Sete anos depois de casada com Luis XVI, Maria Antonieta seguia virgem: o rei tinha ereções, introduzia o membro e deixava-o lá, imóvel, por dois minutos, retirava-o sem ejacular e dava boa noite à rainha ILUSTRAÇÃO: © SCHLOSS SCHONBRUNN_VIENNA_AUSTRIA_THE BRIDGEMAN ART LIBRARY
Vestida para arrasar
Maria Antonieta sai do armário
Judith Thurman | Edição 6, Março 2007
Maria Antonieta, ex-rainha da França, tinha 37 anos quando foi retirada de sua cela na Conciergerie, uma fortaleza do século XIV construída na Île de la Cité, e transportada numa carroça aberta até seu cadafalso na Place de la Révolution, a um quilômetro e meio dali. Alguns dos espectadores que formavam a vasta multidão alinhada ao longo do caminho, naquela manhã de 16 de outubro de 1793, talvez estivessem entre os populares que lhe gritaram obscenidades em 1789, quando marcharam sobre Versalhes armados de lanças improvisadas. Ou que derrubaram a golpes de machado a porta de seu apartamento nas Tulherias, onde despejaram sua fúria sobre espelhos e armários. Ou acenaram com a cabeça cortada de sua amiga e quase sósia, a linda Princesse de Lamballe, espetada numa alabarda, do lado de fora de sua janela. Mas agora eles observavam um silêncio lúgubre.
Seu marido, Luís XVI, que perdera o título com a abolição da monarquia, fora guilhotinado nove meses antes, embora lhe tivessem poupado a indignidade de desfilar numa carroça aberta com as mãos atadas atrás das costas. Em seguida, os extremistas jacobinos se apoderaram de seu filho. O príncipe Louis-Charles, de oito anos – Luís XVII, para os monarquistas – tentara se agarrar às suas saias, mas fora levado à força. Como parte de sua reeducação, seus captores usaram o álcool para dobrar sua vontade entre uma surra e outra, e lhe ensinaram a Marselhesa, que ele cantava com um entusiasmo de partir o coração, portando um gorro vermelho de sans-culotte. Louis-Charles testemunhou que fora molestado pela mãe, e seu depoimento foi apresentado no breve simulacro de julgamento a que ela foi submetida, acusada de traição e torpeza moral. Ele morreria dois anos depois, sozinho, num calabouço.
Nenhuma outra rainha, com a exceção talvez de Cleópatra, teve maior empenho que Maria Antonieta em se apresentar à história com a devida elegância. Embora o seu instinto para se exibir tenha contribuído mais para a sua queda do que para a sua glória, acabou por lhe prestar um derradeiro bom serviço. O traje de luto que ela vinha usando dia e noite desde a morte do marido, desafiando um edito jacobino contra o negro (cor que simbolizava as simpatias monarquistas), ficara cada vez mais surrado. No entanto, sabendo que precisaria produzir uma impressão final e inesquecível – em sua execução – ela conseguira obter um traje completo em perfeito estado: camisola, culotes, vestido e gorro, todos brancos.
Na madrugada do dia de sua morte, Maria Antonieta se levantou, ao fim de algumas horas insones em sua enxerga de palha, e começou sua toilette. Ao nascer do sol, o principal carrasco dos jacobinos, o Cidadão Sanson, chegou para cortar-lhe os cabelos, que tinham embranquecido no decurso de poucos dias em junho de 1791, durante a malfadada fuga da família real para Varennes, que terminara com a recaptura de todos. O artista Jacques-Louis David, membro radical da Convenção Nacional, observou a passagem da condenada de uma janela, e ficou enfurecido com o que lhe pareceu a “arrogância” do porte da traidora. E desenhou um esboço rápido de uma megera devastada, com uma careta de escárnio e as costas rígidas. Seu vestido lembra uma mortalha.
