Nossa ideia de espaço público, até pisar na Praça dos Três Poderes, se limitava à Plaza de Mayo. A diferença não vinha só da beleza, que nos deixou atônitos, enquanto caminhávamos de um extremo a outro pela esplanada. A diferença é que a praça de Brasília estava deserta. Não havia ninguém lá FOTO: RENE BURRI_MAGNUM_LATINSTOCK
Viagem ao futuro do passado
Queríamos corrigir a “versão argentina” do Brasil. Ao postal do Cristo sobre o Corcovado e a Baía, contrapúnhamos nossa fotografia dos belos pilotis do Ministério da Educação. Por isso, naquele final dos anos 60, nosso destino era Brasília
Beatriz Sarlo | Edição 70, Julho 2012
Subimos o Paraná num barco que transportava madeira, toras e tábuas cortadas. Encostados na carga, passávamos o tempo no convés, numa espécie de assombro entorpecido pelo calor, pela umidade e pelos ruídos de bichos que vinham das margens. Pouco acima de Foz do Iguaçu, fomos aceitos naquele barco e lá entramos com nossas mochilas, acanhados, pois era a primeira vez que as coisas aconteciam de forma tão simples. O capitão disse apenas que sim, que nos levava. Antes mesmo de nos acomodarmos, tiramos uma foto no convés ao lado dos cinco tripulantes, navegantes de rio, homens reservados, que falavam um portunhol difuso, parecido com o que nós mesmos nos esforçávamos para arranhar: línguas de fronteira. Seja como for, não se mostraram lá muito interessados por aqueles jovens evidentemente urbanos, estudantes universitários.
Não demoramos a aprender o essencial: comia-se a cada quatro horas, na troca de turno, quando o cozinheiro tocava um sino. O entardecer chegava com uma nuvem de mosquitos, e os gritos de macacos e pássaros invisíveis mudavam de tom, como se tocassem outra partitura, diferente da música diurna. Quase não conversávamos, nem entre nós, nem com a tripulação, apenas gestos de cortesia, agradecer o tempo todo, coisas assim. Numa foto desbotada, entrevejo nossa cara de felicidade. Com tempo bom e sem nada para fazer, a navegação é tranquila. Fumávamos e comíamos grandes pedaços de goiabada, um pão massudo e meio úmido, arroz e feijão com nacos de carne e de gordura. O cozinheiro subia até o convés com uma lata de 40 centímetros de diâmetro e uma faca. Cortava grandes porções daquele doce por demais perfumado e tropical para o nosso gosto. Mas não queríamos ofender, e engolíamos a oferta com enjoada gratidão.
Entregues ao torpor do ócio, tínhamos, porém, consciência de viver algo fantástico, uma peripécia de ficção científica. Acreditávamos que, em poucos anos, o Paraná inteiro seria uma gigantesca autoestrada de represas. Logicamente, confiávamos tal iniciativa ao Brasil, que já então correspondia a uma mitologia técnica e futurista, muito mais que a Argentina, que dava a impressão de estar estagnada, já que seu “destino evidente” não se cumprira. Era um lugar-comum dizer que a ditadura argentina era diferente da brasileira, à qual se atribuía um ímpeto técnico modernizador que os militares argentinos não tinham.
Nossa representação da futura Itaipu era fantasiosa, mas incluía, sem que isso nos inquietasse muito, o destino tecnicista e distópico de uma drástica transformação no Paraná inteiro, de cima a baixo. Nós nos antecipávamos a esse progresso, porque éramos desenvolvimentistas sem saber, esquerdistas ou peronistas nacionalistas com um substrato desenvolvimentista. Repetíamos “Urubupungá / Urubu-pungá”, como se fosse uma fórmula mágica. Nunca tínhamos ouvido falar em “ecologia”, e nosso lado marxista fazia com que nem nos passasse pela cabeça que muitos moradores seriam removidos e quilômetros e quilômetros de território, inundados. Essas coisas não faziam parte da cultura de esquerda naquela época.
Assim, enquanto navegávamos pelo Paraná, a bordo de uma tradicional barcaça madeireira, enorme é verdade, imaginávamos que aquelas seriam as últimas viagens fluviais. De onde tirávamos essas crenças e superstições futuristas? Certamente da cidade que era o destino de nossa viagem: Brasília. A nova capital magnetizava tudo o que víamos. Mal conhecíamos algumas fotos, mas Brasília ordenava tudo o que aparecia à nossa frente desde Foz do Iguaçu. O presente se ordenava a partir do futuro. Uma revolução dos tempos. Uma revolução juvenilista, sem dúvida.
