para mergulhar robôs a quase 4 mil metros de profundidade seria muito onerosa. Além do mais, caso encontrassem a embarcação e desvendassem os motivos do naufrágio, as regras para a conversão de petroleiros em navios de minério poderiam mudar, tornando-se mais rigorosas. “Daí a gente se pergunta: a verdade interessa a quem?”, fulminou o sindicalista. Kim refletiu em silêncio, olhou para baixo e começou a chorar.
Sua reportagem veio a público em meados de dezembro e foi capa da revista Sisa-IN. O documentário ainda não ficou pronto.
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