Como haviam negado à antiga rainha um sacerdote de sua escolha (um dos dissidentes que se recusara a fazer um juramento de lealdade à Revolução), ela subiu sozinha ao cadafalso e pediu desculpas a Sanson por lhe pisar no pé. Depois que ele deixou cair a lâmina, exibiu a cabeça, como era de praxe, e a multidão, finalmente sacudida do seu transe, rugiu, “Vive la République!” Em seguida, os restos mortais foram levados para um cemitério perto da Rue d’Anjou, onde os corpos do rei e de sua Guarda Suíça – massacrada numa orgia de violência nas Tulherias, juntamente com outros defensores da realeza – tinham sido sepultados, os últimos numa cova rasa.
Os coveiros, como escreve Antonia Fraser na sua biografia Maria Antonieta (editora Record, 2006), estavam na hora do almoço, de maneira que deixaram a cabeça e o corpo da rainha largados algum tempo na relva, dando a uma jovem escultora – Marie Grosholtz, futura Madame Tussaud – a oportunidade de tirar um molde de cera para a máscara mortuária. Em 1815, um ano depois da restauração da monarquia dos Bourbons, Luís XVIII, o pérfido irmão mais novo do rei (que casara seu filho com a única filha sobrevivente de Maria Antonieta, Marie Thérèse), exumou as relíquias e tornou a sepultá-las, com toda a pompa, na Catedral de Saint Denis. Chateaubriand compareceu à cerimônia, e alega ter reconhecido a cabeça instantaneamente, conta Antonia Fraser, “pela forma especial da boca da rainha, evocando o sorriso resplandecente que ela lhe dirigira certa vez em Versalhes”. Mas tudo que restara, além do crânio, de uns poucos cabelos e da nostalgia de um romântico, eram duas jarreteiras, em perfeito estado de conservação.
Maria Antonieta ainda é desenterrada de tempos em tempos para ser vilipendiada, celebrada ou, como nos anos recentes, ajudar a vender roupas, como fazia em seus tempos de rainha. Seu mais recente avatar, a atriz Kirsten Dunst, com um ar de frescor e realeza, tornou-se onipresente nas revistas, promovendo uma nova biografia em filme, dirigida por Sofia Coppola e baseada no livro de Antonia Fraser. A própria Sofia Coppola é uma celebridade e musa fashion, que ajuda a divulgar o trabalho de amigos estilistas, usando seus produtos com o glamour provocante de uma virgem paramentada com as roupas da mãe. Ela sempre teve um interesse especial por moças lindas e sem saída, pertencentes a uma geração cínica demais para se unir na rebeldia, e refinada demais para se unir na mesmice. É fácil ver por que ela achou que a “rainha adolescente” – uma refém das aparências – poderia ser um bom tema. Mas em vez de tocar a tecla da irreverência, que é seu forte, ela e um conjunto de técnicos estupendos acabaram produzindo – a despeito de um ou outro aceno pós-moderno – um filme de época à moda antiga, devidamente higienizado.
A revista Vogue profetiza que o filme “terá um impacto considerável sobre a moda dos próximos anos”, embora esse impacto seja um tanto difícil de imaginar. Cada nova temporada das passarelas parece recapitular alguma versão do confronto artificial entre a monarquia decadente e o radical chic, o que já vem ocorrendo há pelo menos vinte anos. Mas pode ser que as pessoas que vivem para a moda venerem Maria Antonieta justamente porque ela representa uma época em que todos eram obrigados a escolher um dos lados, e a maneira de se vestir não se limitava a definir qual deles – era uma questão de sobrevivência.
Poucos tiranos despertaram um ódio mais visceral do que Maria Antonieta, uma mulher normal cuja vida foi infinitamente mais complexa do que sua pessoa. Esse ódio, geralmente associado a uma frase que ela jamais proferiu, “Que comam brioche”, tornou-se parte de sua mística. Sua queda (exemplo do que pode suceder aos políticos que perdem contato com suas bases) começa quase no momento da sua chegada a Versalhes: uma dauphine de 14 anos que, destemida, decide se emancipar das amarras do protocolo da corte e, ao mesmo tempo, impressionar os cortesãos – que insultava desfraldando um prestígio que não possuía.