Os jacarés vindos de outras eras zoológicas, com seu couro pétreo, iam desaparecer. Tiramos as últimas fotos deles, num povoado ribeirinho e fronteiriço onde esperamos um barco que nos levasse Paraná acima. Nada nesse povoado anunciava o futuro: nem as coberturas de telha, nem a terra vermelha que tudo manchava, nem as cortinas de bambu das varandas onde passamos algumas noites, nem a hospitalidade interiorana, que mandava um garoto nos oferecer cafezinho e nos achava esquisitos, difíceis de classificar, porque não éramos nem mascates, nem missionários. Muito menos anunciava o futuro aquele forde de bigode verde que ajudamos a empurrar porque empacou no meio da rua. Mas, impávidos perante esses dados da realidade, avançávamos por aquela selva subtropical rumo a Brasília. Os tempos estavam misturados.
Desembarcamos antes de Jupiá e seguimos por terra, em sucessivos trechos de ônibus e caminhão. Assim chegamos ao Rio de Janeiro. Contrariando todo senso comum turístico, quase não nos ocupamos da Baía e das praias. Da rodoviária fomos direto ao Ministério da Educação. Não havia em Buenos Aires nenhum edifício público que pudesse se comparar àquele. Desse estranho modo cumpríamos o propósito geral de toda viagem turística, pois chegávamos para conhecer aquilo que não se encontra em outro lugar, e certamente não se encontrava em nossa cidade natal.
É verdade que a Baía de Guanabara também não se parecia com nada que conhecêssemos, mas não entrava em nossa lista, que tinha por regra rejeitar os “lugares-comuns”. Não buscávamos “belezas naturais”. O que nos seduzia era a intervenção no território, o grande monumento do paisagismo e da arquitetura. O Rio, para nós, por mais tolo e míope que possa parecer, era Lucio Costa, Niemeyer e Burle Marx. Movidos por esse desejo, praticávamos uma espécie de esnobismo modernista. Os pilotis do Ministério da Educação eram as colunas clássicas da nossa cultura visual, que começara no presente e se reduzia quase inteiramente ao presente.
Fora isso, só recordo vagamente uma manhã na Barra da Tijuca, quando estranhamos que a água do mar pudesse ser tão morna, pois só conhecíamos o Atlântico ao sul; e uma noite no ensaio de uma escola de samba, num bairro ao qual chegamos sem saber onde estávamos nem o que íamos ver. Nossa comida era o que podíamos comprar na rua: frango, bolinhos recheados de substâncias que não conseguíamos identificar e rodelas de abacaxi. Não prestávamos muita atenção no que púnhamos na boca, antes de mais nada porque não tínhamos dinheiro para escolher muito.
Essa viagem, no final da década de 60, confirmava ideias feitas e antecipações. Tínhamos ido à Bolívia e ao Peru antes disso, atrás não da modernidade, mas da incansável resistência de camponeses ou mineiros, de militantes trotskistas ou nacionalistas, a qual inscrevíamos numa linha de tempo que mergulhava no passado e nos conectava com as culturas originárias, anteriores à chegada da Espanha à América. Na Bolívia e no Peru buscávamos formas “progressistas” do pitoresco latino-americano. Buscávamos a resistência ou a revolução em seus estilos camponeses e indígenas, estilos ancestrais subjugados pela colonização e depois pelo imperialismo. Era isso o que pensávamos encontrar na América andina, e eram essas as palavras que utilizávamos.
No Brasil não buscávamos nada disso, embora nossa ideia fosse igualmente fantasiosa. Ignorávamos tudo sobre a Amazônia (que tínhamos pisado na fronteira entre o Peru e o Equador) e praticamente tudo o que ficava ao norte do Rio de Janeiro pelo litoral atlântico. A linha mestra da nossa viagem era, primeiro, o Paraná (o futuro energético das represas, apressar-se para ver as grandes quedas antes que fossem submersas nos lagos artificiais e reservatórios); depois, o Rio de Janeiro, e dali, de ônibus, o mais diretamente possível, Brasília. No meio do caminho haveria uma surpresa, um inesperado acaso benevolente com nossa ignorância.
