ILUSTRAÇÃO: NEGREIROS_2009
Verve verdadeira
Em desabusadas cartas de adeus, o que os embaixadores de Sua Majestade realmente pensavam do Brasil
Dorrit Harazim e Cristina Tardáguila | Edição 38, Novembro 2009
Uma das mais deliciosas e singulares tradições da diplomacia está, senão moribunda, a caminho de se adequar aos entediantes tempos do politicamente correto e do receio de ver tudo esparramado na internet. Trata-se da instituição eminentemente britânica, o valedictory despatch – uma espécie de “carta de despedida”. Ela permitia ao embaixador que saía de um posto redigir um último despacho, despido de qualquer restrição, dizendo o que pensava do país que abandonava. Caso estivesse também se aposentando da carreira, muitas excelências aproveitavam para incluir comentários desabusados sobre o serviço diplomático de Sua Majestade.
Aguardados com avidez, e degustados como iguarias, os despachos eram repassados a diplomatas britânicos mundo afora. A tradição vingou sem vazamentos através dos séculos, sobreviveu a guerras e atravessou incólume muitas mudanças de governo do Reino Unido. Até 2006, quando o telegrama de despedida de Ivor Roberts, da embaixada em Roma, circulou por onde não devia. Nele, sir Ivor desancava a mentalidade “Wall Street” que a seu ver tomara conta do serviço diplomático britânico. A chancelaria de Whitehall decidiu então restringir ao mínimo a difusão da correspondência de despedida. E, por via das dúvidas, os próprios embaixadores trataram de moderar a verve epistolar.
Compreende-se. Até hoje, mesmo passados mais de quarenta anos, causa embaraço às relações Manágua-Londres o parecer escrito pelo embaixador Roger Pinsent ao deixar seu cargo, em 1967: “Temo não haver dúvida de que o nicaraguense médio é um dos latino-americanos mais desonestos, inconfiáveis, violentos e beberrões. Sua versão da língua espanhola também é a menos atraente que já ouvi.”
O telegrama enviado, de Bangcoc, por sir Anthony Rumbold, também em 1967, é uma peça da visão imperial sem luvas de pelica. Ele escreveu que a Tailândia era um país…
… desprovido de literatura e arte, com apenas um tipo curioso de música, uma arquitetura monótona e uma horrenda decoração de interiores… O nível médio de inteligência dos tailandeses é bastante baixo, bem inferior ao nosso… Mas pode fazer bem a um europeu cansado passar algum tempo entre um povo tão alegre, extrovertido e anti-intelectual.
Para horror da chancelaria, a carta de despedida de sir Anthony entrou, por engano, na lista de distribuição A (para 170 países) em vez da Q (restrita ao Canadá, Nova Zelândia e Austrália) e vazou. Como consequência mais grave, também veio a público a opinião do embaixador sobre o ministro das Relações Exteriores da Tailândia – “vaidoso, melindroso e briguento”.
A graça dos valedictory despatches não vinha só de considerações desairosas dos diplomatas sobre colegas estrangeiros. “Uma das grandes falhas do Foreign Office tem sido a sua incapacidade de descartar a figura do diplomata que usa chapéu-coco, veste um terno risca de giz e aprecia uma taça de champanhe”, escreveu sir David Gore-Booth, de Nova Delhi, em 1999. E acrescentou: “Coquetéis são mortalmente chatos e quem propôs um tratado internacional banindo recepções em datas nacionais deveria ser canonizado.”
Graças à implementação, em 2005, da lei que regulamenta o acesso público a documentos oficiais, cerca de 120 mil pedidos de vistas são apresentados anualmente a diferentes órgãos do governo britânico. Seguindo essa trilha, piauí obteve a íntegra dos telegramas de despedida de dois pesos-pesados da diplomacia inglesa no Brasil: sir G. A. Wallinger, embaixador no Rio de Janeiro de 1958 a 1963, e sir John Writhesley Russell, que serviu aqui entre 1966 e 1969.
Das treze páginas deixadas por Wallinger, em abril de 1963, e que tiveram sua distribuição, à época, restrita à lista Q, emerge uma aguda percepção do Brasil de ontem. E alguns trechos caberiam, like a glove, ao Brasil de hoje:
Um aspecto a salientar é que todo governo no Brasil ainda é intensamente “personalista”. Os três presidentes a que me refiro são chamados, simplesmente, de Juscelino, Jânio e Jango. O tamanho do poder em mãos de um presidente brasileiro é relativamente maior do que o poder do presidente dos Estados Unidos, visto que, desde os tempos de Getúlio Vargas, o Congresso nunca conseguiu se contrapor a ele… Embora o presidente dependa do Congresso para a aprovação de leis, a influência do Poder Legislativo na condução da política está viciada pela natureza primitiva da organização dos partidos políticos. Os partidos, apesar das implicações ideológicas de suas denominações, são essencialmente clubes políticos, criados para prover máquinas eleitorais a seus membros; estes, por sua vez, são homens que optaram pela atraente, lucrativa e “suja” carreira política; são frequentemente desprovidos de qualquer compromisso social ou ideológico, ou do sentido de servir à nação. Como consequência, a lealdade partidária é subordinada ao interesse próprio.
John Russell, por sua vez, não foi menos incisivo. Após elencar as imensas riquezas naturais do país, o item número 10 de sua radiografia começa com uma pergunta: “Por que, então, o Brasil ainda não é rico e próspero?” A resposta, curta, é que o país é governado de forma desastrosa. Russell citou cinco exemplos:
O estado da Guanabara tem mais funcionários públicos do que Nova York; a Petrobras, só em São Paulo, emprega um número maior de químicos do que a Shell no mundo inteiro; pode-se comprar qualquer coisa – de uma carteira de habilitação a um juiz do Supremo Tribunal Federal; o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro ganha 500 cruzeiros mensais, enquanto os aluguéis são três vezes mais altos do que em Londres e os hotéis da cidade estão entre os mais caros do mundo (e entre os de pior atendimento); o país tem apenas 18 mil milhas de estradas asfaltadas e em 1968 os brasileiros mataram 10 mil pessoas nas estradas – mais do que o total de soldados americanos mortos no Vietnã no mesmo ano. Como já escreveu Peter Fleming, “o Brasil é um subcontinente com um autocontrole imperfeito“.
Comparando o Brasil que encontrou ao assumir o posto, em 1966, com o que estava prestes a deixar, três anos depois e com o Ato Institucional nº 5 em vigor, John Russell registrou: “Materialmente o país avançou a galope; politicamente marchou para trás. A política de terra arrasada dos coronéis interrompeu o desenvolvimento espiritual de um país potencialmente brilhante.” E conclui: “Depois de amanhã, minha família e eu partiremos para a Espanha. Talvez não deixemos raízes fundas, mas fomos imensamente felizes neste casarão – possivelmente o mais belo e certamente o último a ser construído em escala tão nobre pelo governo de Sua Majestade.”
O casarão de Botafogo onde moraram sir John, lady Russell e sua gloriosa filha Georgina – tão festejada quanto festeira – é hoje o Palácio da Cidade, sede da prefeitura do Rio.
Jornalista, trabalhou nos principais veículos da imprensa brasileira e participou da criação da revista Veja e da piauí, na qual foi editora. Ganhou o Prêmio Maria Moors Cabot, da Universidade Columbia. É colunista de O Globo e publicou O instante certo
Cristina Tardáguila é diretora da Agência Lupa e autora do livro A arte do descaso (Intrínseca)
Leia Mais