O prestígio de Maria Antonieta dependia principalmente de um atributo – sua fertilidade – mas seu tímido e obeso noivo de 15 anos passaria sete anos sem conseguir deflorá-la. Luís XVI é, como sua mulher, até certo ponto insignificante, mas sua exposição prolongada ao encanto frenético da rainha acabou por tornar atraente sua monotonia. Passava seu tempo livre, que era considerável, fabricando fechaduras em sua forja particular (tinha uma crença comovente na virtude do trabalho produtivo), quando não estava caçando na floresta. Era menos reacionário que muitos de seus cortesãos, inclusive a rainha; e foi, de um certo ponto de vista moderno, admirável em seu desapego anti-heróico à violência e à empáfia marcial. Compreendia que o estarrecedor código fiscal carecia de reformas, mas era passivo e confuso.
Em inúmeras ocasiões, e com o máximo de tato possível, Maria Antonieta abordava a questão da “vida na intimidade” requerida pelos votos matrimoniais. E Luís respondia com promessas de ação, que depois não conseguia cumprir. Em 1777, dois anos e meio depois de coroado, finalmente levou a façanha a cabo. Mas o bizarro impasse só foi superado depois que o irmão mais velho de Maria Antonieta, o brusco e direto imperador José II da Áustria, chegou a Versalhes para uma conversa franca com a irmã sobre seus hábitos perdulários, e com o hesitante dinasta sobre as suas obrigações. José foi tomado pelo desprezo ao descobrir, como escreveu a seu irmão mais novo, o arquiduque Leopoldo, em Viena, que o rei “tem ereções fortes e perfeitamente satisfatórias; introduz seu membro, fica lá sem se mover por uns dois minutos, retira-se sem ejacular, mas ainda ereto, e dá boa-noite”. Estivesse ele presente, garantia ao irmão, mandaria chicotear Luís “para que ele ejaculasse de pura raiva, como um jumento”.
Além da humilhação de ter seus lençóis diariamente examinados, em busca de sangue ou “emissões”, e de saber que suas regras eram relatadas pelos embaixadores a todas as cortes da Europa, o calvário da prolongada virgindade de Maria Antonieta a mantinha aprisionada num limbo perigoso. Enquanto a anulação do casamento fosse possível, ela precisava cultivar uma “aparência de crédito” junto ao rei, como explicou a seu irmão. Cultivar uma aparência de virtude poderia ter sido uma estratégia mais política, mas ela preferiu buscar inspiração para seu estilo e comportamento nos modos das concubinas reais. Tanto a mulher de Luís XIV como a de Luís XV tinham sido figuras secundárias, imersas na sombra e na devoção, exatamente o que os franceses esperavam de uma boa rainha. As principais favoritas de seus maridos, porém – madames de Montespan, de Pompadour e du Barry (uma deslumbrante ex-prostituta de comportamento descarado, que ainda praticava o ofício com o velho Luís XV quando Antonieta chegou à corte) – eram cintilantes estrelas-guia, cujo poder ninguém se atrevia a ignorar. Assim, a virgem de quem todos zombavam começou a aumentar seu “crédito” fictício, acumulando um extravagante guarda-roupa de mulher manteúda (e deixou isso bem claro quando compareceu a um de seus bailes de máscaras fantasiada de Gabrielle d’Estrées, a amante de Henrique IV na época da Renascença, envergando um amplo véu de gaze branca salpicada de prata, peitilho e cinta de diamantes, e uma saia adornada de franjas de ouro presas por alfinetes com mais diamantes), além de um patrimônio imobiliário pessoal de valor incalculável, que incluía o Petit Trianon, que fora construído para a Pompadour, e mais o castelo e parque de Saint-Cloud, bens da Coroa que mandou transferir para o seu nome.