Foi numa noite. Estávamos viajando de ônibus pelo meio do continente quando surgiu no horizonte um brilho móvel que aos poucos se transformou no skyline de Belo Horizonte. Muitos anos depois, tive a mesma impressão de fogo no deserto ao me aproximar de Las Vegas, de carro.
Pela primeira vez na vida víamos arranha-céus emergirem, como menires técnicos, numa paisagem de hinterlândia. Todos vivíamos exclusivamente em Buenos Aires e imaginávamos as cidades de altos edifícios invariavelmente no litoral: grandes portos ou capitais. Belo Horizonte contradizia, de modo inesperado, essa certeza obtusa. Não esperávamos nada da cidade. Encontrá-la foi, sem dúvida, uma sorte.
Coisas inverossímeis aconteciam conosco. Quando descemos na rodoviária, fomos abordados por um policial à paisana, que se apresentou como investigador. Nosso grupo era estranho: três moças e um rapaz, de mochilas (que não eram, na época, uma forma comum de levar carga) e botas (que também não eram, como agora, o calçado típico do jovem cool). Um quarteto de argentinos meio sonolentos e ainda desconcertados pela dimensão inaudita da cidade interior.
O policial era, obviamente, graduado. Não se identificou, nem nos passou pela cabeça pedir que o fizesse. Não era usual naquela época tal exercício de direitos. Ao contrário, perguntamos se ele conhecia algum albergue, um hotelzinho, ou o que fosse, onde pudéssemos passar a noite da maneira mais austera. O sujeito nos olhou de cima a baixo e ficou evidente que lhe parecíamos interessantes pelo insólito. “Vamos beber alguma coisa”, disse, abrindo a porta do seu Fusca. Vinte minutos depois, estávamos diante do balcão de um bar de onde se avistava a cidade inteira, iluminada, incandescente. Ele explicou onde estávamos; disse que seríamos muito tolos se seguíssemos caminho para Brasília sem conhecer, pelo menos, Sabará. Enquanto bebíamos água de coco na casca – um verdadeiro exotismo para quem, até então, a coisa mais tropical que conhecíamos era o abacaxi –, ele nos desviou da rota para Brasília por dois dias e, ao mesmo tempo, resolveu nosso problema de alojamento.
Horas depois, estávamos dormindo no leprosário de Belo Horizonte, num quartinho com duas camas de campanha, sem colchões, nem cobertores, nem janela. A porta dava para um pátio escuro e deserto. Ao ver o chão e as paredes nuas, tudo impecavelmente limpo, suspiramos aliviados. O cheiro dos desinfetantes nos tranquilizou. Anos antes eu tinha lido um romance de Jack London em que o protagonista pegava lepra e as primeiras marcas que surgiam eram umas manchas no supercílio: a face leonina. Enfim, era melhor não pensar nisso ali, naquele momento.
No dia seguinte, partimos para Sabará. O barroco mineiro se interpunha desse modo, por conselho policial, no nosso caminho para a Meca modernista de Brasília. Muitos anos depois, de volta a Belo Horizonte, fui obrigada a admitir que eu mal reparara na Igreja do Carmo. Tudo se passava como se a direção daquela viagem (que era um vetor para o futuro) ofuscasse sigilosamente a história. Os olhos não podem ver o que não desejam.
Mais extraordinário ainda é que, até chegar a Belo Horizonte, não tivéssemos nos dado conta de que nessa cidade se conheceram o prefeito, Juscelino Kubitschek, e o futuro arquiteto de Brasília. Belo Horizonte foi quase um acaso, quando devia estar no nosso itinerário desde o início. Na volta de Sabará visitamos a Pampulha. Tudo parecia recuperar sua ordem: estávamos indo de Niemeyer a Niemeyer, do Kubitschek prefeito e governador ao Kubitschek presidente. Mas a obsessão por Brasília causava uma espécie de cegueira. A visita à Igreja da Pampulha foi um tributo apressado a Niemeyer, algo que se aceita por ser inevitável, mas que, no fim das contas, torna-se um estorvo.
Décadas depois voltei à Pampulha. Na minha lembrança só restavam as cores e a transparência vítrea dos azulejos de São Francisco. Foi difícil imaginar quem era aquela moça obcecada, insensível e distraída, que na Pampulha só pensava em outra coisa.