Em 1774, Luís XV, avô do Delfim, morreu subitamente de varíola, aos 64 anos. “Deus nos ajude”, exclamou Luís XVI, então com 19 anos, “pois somos jovens demais para reinar.” Pouco depois de sua coroação, um ano mais tarde, à qual a rainha compareceu com um figurino especialmente notável – um vestido bordado, incrustado de safiras, e um penteado que era uma verdadeira pirâmide em degraus. Ela encomendou um retrato com a roupa para enviar à mãe. Quando a imperatriz Maria Teresa o recebeu, ficou atônita. “Não, este não é o retrato de uma rainha de França”, escreveu ela em resposta. “É o retrato de uma atriz!”.
As espantosas despesas produzidas pela quixotesca estratégia de Maria Antonieta eram pagas por tributos impostos ao Terceiro Estado. Os gastos que excediam sua dotação anual para a compra de roupas, equivalente a mais ou menos 3,6 milhões de dólares em poder de compra atual, chegaram em alguns anos a mais do dobro do valor original. Houve casos em que o rei cobriu a diferença, e a rainha fazia algum gesto ocasional de economia – certa vez, recusou um enfeite de pedras preciosas, argumentando que a Marinha precisava de um novo navio de guerra. Seu endividamento crônico era uma das fontes de seu apelido de Madame Déficit; o outro era sua especial adequação ao papel de bode expiatório, para inimigos tanto à esquerda quanto à direita. Estes últimos a viam como uma insidiosa agente estrangeira – l’autrichienne , a austríaca (epíteto que contém um jogo de palavras com “cadela”, chienne) – e deploravam sua influência corruptora sobre as incontáveis francesas que aspiravam se igualar à sua elegância.
Os republicanos viam Maria Antonieta como uma parasita insaciável que incorporava todos os males do regime, ainda que os milhões que ela canalizava para arquitetos, jardineiros, pintores, cozinheiros, sapateiros, perfumistas, decoradores, cabeleireiros e – mais egregiamente – seus costureiros, não teriam sido suficientes para compensar as guerras desastrosas, e os séculos de corrupção e iniqüidade que haviam produzido a ruína da França. O inventário de suas extravagâncias, contudo, era difícil de ignorar. (Antonia Fraser pede a seus leitores que perdoem, ou mesmo agradeçam, a pródiga rainha por ter ajudado a criar “objetos de grande encanto”, e cita o boudoir de Fontainebleau como o “exemplo supremo”.) Um vestido, ou um chapéu da marchande de mode preferida de Maria Antonieta, Rose Bertin, podia perfeitamente custar vinte vezes o que um trabalhador especializado ganhava num ano inteiro de trabalho. E se o trabalhador quisesse ver onde iam parar os impostos que pagava, sempre podia visitar o guarda-roupa da rainha – era aberto ao público.
Até o fim, o ódio feroz do povo nunca perturbou muito Maria Antonieta. Ela dissera à sua mãe, anos antes, que os franceses “tinham um caráter irrefletido, mas não de todo mau; as penas e as línguas dizem muitas coisas que não vêm do coração”. Parecia achar que ela própria tinha um coração puro: o de uma rainha esclarecida, que fornecia dotes para donzelas indigentes. Que importava crianças camponesas para servir de companheiros de brinquedo a seus filhos e ensinar-lhes a humildade. Que adotou o órfão de uma camareira. Que sustentava artistas, como seu professor de música, Gluck, e o pupilo deste, Salieri. E que prestou homenagem aos ideais de Rousseau ao construir uma aldeia encantadora e falsamente rústica – o Hameau de la Reine – onde ela e suas damas de companhia gostavam de usar trajes de exorbitante simplicidade, conhecidos como gaulles, complementados por um cinto de fita e um chapéu de palha.
Um coração puro, porém, não exclui um caso de adultério. Não é certo (embora pareça provável, acha Antonia Fraser) que a rainha tenha consumado seu romance da vida inteira com o conde Axel Fersen, um oficial sueco de imensos encanto e riqueza, que lutou com as forças francesas na América e que, no triângulo real (se é que se pode dizer assim), desempenhava o papel de Marte para o Vulcano representado por Luís. Ele e a rainha se conheceram por acaso uma noite, no tempo em que ela e suas damas (mulheres nobres da mesma idade que ela que, como escreveu um contemporâneo, “amavam o prazer e odiavam a contenção; riam de tudo, mesmo dos rumores maliciosos sobre sua própria reputação; e não reconheciam qualquer lei além da necessidade de passar suas vidas em meio a folguedos”) vestiam um manto com capuz por cima de suas saias rodadas, fugiam para Paris e se misturavam a desconhecidos mascarados de origem variada nos bailes da ópera. É provável que o caso só tenha começado depois que o rei conseguiu transformar Antonieta numa “verdadeira esposa”, mas continuou, esporadicamente, sempre que as missões militares e diplomáticas de Fersen o traziam a Versalhes. O rei apreciava sua companhia galante, e Fersen provou sua devoção, embora não sua competência, ajudando a orquestrar a fuga para Varennes.
Afora sua cobiça excessiva e imprudente, Maria Antonieta nada tinha de maligno. Nunca sequer sonhou as atrocidades, entre elas o incesto e a pedofilia, que acabaram atribuídas à “Messalina de França”, à “Meretriz Austríaca”. Pelos padrões de Versalhes (reconhecidamente deploráveis), foi uma consorte leal, mãe dedicada e esposa satisfatoriamente virtuosa. E nem o povo francês reprovava de todo os extravagantes figurinos da rainha. Esperava-se dela, na verdade se exigia, que exibisse seu apoio patriótico aos ofícios do luxo, especialmente à tecelagem da seda, setor importante da economia. Mas Maria Antonieta nunca entendeu que seu esplendor era uma espécie de libré, de uniforme de trabalho, e que devia vir acompanhado dos deveres e sacrifícios que a sua função impunha. Não poderia ter sido morta sem antes ter sido desonrada, e foi cúmplice inconsciente de sua própria profanação, ao afirmar seu direito divino ao único privilégio que nenhum ser divinizado pode exercer impunemente. O direito de, como disse à sua mãe, “ser eu mesma”.
Maria Teresa teria preferido negociar uma de suas filhas mais velhas com a França, uma aliada que não lhe inspirava segurança. Mas uma delas tinha marcas de varíola e as outras estavam ou casadas ou mortas. Embora Antonieta, assim como seu prometido, fizesse parte da reserva dinástica (até a morte prematura de seu pai e de dois irmãos, Luís era o quarto na linha de sucessão), a beleza aumentava seu valor. De acordo com sua camareira e biógrafa, Madame Campan, era uma loura clara, agradável e de olhos azuis, “explodindo de frescor”, que dava aos exigentes franceses poucos motivos de queixa. Até mesmo seus detratores lhe admiravam o porte majestoso e a cútis sem igual. Seus seios inexistentes causaram um certo murmúrio de desaprovação num primeiro momento, mas, dois meses antes do casamento, a imperatriz teve o prazer de informar ao emissário do rei de França que sua filha “tornara-se mulher”. E os dois concordaram que, depois que se tornasse esposa, com o ventre ocupado, o peito haveria de adquirir volume.
A “entrega” (remise) de uma dauphine era um ritual não muito diferente da conclusão de uma transação imobiliária, com uma inspeção final na presença de representantes das duas partes do negócio. O relatório inicial, porém, assinalara alguns pequenos defeitos que demandavam correção. Assim, o dentista parisiense que inventara o aparelho de correção foi importado para retificar os dentes da arquiduquesa. Um mestre de dança ensinou a Antonieta o andar peculiar e deslizante das damas da corte. E um cabeleireiro francês, M. Larsenneur, disfarçou com arte sua testa alta demais e as entradas de seus cabelos. O conserto das lacunas bem mais evidentes em sua cultura e educação foi entregue ao mundano Abbé de Vermond, que fez o que pôde por uma aluna preguiçosa que até então fora ao mesmo tempo mimada e deixada de lado em sua formação.