O que significava todo esse esforço físico, esse arrastar de mochilas sob o sol, agoniados pelo calor e pela umidade, as noites na intempérie, os pernilongos, as coceiras, o suspense um tanto sinistro do leprosário, a comida escassa salvo nos generosos dias de barco pelo Paraná? Por que essa peregrinação que parecia uma performance hippie?
Era um capítulo da viagem iniciática. Nos anos 50, também o Che Guevara fizera a sua, embora nós não soubéssemos disso. Na década de 70, pouco depois das nossas andanças pela América do Sul, esses percursos se fecharam definitivamente. Mas nos últimos anos da década de 60 ainda havia uma brecha, entre a violência revolucionária e a repressão, para aqueles deslocamentos ingênuos e pedagógicos. Nessa brecha, no entanto, o perigo já estava à espreita. Na fronteira do Peru com o Equador, em plena Amazônia, fomos detidos pelo Exército. E esse pode ter sido o primeiro sinal de que a “formação do jovem latino-americano” devia encontrar outras estratégias.
Persistia, no entanto, a ideia ultraempirista de que, para conhecer a América Latina, devíamos nos deslocar de preferência a pé, por terra, colados à superfície, falando com aqueles que o acaso colocava no nosso caminho, camponeses quéchuas, caboclos amazônicos, pobres das periferias, mineiros, sindicalistas, intelectuais, caçadores furtivos, provavelmente sem entendê-los, muitas vezes sem nem conhecer sua língua. Éramos urbanos vivendo a fantasia de que a viagem nos transformaria de forma instantânea. Recebíamos uma formação ideológica em estado prático, que passava por cima das barreiras culturais e linguísticas.
Até chegar ao Brasil, os deslocamentos tiveram dois vetores: a história e a pobreza latino-americana, uma linha de tempo e um mapa social. Mas o Brasil nos parecia diferente: fortalecia o imaginário tecnológico que transformava o Paraná em um curso de gigantescas represas de onde fluiria eletricidade para milhões; havia construído a cidade mais moderna do continente e, claro, do mundo. Do Brasil, só sabíamos que era o futuro (talvez não estivéssemos tão equivocados). Não buscávamos nem história, nem cor local, nem costumbrismo, nem exotismo miserabilista. O Brasil era o país do futuro. Tínhamos visto Deus e o Diabo na Terra do Sol e, no entanto, não conseguíamos incorporar as imagens de Glauber à nossa fantasia e à nossa ignorância.
Por outro lado, num impulso de soberba, queríamos corrigir a “versão argentina” do Brasil, um ultrajante preconceito turístico sintetizado no Rio de Janeiro, no Carnaval, em cores-ritmo-simpatia-ginga de bola. Recusávamos essa versão por racista e limitada. Ao postal do Cristo sobre o Corcovado e a Baía, contrapúnhamos nossa fotografia dos belos pilotis do Ministério da Educação. Por isso, o destino era Brasília.
Foi de manhã, bem cedo. Um de nós recorda que chegamos de caminhão, montados sobre a carga. Eu acho que foi de ônibus e que descemos na rodoviária, sonolentos, mas vitoriosos. Não conhecíamos ninguém que tivesse estado em Brasília. Nós nos sentimos os primeiros de uma série latino-americana que, dali em diante, seria infinita. A rodoviária nos pareceu suja, barulhenta, caótica pela falta de indicações, mas não ligamos. Não queríamos fazer comentários de estudantes pequeno-burgueses justamente quando estávamos ante as portas da Xanadu modernista. Buscávamos o assombro.
Com a segurança inabalável de quem não conhece nada, fomos de ônibus até a universidade e ficamos dando voltas até encontrar o local que, em nossa cultura política, devia corresponder ao centro acadêmico. Um trâmite simples, como o check-in num hotel reservado com antecedência. Explicamos que éramos argentinos, que tínhamos vindo conhecer Brasília e que precisávamos dormir algumas noites. Um estudante abriu a porta de um depósito, onde havia resmas de papel e provavelmente algum mimeógrafo, enquanto falava sobre a luta contra a ditadura. Com simplicidade pouco interessada na resposta, perguntou se nos ajeitaríamos ali.
Da imensa quantidade de coisas que desconhecíamos por completo, a Universidade de Brasília era uma exceção. Eu trabalhava numa editora de livros e fascículos onde se repetia com frequência o nome de Darcy Ribeiro. Sabíamos que muitos professores da universidade tinham sido cassados ou se demitiram depois do golpe de 1964. Essas vicissitudes eram semelhantes às da universidade argentina, em 1966, depois do golpe recente. Sobretudo eu tinha uma ideia superficial de que a organização da Universidade de Brasília tinha sido (naturalmente!) muito moderna, superando a divisão tradicional por cursos profissionais e departamentalizada segundo disciplinas. Essa organização também foi explorada na Universidade de Buenos Aires de 1956 até o golpe de Estado, que também havia empurrado para a demissão e o exílio quase todos os pesquisadores de ciências sociais e exatas. Sabia mais ou menos do que falava o estudante que nos recebeu. Tinha notícias das mobilizações estudantis. Enfim, existia um terreno de experiências comuns.
Mas não tínhamos viajado até Brasília para debater a “questão universitária”, portanto guardamos nossas mochilas e saímos como quem, afinal, atingiu seu objetivo. Pela primeira vez em várias semanas, estávamos calmos. Caminhamos até a Praça dos Três Poderes, que era a imagem de Brasília que melhor conhecíamos.
Nossa ideia de espaço público, até pisar na Praça dos Três Poderes, se limitava à Plaza de Mayo de Buenos Aires. As diferenças são evidentes, mas só ali tivemos consciência delas. A Plaza de Mayo é resultado de uma superposição de modificações, reconstruções e demolições realizadas ao longo de dois séculos. Não surge de um único gesto, mas de uma soma estilística e paisagística, da coexistência desconjuntada de edifícios neoclássicos, italianos e modernos que a rodeiam. É heterogênea; suas qualidades não provêm de uma concepção urbanística ou arquitetônica única, e sim de adições e correções. Fundamentalmente, seu sentido é dado pelos acontecimentos que ocorreram e ocorrem ali. A Plaza de Mayo está, quase sempre (inclusive sob as ditaduras militares), cheia de gente, de curiosos, manifestantes, ambulantes, turistas, mendigos.
A diferença com a Praça dos Três Poderes, no final da década de 60, não vinha só da beleza, que obviamente nos deixou atônitos, enquanto caminhávamos de um extremo a outro pela esplanada. A diferença é que a praça de Brasília estava deserta. Não havia ninguém lá. Seu simbolismo se originava da potência de seu gesto arquitetônico e construtivo, da confiança político-institucional, não das camadas de passado que ainda não tinham tido tempo de se depositar sobre as superfícies perfeitas. Na Praça dos Três Poderes, a decisão de um Estado e o gênio de Niemeyer tinham suplantado a história, que é a arquiteta das outras praças latino-americanas.
Tudo vazio. Uma fotografia mostra dois de nós a centenas de metros do Palácio do Planalto. A extensão registrada é enorme. Sobre a planície de cimento, somente aquela dupla de argentinos contra a silhueta do Palácio. É quase meio-dia e não se vê mais ninguém. Aposta máxima da arquitetura moderna: sustentar-se sobre o vazio. Chandigarh, Brasília, autofundar-se com um duplo gesto material e simbólico.
Hoje as imagens são bem diferentes. Centenas de presidentes, ministros e embaixadores percorreram essa extensão, registrados em milhares de fotos jornalísticas e tomadas televisivas. No final dos 60, a fenomenal e desmesurada aposta estava a nu. Então podia formular-se a pergunta: O que será amanhã, daqui a vinte ou trinta anos, dessa esplanada deserta?
Não nos fizemos essa pergunta. Aparentemente simples, era, sem dúvida, complicada demais para nós. Discutimos outras coisas. Habituados às mobilizações em praça pública, tentamos imaginar como seria uma hipotética mobilização popular na Praça dos Três Poderes. Sentados no cimento, ao sol, só pensávamos a partir do que acreditávamos ser uma espécie de lei universal: as praças são feitas para ser ocupadas pelos manifestantes. A clareza do Plano Piloto acentuava nosso erro: como se Lucio Costa (ao contrário do barão de Haussmann) tivesse optado por um traçado urbano especialmente propício para multidões que avançassem em colunas pela avenida dos ministérios até a praça.
Assim delirávamos, impactados por uma obra ainda despida das imagens que iriam rodeá-la com o passar dos anos. Ao mesmo tempo, tinha algo de irreal, como se estivéssemos passeando por um cenário da história futura. As duas cúpulas invertidas e as duas torres brilhando com a aura do novo. Ainda não se dera o lento, inexorável e desgastante processo que transforma as imagens, os edifícios, as paisagens, em familiares. Tudo explodia diante dos olhos.