Assim que se completou a transformação, e a frugal imperatriz empenhou estoicamente 400 mil libras (a renda anual de um nobre de porte) num enxoval à altura da nova família de sua filha, a dauphine e sua comitiva partiram para a França. Emissários de Luís XV a receberam na fronteira, onde ela entrou num pavilhão armado para a remise, numa ilha do rio que demarcava os limites entre os dois reinos. Enquanto uma furiosa tempestade fazia sacudir o teto precário, e a futura rainha digeria o significado de uma tapeçaria que retratava Medéia sacrificando os filhos, sua comitiva austríaca a despiu solenemente diante de todos os presentes e empilhou num canto todas as suas roupas e pertences, inclusive seu cãozinho pug chamado Mops, maculados pela origem estrangeira. Chorando e tremendo, ela se transformou em propriedade da Coroa de França no momento em que suas novas damas de companhia tornaram a vesti-la.
Maria Antonieta foi duplamente usada. Primeiro, com a finalidade de produzir um herdeiro legítimo para uma monarquia ossificada. Depois, para ajudar a legitimar os fanáticos que a derrubariam. Um estudioso do século XVIII, Pierre Saint-Amand, resume a vida dela entre esses dois marcos como “uma série de bailes a fantasia”. O que serve como descrição justa para o filme de Sofia Coppola, e também da premissa de uma nova biografia, Queen of Fashion: What Marie Antoinette Wore to the Revolution (Rainha da Moda: o que Maria Antonieta usava na Revolução), de Caroline Weber. Seu subtítulo sugere o quanto pode ser tentador, mesmo para uma historiadora séria, deter-se na principal obsessão de sua personagem. Na era gloriosamente espirituosa em que viveu, a rainha escolheu – ou talvez só conseguisse – se manifestar usando a prosa hiperexclamativa das suas (nas palavras de Weber) “proclamações em forma de moda”. É sempre gratificante descobrir o quanto pode significar uma dessas “declarações”, e o relato que Weber faz da transição do Ancien Régime para a República, do ponto de vista do vestuário, é um trabalho acadêmico que ajuda a explicar a transcendental importância da moda para a cultura francesa.
Mas terá sido Maria Antonieta uma rebelde fogosa, que desafiava “as opressivas convenções culturais e as ásperas animosidades políticas que a cercavam… transformando suas roupas e adereços em desafiadoras manifestações de autonomia e prestígio”? Muitos de seus contemporâneos – e não só os injuriosos pornógrafos e panfletários – não concordariam. “Ser a mais à la mode de todas as mulheres”, escreveu a condessa de Boigne, “parecia [à rainha] a coisa mais desejável que se pode imaginar.” Pode-se ainda argumentar que aquilo que um estudioso moderno pode entender como “reforço da auto-estima”, de sabor protofeminista, tem uma semelhança muito suspeita com a atitude de uma adolescente caprichosa, que resolve desobedecer às regras, ignorar as queixas da mãe e fazer o que bem entende para ser admirada.
Em algum ponto de meados da década de 1770, um jovem perfumista chamado Jean-Louis Fargeon, que imigrara recentemente para Paris de sua Montpellier natal, e assumira o controle de uma loja bem estabelecida na Rue du Roule, foi convidado a apresentar amostras de seus produtos a Madame du Barry. Fargeon vinha de uma família de artesãos, e recentemente fora promovido de oficial a mestre. Era também um discípulo do Iluminismo, profundamente tocado pela afirmativa de Rousseau de que o nariz é a porta de entrada da alma. A fama de seus produtos – não só perfumes e óleos como cosméticos, pós, fixadores, tinturas para o cabelo e novidades inéditas como um raspador de língua – atraíram a atenção da rainha. Elisabeth de Feydeau, professora francesa (com doutorado na Sorbonne sobre “a história do perfume” – Vive la France!), conta a história das relações entre os dois em A Scented Palace: The Secret History of Marie Antoinette’s Perfumer (Um palácio aromático: a história secreta do perfumista de Maria Antonieta). As impressões de Fargeon sobre Maria Antonieta são irresistíveis, em parte por sua intimidade e sua argúcia, e em parte porque, a despeito de uma vocação que o fazia depender da clientela aristocrática, ele era uma testemunha que acreditava ardorosamente nos ideais da Revolução.
O perfumista ficou atônito em sua primeira visita ao palácio, por alguns dos motivos que também devem ter chocado Maria Antonieta, que crescera numa corte e numa família onde a higiene impecável era um artigo de fé. Não só os cortesãos de Versalhes pareciam embalsamados, por baixo de suas máscaras de pó branco e ruge, mas os muitos que só se banhavam uma vez por ano cheiravam mal como cadáveres. Os pátios e corredores imundos fediam a excremento das pessoas e dos animais domésticos. Gatos mortos boiavam em águas estagnadas. E um açougueiro praticava seu ofício – o de estripar e assar porcos – na entrada da ala dos ministros.
Fargeon também ficou impressionado com o arcano ritual do lever da rainha quando, depois de devidamente aprovado, foi-lhe concedido o privilégio de assistir. Madame Campan, em suas memórias, descreve essa cerimônia de banhar-e-vestir como “uma obra-prima de etiqueta”, embora a jovem dauphine logo se tenha entediado e exasperado, ao ver-se transformada em fetiche daquele rito tribal que lhe exigia postar-se à espera, nua e imóvel, enquanto uma equipe aristocrática de camareiras coordenava o revezamento de mãos nas várias tarefas. “É detestável! Que coisa chata!”, exclamou ela, num repente tão sacrílego que se imortalizou. E finalmente ela encontrou um modo de contornar o incômodo: convidou a própria Rose Bertin para vesti-la e, uma vez que as damas de companhia – descendentes dos Cruzados – se recusavam a dividir a honra com uma antiga vendedora de loja, acabaram desistindo.
Fargeon já tinha criado vários acessórios perfumados em colaboração com a sensata Bertin – um gênio que não só conquistou, mas inventou seu lugar na história como uma eminência política a quem seus detratores chamavam de “Ministra da Moda”. Foi ela a arquiteta do famoso pouf, e Léonard – o cabeleireiro real (“a personificação”, escreve de Feydeau, “de uma das pequeninas e adornadas marquesas de quem Molière costumava zombar”) -, seu engenheiro. Esse penteado curioso e bizarro, pouf, fez furor em toda a Europa, e, como a maioria das extravagâncias da rainha, acabou sendo ruinoso para as suas imitadoras plebéias, que, dizem, sacrificavam seu dote no altar da frivolidade da austríaca, estragando assim suas chances de um bom casamento, o que depois as forçava a recorrer a protetores ricos para arcar com os custos, de maneira tal que no fim das contas – o ômega de argumentos como esse – a taxa de natalidade na França acabava prejudicada.
O pouf, com quase um metro de altura, tinha um tema sentimental ou político, dependendo de quem o usaria e da ocasião. Começava com uma fôrma de arame que Léonard forrava de lã, tecido, pêlo de cavalo e gaze, entrelaçando as tranças da cliente com peças de cabelo postiço. Quando o edifício já tinha sido bem endurecido, à custa de muito fixador, e devidamente coberto de pó-de-arroz (piolhos e insetos apreciavam ambos, de maneira que as senhoras à la mode sempre levavam consigo mãozinhas de coçar de cabo comprido), estava pronto para receber os acabamentos da cena que o definiria. Navios, celeiros, plantas, batalhas, natividades, e até mesmo as infidelidades de um marido foram alguns dos temas. Weber define os poufs como “cartazes móveis personalizados”, e a rainha usou um pouf à l’inoculation para comemorar seu triunfo em convencer o rei a se vacinar contra a varíola. Empoleirada no penteado, via-se uma serpente enroscada numa oliveira (símbolos da sabedoria), por trás dos quais se erguia o sol dourado do Iluminismo.