Hoje essa experiência não se pode repetir. Na época a cidade tinha apenas dez anos. Caminhamos da Praça dos Três Poderes ao longo da avenida ladeada pelos ministérios. De novo, sozinhos. Brasília nos dava algo que não tínhamos previsto: a estranha imagem de uma cidade nova, sem passado. Interpretava, por isso mesmo, uma das altas utopias da modernidade. A cidade é sempre uma história. Mas em Brasília ainda não transcorrera o tempo necessário para que o presente deixasse de ser presente, e camadas de tradição e lembranças se depositassem sobre o construído. O gesto urbanístico de Lucio Costa e o gesto estético de Niemeyer eram pura atualidade.
Por que uma catedral nessa cidade do futuro?, me perguntei de repente. Eu tinha decidido, antes de chegar, que a catedral definitivamente não me agradava, e nem mesmo Niemeyer conseguiria me convencer. A catedral, pensava, era um tributo excessivo ao passado. Um de nós disse que, eventualmente, podia ser transformada em auditório e brincou: “As igrejas sempre têm boa acústica.” Não me incomodava o valor simbólico de Brasília, mas sim que um arquiteto comunista tivesse oferecido a Deus um edifício de significado tão explícito. Claro que eu ainda não sabia nada sobre a Igreja no Brasil, muito menos sobre a religiosidade popular. Simplesmente me rebelava perante aquele gigantesco duplo cálice. As igrejas antigas se explicavam pela história. As novas, só se sustentavam pela arquitetura, quanto menos enfática, melhor.
O Itamaraty, ao contrário, podia mudar de mãos, de um regime político a outro. Contornávamos o espelho-d’água em que se apoiam as colunas. Estávamos contentes porque o reconhecimento daquele peristilo retangular, em meio a tamanho vendaval de novidades, suscita prazer até em quem, como nós, procurava ser surpreendido o tempo todo. A diferença entre o Itamaraty e os demais ministérios era para nós uma confirmação arquitetônica e cenográfica de que o Brasil encarava suas relações exteriores com visão de longo prazo, com o classicismo que merecem as políticas de Estado. Esse era um lugar-comum muito repetido na Argentina. O fato de lermos as colunas do Itamaraty como uma representação estética dessa política mostra até que ponto estávamos tingidos de preconceitos. Por mais que estivéssemos numa cruzada contra eles.
Chegamos às superquadras. Alguns carros estacionados. Silêncio. Ao contrário de todas as cidades pequenas e grandes que tínhamos visitado, ordem e casas recém-pintadas. Não consigo lembrar onde comprávamos a comida. Não consigo me lembrar de um único bar ou pensão em que tenhamos entrado, nem uma barraquinha nas ruas. Decerto comíamos no prédio da universidade, mas também não me lembro disso. Esse vazio na memória contrasta com a precisão com que vejo o cozinheiro do barco, recortado no convés contra as margens selvagens do Paraná, com sua faca na mão, distribuindo pedaços de goiabada.
Brasília, para nós, era justamente o contrário daquela realidade concreta. Mas a cidade deserta não nos surpreendia. Pelo contrário, enfatizava a nudez do que acaba de se materializar e ainda não chegou a se assentar sobre a terra, o momento da aura. Resplandecente e branca, era um gigantesco holograma de si mesma. Como num livro de arquitetura tridimensional, mostrava-se como o monumento da arquitetura modernista. Estar em Brasília era cruzar uma fronteira. Nunca, em lugar nenhum, se chegou tão longe na vontade política de dar forma a um território e impregnar uma cidade com uma estética. Há Chandigarh, é verdade, mas ficava na Índia e era menor.
Não regressei a Brasília desde o final dos anos 60. Talvez não tenha voltado para conservar intacta a lembrança jovem da cidade nova em folha, recém-construída, aquele projeto voluntarista e materialista ao mesmo tempo, surgido do desenvolvimentismo e da consciência de que uma nação também se manifesta em seus símbolos. Conheço as críticas à cidade e os argumentos em sua defesa. Há dois ou três anos, caminhando por Chicago com um casal de amigos brasileiros e falando de cidades, a mulher me disse: “Eu morei em Brasília.” Olhei para ela ansiosa, como quem espera uma revelação temida. “Gostei muito de morar lá.” E começou a me contar sua experiência.