Um dos últimos encontros de Fargeon com a rainha ocorreu nas Tulherias, em 1791. Ela o convocara para tratar de um assunto urgente, “cumprimentou-o gentilmente”, escreve de Feydeau, “e perguntou-lhe o que ele, como um burguês de Paris, estava achando dos acontecimentos”. Fargeon teve o tato de se esquivar da pergunta, mas a primeira coisa em que reparou foi no aroma de um perfume que criara para ela em tempos mais felizes. Estavam caminhando por uma aléia ao lado do Trianon, e ela lhe pedira duas essências: uma para “um homem elegante e viril”, e a outra, um elixir do próprio Trianon, “para que pudesse levá-lo consigo aonde quer que fosse”. Mas agora ele percebeu, entristecido, que o aroma do Trianon se dissipara.
Maria Antonieta, na verdade, já estava planejando sua fuga para Varennes, e queria que Fargeon refizesse o estoque de sua enorme caixa de cosméticos para a viagem. Já mandara adaptar uma imensa carruagem (nada prática) forrada de veludo, carregada com tantas amenidades – uma mesa de jantar, escrivaninhas, equipamento de cozinha – quanto um trailer dos grandes. E se deixara distrair de preocupações mais urgentes discutindo com Rose Bertin a constituição de um novo guarda-roupa de luxo, o que perturbou Madame Campan, porque aquilo “pareceu-me inútil e até perigoso, e lembrei que a rainha de França poderia encontrar camisolas e vestidos em qualquer lugar”. No entanto, continua de Feydeau, como Maria Antonieta não admitia viajar sem seu coiffeur, Léonard foi informado. Cabia a ele carregar o baú com os diamantes da rainha, e avisar as estações de posta da aproximação dos fugitivos. Sua grandiosa inabilidade muito ajudaria a desmascarar o plano de fuga.
Fargeon ficara emocionado, em 1789, com o Juramento do Jeu de Paume e a promessa de uma nova ordem que representava. Embora o vitríolo dirigido contra a rainha o tenha perturbado, era mais republicano que a mulher, que desmaiou quando ouviu, na Rue du Roule, bêbados entoando uma das canções revolucionárias mais cruentas. Fargeon explicava o paradoxo de seus sentimentos. Maria Antonieta, dizia ele, era gentil e generosa para com indivíduos isolados, e nada parecida com suas caricaturas. Ainda assim, como diz de Feydeau, “para ela, seus súditos eram criaturas de ficção”. Era preciso diferenciar a mulher da rainha, concluía ele, pois “toda monarquia era, por natureza, tirânica”. Era sua paráfrase da famosa frase de Saint-Just: “Não se pode reinar inocentemente”. Mas o que se aplicava à rainha também se aplicava a seu alquimista. Ele reconhecia a humanidade de Maria Antonieta, mas desprezava categoricamente toda a sua classe.
Não consigo deixar de pensar que Maria Antonieta foi um protótipo para Emma Bovary, outra jovem beldade ingênua que se casa com um glutão grosseiro e igualmente ingênuo, deixando-se seduzir depois por um marchand de mode. O casal Bovary também era desprovido de qualidades, e se viu fadado a uma desgraça extraordinária. As duas histórias têm um fim brutal, em que a justiça não se faz. Essa ausência de uma catarse assinala o ponto em que a tragédia perde sua grandeza e se torna moderna – não uma narrativa sobre a inevitável morte dos reis, mas a história de uma queda fútil que poderia ter sido evitada. E coube a Flaubert democratizar a sabedoria de Saint-Just. O que suas obras insistem em afirmar é que não se pode ser humano inocentemente.